quinta-feira, 9 de julho de 2015

José Leonilson (1957-1993)

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"Jesus com rapaz acidentado"

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Reinaldo Arenas, personagem político e sexual


 

Caetano Veloso, em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, em 1996, falando sobre os regimes comunistas do século XX: “(...) isso pra mim é uma coisa intolerável (...) sobretudo a ideia que havia em torno de uma questão pra mim que é central, que é a questão da homossexualidade. Isso, nesses países, sempre parecia muito mal posto. Eu me sentia, pessoalmente, muito mal diante da realidade desses países, desde muito tempo”.

“O beijo doa amantes destrói a sociedade” (Maurice Blanchot – A comunidade inconfessável). 


Este artigo tem por objetivo analisar os trabalhos do escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) diante de uma perspectiva de cisão do sujeito pós-moderno em uma realidade subdesenvolvida e ditatorial, onde coloca-se em jogo a manipulação do homem político e sexual, que transborda vida em suas narrativas. Também deseja-se vislumbrar a questão das mediações culturais entre os países para a disseminação da obra do autor.  
Sendo assim, é necessário, em primeiro lugar, fazer um apanhado teórico que diferencia de forma eficiente os significados de uma escrita autobiográfica e de uma escrita auficcional. Autor homossexual e dissidente do regime de Fidel Castro, tendo escrito mais de uma dezena de obras, Arenas foi (re)conhecido, de forma mais explícita, por seu último livro, suas memórias, “Antes que anoiteça”, publicado em 1992, dois anos após seu suicídio nos EUA, em consequência de ser portador do vírus da Aids. Esta é uma autobiografia, o que significa que exige dois pactos entre escritor-leitor. Primeiro, o “pacto autobiográfico”, que parte do simples pressuposto de que o leitor deve acreditar que o que se está lendo é verdadeiro: “o autobiógrafo pede ao leitor que confie nele, que o creia, porque se compromete a lhe contar a verdade de sua vida” (ALBERCA apud LEJEUNE, 2009, 1). Arenas, neste texto, revela como o regime comunista dos irmãos Castro prendeu e torturou de forma deliberada os homossexuais e faz um apanhado geral de toda a vida de perseguição do escritor, até o exílio nos Estados Unidos nos anos 1980, tendo sido finalizado apenas quatro meses antes de seu suicídio, em dezembro de 1990.
O segundo e último pacto de uma autobiografia é o “pacto referencial”, ou seja, o pacto de verossimilhança do texto. Arenas está, em seus relatos, nos pedindo que confie em suas estórias, pois verdadeiras, e também as relata de modo que possamos crer que ela seja real, com fatos que saibamos verdadeiros e sem nevoeiros em meio à narrativa. Obra que representa uma quebra da possibilidade de uma escrita autobiográfica é o livro “Fragmentos. Memórias de uma infância: 1939-1948”, do suíço Binjamin Wilkomirski, publicado em 1995, em que ele diz revelar sua infância no campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, no que se considera por “literatura de testemunho”, “literatura da Shoah” (ligada aos judeus, mas lembrando que homossexuais também foram ao campo de concentração nazista). No entanto, um jornalista descobriu que o autor não era judeu e nem foi para um campo, em razão de uma falta de verossimilhança do texto, que dizia que ele havia passado anos sem registro de nascimento na Suíça, um país que preza pela organização de seu Estado. O jornalista também descobriu que Binjamin era um nome falso (SELIGMANN-SILVA, 2005, 107-118).  
