sábado, 21 de agosto de 2010

XIV) O despiste

A vida é um despiste. Ele foi despistado de si já quando nasceu. Saiu da mãe e viu-se perdido, sem saber que caminhos tomar. Pior: viu que a vida enganava-o e não mostrava-o a verdade, o saber e o poder. Ela, porque queria, simplesmente deslumbrava-o momentaneamente com sua beleza para, em seguida, apunhalá-lo, pelo prazer do masoquismo com os desprovidos de livre circulação no mundo. José não pediu para nascer, definitivamente, e é definitivamente um pecado obrigarem-no a continuar vivendo, mesmo sem que ele saiba como fazê-lo, já que dizem ser proibido pela Lei se matar, sendo apenas Deus o capacitado a interferir no encontro com o final. Mas ele era realmente obrigado a querer morrer pelas mãos de Deus Pai Todo Poderoso, ao invés de suas próprias Todas Poderosas mãos? É muito egoísmo da parte d’Ele não conferir esse simples direito aos seus próprios filhos. Como sofreu José durante sempre, ao perceber que era mais torto que o torto, mas pecador que o próprio pecado e mais odiado que o próprio ódio. Nasceu com todos os pecados nele e com todos os indicativos primitivos de infelicidade para que, com os anos, ele fosse-os desenvolvendo, constatando que sem isso ele não era ele, e que sem ele, ele não mais seria nada e não era mais ninguém. José insignificava-se por natureza, muitas vezes, quase sempre. Queria ser um pouco, pelo menos por um dia, para ter o prazer de saber como é ser um pouco. Nada encaixava-o e ele não encaixava-se em nada. Ele sentia que por muitas vezes odiava-se, como odiava os outros. Era quando sentia-se mais só: com quem ele estaria, então, se até ele não queria-o? Quem haveria-o de querer? Quem?

            “Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas. Porque a minha carga é suave e o meu fardo é leve”. [Mateus 11: 28-30]

            Ele estava cansado de carregar seu peso e queria descanso em Deus, mas então qual a razão para Ele não deixa-lo fazer justiça com as próprias mãos? Mas o principal problema não era Ele, nem o filho d’Ele, nem a mãe d’Ele, nem o pai d’Ele, nem a avó d’Ele. O problema era ele mesmo, com letra minúscula, pois é José. Não tinha coragem de matar-se, ou pelo menos pensava não ter coragem de matar-se. Sempre imaginou o momento em que iria morrer. Sempre imaginou, principalmente, a hora em que teria plena consciência de que aquela seria de fato sua hora, e conjecturava, sempre, como ele estaria sentindo-se no momento. “Deve ser um instante oco”, pensava. “Branco, onde nada passa e tudo está pleno. Saber que é ali e agora que vai-se morrer, pode dar uma cena muito bonita, mas triste para o coração...” Ah...

            Mas ele precisava, ele tinha, ele queria, era questão de necessidade resolver esse problema da existência. José não fora programado, como ocorre com todos os outros, a viver. Ele nascera para sobreviver. Existir, para ele, era assim. José está em processo de descobrir, desde o dia em que teve noção de que ele era ele e não sua mãe, que há dias em que simplesmente existe (mas o faz passiva e inconsequentemente, diferente da forma ativa de todas as outras pessoas) e que há dias em que ele simplesmente, com muito esforço, sobrevive. Apesar de tudo, ao passar o dia da sobrevivência simplesmente esforçada, percebia que fortalezas são capengas e que ele ainda tinha muito que percorrer, isso se ele conseguisse chegar lá, seja onde esse lá fosse, se esse lá existisse, todavia. José fora ensinado sobre o que não poderia dever ser. Então, aí, ficou o vácuo: o que, portanto, ele teria que ser? Isso ninguém disse. E até hoje ele não sabe a resposta.

            José sentia-se ignorante ao pensar em Deus, porque simplesmente Ele não existe e nunca viu nenhuma foto d’Ele saída no jornal. Portanto, porque martirizar-se por Ele, se Ele nem aqui está? Mas o que enraíza-se, finca-se e propaga-se. As pessoas acreditam n’Ele, o que já basta para que Ele, em consequência da vã crença, exista. Fora cético em toda a vida, por razões práticas. Não desejou acreditar em Deus porque quis acreditar em si, pois ele seria a resposta para tudo, para ele, para o mundo. Ele, no entanto, assim como Deus, não teve todas as portas das chaves. Fez-se, então, triste. Fez-se triste ao saber que ele, além de ser ele, deveria ter que buscar saber de onde ele vinha, como se não bastasse apenas saber que viera da barriga dela. O divino ao contrário, desdenhando de todas as tentativas de descrença de José, apareceu, uma única vez, para ele, revelando que vivo Ele era, e que tinha o poder e que tinha o saber.

