quarta-feira, 25 de abril de 2012

“Vou curá-la de sua ignorância"

A China comunista camponesa e reacionária da Revolução Cultural é retratada no filme “Balzac e a costureirinha chinesa”, uma adaptação sino-francesa de romance homônimo de Dai Sijie. As personagens principais do longa são os jovens Luo e Ma, rapazes de 17 anos encaminhados para reeducação social no campo pelo governo chinês, por seus pais serem médicos e dentistas, profissões consideradas burguesas e indesejáveis para o regime vigente. Possuidores de uma abrangente cultura geral, a dupla sabe ler, escrever e tocar instrumentos musicais.

Já no convívio com a aldeia, os pobres e arcaicos camponeses não chegam a saber nem o que é um violino. Em cenas iniciais do filme, um dos jovens toca o instrumento para a população ignorante e afirma: “Mozart está pensando no presidente Mao”, persuadindo-os sobre a relevância daquele ato. Lênin torna-se responsável por “O lago dos cisnes” e Balzac diretor de um filme.

            A aldeia é um ambiente sem leitura e escrita, fisicamente de difícil acesso, composta por agricultores e tecelãs. Durante uma reunião para a propagação do ideário anticapitalista, os jovens “burgueses” sentam-se junto da gente para ouvir de um palestrante o que ele afirma ser o saber e a verdade e o melhor para a China. Deste modo, percebe-se ser este um ambiente de fácil manipulação. 

         Neste ínterim, Luo (sempre vestindo camiseta azul) e Ma (sempre vestindo camiseta vermelha) convivem e se apaixonam pela neta de um senhor respeitado no povoado, conhecida por “costureirinha”. O elo entre eles se estreita a partir do momento em que descobrem escondido em uma caverna uma coleção de livros estrangeiros, proibidos, de autores como Balzac, Flaubert, Tolstói. Analfabeta, a costureirinha ouve todos os dias as histórias lidas por Luo e Mao, recebendo deles uma cultura ocidental por meio de clássicos da literatura romântica de séculos passados. “Vou curá-la da sua ignorância”, afirma Luo para a costureirinha.

            Ela engravida de Luo e retira o bebê, já que seria castigada por seu avô. Após ouvir muitos dos livros e ter passado pela transição da ingenuidade para a maturidade física da mulher, a costureirinha deixa a aldeia de lado e vai para a cidade, abandonando os dois homens que a amam. O filme nos faz compreender que ela, independente “por causa de Balzac”, vai atrás de sua própria liberdade em razão da liberdade vivida por ela nos romances ouvidos. De uma realidade passiva e sem futuro, ela se transforma em ativa e transformadora. “A beleza da mulher é algo sem preço”, lê-se em Balzac no filme. 

            A vida da costureirinha é, de fato, transformada pela chegada dos autores ocidentais e pela chegada dos “burgueses” Luo e Ma em reeducação, mas ela em nenhum momento aprende a ler por si mesma. Por mais que ela interprete o que ouve, não a ensinaram a ler por contra própria, o que de certa forma ela faz quando sai de casa. Ela foi aprender a ler sozinha na cidade grande chinesa, metaforicamente. Vinte anos se passam e o povoado é alagado, sem que Luo e Ma, já com suas vidas encaminhadas, saibam do destino da costureirinha. 

            A realidade consegue ser moldada e transformada, haja visto os exemplos de autoria de "O lago dos cisnes" etc., mas ate que ponto podemos saber como a realidade da costureirinha foi transformada a partir da intimidade com a literatura ocidental? Ela nao teria saido da aldeia sob outras circunstancias que nao esta? Caso fosse engravidada por outro, sem nunca ter ouvido nenhum livro proibido, qual teria sido sua atitude?

segunda-feira, 23 de abril de 2012

sábado, 7 de abril de 2012

Tratado do lobo da estepe - Só para loucos


"Todas as interpretações, toda psicologia, todas as tentativas de tornar as coisas compreensíveis se fazem por meio de teorias, mitologias, de mentiras; e um autor honesto não deveria furtar-se a dissipar essas mentiras dentro do possível. Se digo 'acima' ou 'abaixo', isso já é uma afirmação, que exisge um esclarecimento, pois só existem acima e abaixo no pensamento, na abstração. O mundo mesmo não conhece nenhum acima nem abaixo" (Herman Hesse - O lobo da estepe)

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Morreu duas vezes



Ontem sonhei com a minha avó Rosaly Vieira da Silva. Via a televisão, no tempo presente, e o noticiário me informava que ela havia morrido naquele dia. Tendo sido professora do Sarah Kubichek, o colégio a homenagearia. Ao confirmar por fotografias que aquela falecida era mesmo minha avó, veio o desespero: sabia que ela já estava morta desde 13 de setembro de 1998.