            Dormindo, José sonhara com uma amiga, já de muita idade. No dia seguinte, recebeu a notícia de que ela morrera no dia de seu sonho. Nunca antes ele sonhara com ela, sendo aquela a única primeira reveladora vez. Depois disso, passou a acreditar que Ele avisava e fazia-se presente. Mas não. Se Ele realmente fosse Ele e se Ele realmente fosse tão bom como dizem que o é, não teria apenas avisado-me dela, mas teria-a salvado. Como percebeu-se, ela não salvou-se. Deus, enfim, não existia mais, novamente.

            Por mais que ele acreditasse na inexistência divina – e que ele não poderia mais na Terra viver, por sua inadequação a ela – almejava com muita fé, antes de dormir, todos os dias, por uma resposta d’Ele. Se ele ali aparecesse, desse algum sinal, qualquer sinal, José acreditaria, pegaria em sua mão e iria, iria, sim, iria.
           
            (8) “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar, segura na mão de Deus e vai. Se as tristezas desta vida quiserem te sufocar, segura na mão de Deus e vai. Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, pois ela, ela te sustentará. Não temas, segue adiante, e não olhes para trás. Segura na mão de Deus e vai. Se a jornada é pesada e te cansas da caminhada, segura na mão de Deus e vai. Orando, jejuando, confiando e confessando, segura na mão de Deus e vai. O espírito do Senhor sempre te revestirá. Segura na mão de Deus e vai. Jesus Cristo prometeu que jamais te deixará. Segura na mão de Deus e vai”. (8)         
                       
            Aí ele não mataria-se e tudo ficaria bem. Eis a contradição. Ele não acredita e não vive, mas mostrem-no Ele e digam-no como deve-se viver, mínima e mediocremente para ser feliz, que ele acreditaria em tudo que dissessem, e empenharia-se ao máximo para ser o que as pessoas quisessem que ele fosse. Ele queria jogar-se para fora, mas dessem apenas uma mão, um sinal, que ele jogaria-se para dentro.  
  
***

            José não podia-se mais por ser José, que carrega em si todas as mazelas do mundo, toda a pobreza e a tristeza, tudo que é de menos e mais pequeno nessa vida que se é uma é ruim demais. Pela festa ter acabado para ele, há anos, há sempre, ele desejou perder-se, perder-se mais do que já é perder-se ao viver-se. Quis perder-se, para poder achar-se, ainda que não houvesse certeza de sucesso em nenhuma das duas empreitadas. Nascer, viver, morrer. Criança, adulto, velho. Há gente que não é trifásica, que para antes. Ele, desde sempre, sabia, negramente, que muito provavelmente não chegaria a ser trifásico. Essas regalias não são para gente como José: ele, que carrega todas as mazelas do mundo, toda a pobreza e a tristeza, tudo que é de menos e mais pequeno nessa vida que se é uma é ruim demais.

            “Eu sozinho não consigo carregar este povo, pois supera as minhas forças! Se é assim que me pretendes tratar, prefiro a morte! Concede-me esse favor, e eu não terei que passar por essa desgraça!” [Números 11:14-15]

            Mas viver o pecado é mais simples que dizer o pecado. As pessoas nem sempre escutam o que queremos de fato dizer. Quando não queremos dizer nada, elas ouvem coisas ditas por nós. Quando queremos dizer tudo, elas veem um deserto, porque provavelmente e muito certamente não creem relevante o que tem-se a dizer. Seria por isso que José não conseguia dizer seu pecado? Não, José simplesmente não sabia, apalpadamente, qual de fato era sua chaga. Em contrapartida, sabia que tinha-a, que tinha-as, porque sentia-se assim. Quando sente-se, verdadeira-se e comprova-se a existência de algo que realmente é planificável diante de nossos olhos marejados pelo egoísmo. Mas José sentia um nada, um vazio, um buraco, um. Sabendo que tinha, não sabia o que tinha. Isso matou-o mais que a morte poderia matá-lo. Saber que tem-se e não saber o que tem-se é muito bonito de ver-se, mas muito feio de sentir-se. Um dia ele poderia encontrar as razões e o seu ou os seus pecados em si? Sim, definitivamente. Ele mente.

            José nasceu pecado e teve que trabalhar a vida para tirar o pecado de si, ainda que não se possa tirar de si o que nasceu consigo. Não pedimos para nascer, porque nos impõem incumbências tão duras? Só pode-se exigir o que de livre vontade vem-nos. José nada quis, nunca. Mas tudo vinha até ele, não para abraçá-lo, mas para batê-lo. O que nasce conosco, contigo, convosco, pode ser camuflado, esquecido, mas jamais apagado. Somos o que somos ao nascer e apenas ao morrer virtualmente deixamos de sê-lo, por mais que não saiba-se o que pode acontecer lá em cima, ou lá embaixo, ou lá no meio, pois até agora não vieram dizer a ele o que passa-se por aquelas bandas. José não sabe se quer saber o que passa-se em outros lugares, além do lugar em que ele mesmo existe. Mas ele não sabe o que ele é, ele não sabe o que passa-se com ele, ele não sabe o que quer, ele não sabe por que quer, ele não sabe por que nasceu.

            Foi assim que José decidiu morrer. Decidiu? Desde que descobriu não ser a extensão de sua mãe, sabia que morreria. Apenas cumpriu seu destino, como todos os esclarecidos, como ele, como ele? devem fazer.

            Medo. O medo. Medinho. Está aí. Provavelmente um dos pecados de José era ter medo. Mas medo é um pecado? Na Bíblia diz isso, José?

***
            Mamãe, eu me perdi. Eu não sei mais para onde ir. Achava antes que o mundo seria meu, que tudo já estava garantido, mas depois de pouco tempo tive certeza que tudo não seria do jeito que eu, quando criança, havia planejado. Eu não quis fugir, juro. Apenas aceitei as coisas como elas me foram entregues, e por isso sofro, por incompreensão própria e alheia. Não sei se a decepcionei, mas eu tentei ser o mais honesto comigo mesmo, diante de minhas fraquezas e meus fracassos. Não escolhi, fui escolhido, e por isso não fugi, fui fugido.

            Mamãe, porque a senhora não me disse como seriam os caminhos? Chegaria ao sofrimento com mais facilidade, sem ter que sofrer mais que o necessário para conseguir sofrer. Sei que a culpa não é totalmente da senhora, pois muito de meu descaminho eu mesmo busquei, sem nem saber que estava me perdendo, coitado de mim. Sempre achei que as coisas poderiam voltar ao que eram antes, mas definitivamente elas não voltam não, as coisas ficam do jeito que elas resultam ao final da equação. Por isso, saí-me ferido da batalha. Os machucados nunca cicatrizaram e segundo os médicos que consultei, mamãe, sem a senhora saber, para não preocupá-la, nunca mais sararão.

            Mamãe, que vontade de chorar, mamãe. Só de dizer a palavra “mamãe” já tenho vontade de chorar, eu, que sou José, que não poderia chorar, que deveria ser forte. Eu perdi-me usufruindo coisas que eu pensei que ajudariam-me a encontrar-me. Enganei-me, como quase sempre. A cultura fez com que eu perguntasse-me mais e não que eu respondesse-me mais. Será que a senhora sabe responder-me, mamãe?

            Mamãe, acho que a senhora não pode ajudar. Não pode compartilhar de meu sofrimento. Sabe aquela lógica onde um médico cirurgião não é eticamente permitido a operar seu pai, sua mãe, seus irmãos, seus filhos, seus netos? Pois então, é a mesma que utilizo aqui. A senhora eticamente necessita afastar-se de mim, para que eu viva, sofra, arrebente-me, e a senhora não participando de nada, apenas servindo-me o almoço de domingo.

            Mamãe, eu só queria não ter que precisar cuidar de mim; ter dois anos eternos de idade. Mamãe, eu te amo. Não, te odeio. Não, te amo. Não, te odeio. Não, te amo. Não, te odeio. Não, não sei. Não. Sei. Mamãe, a senhora ama-me ou odeia-me? Mamãe, a senhora me ama ou me odeia? Porque, não traumatize-me mais do que já traumatizado estou.

            Mamãe, eu vou morrer. Mas não chore: eu sou um pecador. Chora-se por pecadores? Mas conto-lhe, em segredo: não sei exatamente quais são meus pecados, mas dizem que eu tenho-os; portanto, creio. Mamãe, chorarei. Olhe, estou para chorar, estou sentindo. Mamãe, sim, vou chorar, mamãe! Está caindo lágrima, pelo olho direito. Ela está saindo, vagarosamente, arosamente; será que pego?

            Mamãe, eu vou à cozinha, beber um pouco de água, para acalmar-me. Já volto. Eu volto. Não desligue o telefone. 

***

           
Eu estou caindo. Eu estou definitivamente caindo. Eu caí.

            Peguem-me, por favor. Pelo menos uma mão, nem que seja a de Deus.

            Porque meu nome é José, ele, que carrega todas as mazelas do mundo, toda a pobreza e a tristeza, tudo que é de menos e de menor nessa vida que se é uma é ruim demais.

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