Olhando obsessivamente os álbuns de fotografia, confirmava para minha angústia que era ela a que aparecia na televisão. Liguei, então, para minha mãe, sem conseguir falar direito por causa do choro: "Dizem que a vovó morreu, mas eu sei que ela já está morta." A frase veio apenas na minha cabeça, porque na hora só conseguia abrir a boca, calada pelas lágrimas.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Os meus olhos

Os teus olhos não são teus:
são duas ave Maria do rosário da amargura, que eu rezo todos os dias.
Os teus olhos não são teus, desde o dia que te vi.
Os teus olhos são os meus, que os meus cegaram por ti.
(Germano Rocha)

domingo, 1 de abril de 2012

História estranha e familiar da leitura


O principal objetivo do nono capítulo do livro de Robert Darnton é argumentar sobre as dificuldades de se promover uma história da leitura. Complexa em sua natureza, ela esbarra em abordagens distintas e em técnicas para sua pesquisa com algumas possibilidades de falha. No entanto, segundo o autor, a leitura possui de fato uma história (p. 171) e que é pela via da pesquisa histórica que poderemos compreender o modo como o leitor lê e, com isso, vê a vida. Ressalta, também, que é dentro de nossa própria cultura ocidental que existe a possibilidade de se avaliar as transformações na leitura. (p. 159)

Por meio das análises de arquivos e documentos de época, têm-se uma visão do que era lido e de quem lia. Pela vertente do estudo documental, há as técnicas macro e microanalíticas. De grosso modo, a macro vislumbra o campo da biblioteca pública e a micro a da particular. Porém, sabe-se que em nossa casa não lemos todos os livros que comprarmos e lemos muitos livros que não possuímos, assim como o autor expõe o exemplo de uma biblioteca europeia do século XVIII onde não se encontrava registrado um exemplar de um livro fundamental do Iluminismo, de autoria de Rousseau. Darnton afirma não ser fácil desenvolver uma teoria da reação do leitor, da leitura em suas complexidades, por meio dos arquivos. “Possível, mas não fácil, pois os documentos raramente mostram os leitores em atividade, modelando o sentido a partir dos textos, e os próprios documentos também são textos, o que requer interpretação.” (p. 148 e 149).

Outro ponto do texto delimita o momento de transição para o que se considera a “revolução da leitura” no século XVIII, quando o livro passou a ser mais difundido. Em um momento anterior, a leitura era feita em voz alta e em grupos, registrada como “ouvida” e não “lida” (p. 158), da mesma forma como poucos livros eram lidos muitas vezes, eles sendo majoritariamente religiosos. O ato físico da leitura se torna mais agradável, o que proporciona empregar um entretenimento maior ao ato de ler. Passa-se da leitura de pé em espaços públicos de livros grandes e difíceis, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, para a leitura prazerosa e descartável na residência. Desta forma, o gênero romance cresce vertiginosamente e percebe-se uma queda na literatura religiosa durante os anos 1700 (p. 151 e 152).

O capítulo é, portanto, satisfatório em sua intenção de delimitar as formas para que se possa alcançar a história da leitura. Chega-se a uma conclusão objetiva da mudança dos modos e usos do ler durante os séculos, mas é de conhecimento do autor a dificuldade de se alcançar o que a leitura significa para o homem: “Nem sequer compreendemos como nós próprios lemos,” (p. 159). Através de relatos pode-se vislumbrar como a leitura era vista, em 1795, por exemplo, quando J. G. Heinzmann faz um triste prognóstico para quem lê em demasia (p. 160).

Mais adiante no capítulo, o autor se delimita, sob a abordagem da teoria literária – no que tem a intenção de traçar a história da leitura sob cinco distintas abordagens –, no que diz respeito à forma como a obra literária passou a ser apresentada aos leitores. A partir de trechos de um livro de Ernst Hemingway e da obra “Orgulho e preconceito” (p. 166), Darnton demonstra as diferentes formas de um escritor introduzir seu leitor na narrativa. Assim, uma ponte pode ser feita entre estas análises e as teorias de Umberto Eco em seu livro “Seis passeios pelos boques da ficção”, onde este define as funções de leitor e autor, afirmando ser Wolfgang Iser, com a estética da recepção, um caminho plausível para a definição do leitor em seu ato de ler como “fato central da literatura” (DARNTON, p. 167).

Portanto, ainda que complexa, o autor nos faz perceber que o mais importante para o estudo da história da leitura é, antes de tudo, considerar o leitor como fator central das análises. O homem utilizou a leitura como mecanismo para melhor compreender sua própria existência e a partir do momento em que houve a “revolução” literária no século XVIII e a maior difusão da leitura no mundo ampliou-se a matéria prima para estudo sob esta perspectiva.

Antes, do aprendizado nas escolas inglesas (p. 162) da leitura antes da escrita e do fato de nas escolas francesas (p. 163) se aprender primeiro o latim e, posteriormente, aos que persistiam no estudo, o francês, entende-se que o ensino era apenas para criar um leitor empírico, do dia-a-dia (ECO, p. 14). Hoje, a leitura é um produto amplamente difundido e compartilhado com o público, sendo um desafio vislumbrar os modos que ele faz dela. As abordagens de Darnton para a história da leitura unida à estética da recepção vêm, então, como um caminho.