Já uma escrita autoficcional ocorre quando o escrito trabalha com o jogo entre verdadeiro e falso. O leitor fica no limbo, mas sabendo que o bom livro é aquele que, tal qual Rainer Maria Rilke afirma, “transborda vida”. Arenas, antes de relatar em “Antes que anoiteça” sua vida de forma mais “verdadeira”, proporcionou um vasto repertório de como é viver como um homossexual em Cuba e nos Estados Unidos por meio de diversos de seus relatos (quase todos os seus relatos), de como é a vida em um sistema comunista e capitalista, e de como é não sentir-se pertencente a lugar nenhum. Em “Arturo, a estrela mais brilhante”, Arenas relata como é a vida de um homossexual em um campo de trabalho forçado em Cuba. O filme “Conduta imprópria” (1984), sobre a vida de gays na ilha, dá um bom retrato da situação, ao fazer um paralelo entre os campos cubanos (“O trabalho faz o homem”) e os campos nazistas (“O trabalho liberta”), tendo como ponto de partida o fato de o regime castrista ter perseguido de forma deliberada os homossexuais. “Arturo, a estrela mais brilhante” é um dos exemplos mais eficazes para demonstrar o caráter da obra autoficcional de Arenas, pois expõe com uma subjetividade e parcialidade tocante como é estar em uma perspectiva repressora e faz com que o leitor se pergunte, a todo o momento, o que está a ler, se uma vida ou uma obra, se uma mentira ou uma verdade, mas ao fim fica a certeza de que, como Arenas revelou em sua última entrevista, que “sempre escrevemos o livro de nossa vida”. A questão do sujeito a frente de uma narrativa, do eu a frente do nós, está intrinsecamente relacionada à questão do sujeito na realidade pós-moderna: “Esta estrutura híbrida (autoficção) e o conseguinte pacto de leitura ambíguo convertem a autoficção em uma metáfora da atual deriva do sujeito e da forte mutação que este experimentou no século passado” (ALBERCA, 2009, 5).
É perigoso colocar toda a narrativa do eu em uma cesta autobiográfica, como o faz Elizabeth Duque-Estrada: “Observa-se atualmente uma explosão enfurecida de narrativas autobiográficas – escritas/encenadas, ficcionalizadas ou não” (DUQUE-ESTRADA, 2009, 153). Quando Arenas escreve a história de Servando Teresa de Mier, que supostamente deveria contar a vida do religioso tal qual ela seria (biografia), o autor não afirma que está escrevendo uma biografia-ficcionalizada, pois isso já faria com que a história deixasse de ser por si só e apenas biográfica, pois se biográfica seria desprovida de ficção. Poderíamos também considerar o livro sobre a vida de Servando uma autoficção póstuma do próprio religioso dos anos 1700 ou uma autoficção do autor cubano dos anos 1900, ao passo que Arenas destaca: “O mais útil foi descobrir que tu e eu somos a mesma pessoa” (ARENAS, 2000, 21) e “Não aparecerás (Servando) neste livro meu (e teu) como homem imaculado” (ARENAS, 2000, 22)? Quando há o que Duque-Estrada chama de “autobiografia ficcionalizadas”, creio ser melhor frisar o que o próprio Arenas afirma: “Esta é a vida de Fr. Servando Teresa de Mier, tal qual foi, tal qual pôde ser, tal qual eu teria gostado de que tivesse sido. Mais que romance histórico ou biográfico, pretende ser, simplesmente, romance” (ARENAS, 2000, 13).
É preciso conseguir separar os registros autoficcionais e autobiográficos, conceituando-os, sabendo apesar de tudo que a literatura – principalmente a partir do final do século XIX e começo do século XX, com Rainer Maria RilkeAntonin Artaud, Franz Kafka etc. – é um eterno devir narrativo do eu e do não-eu, como afirma Pucheu sobre a obra de Kafka: “Da escrita à vida e da vida à escrita, a via é certamente de mão dupla, ou, mais do que isso, de encruzilhada, havendo tanto as muitas intensidades do vivido na escrita quanto as da escrita no vivido” (PUCHEU, 2015, 23); e como afirma Arenas sobre sua própria obra:
“Quem, por truculências do acaso, ler algum de meus livros não encontrará nele uma contradição, e sim várias; não um tom, e sim muitos; não uma linha, e sim vários círculos. Por isso não creio que meus romances possam ser lidos como história de acontecimentos concatenados, senão como uma onda que se expande, volta, se ensoberbece, retorna, mais tênue, reavivada, incessante, em meio a situações tão extremas que de tão intoleráveis se tornam por vezes libertadoras” (ARENAS, 2000, 18-19).
Arenas teve, até sua morte, apenas uma obra publicada em Cuba, "Celestino antes del alba" (que conta a vida hostil de um personagem na Cuba rural), primeiro livro, escrito em 1964, do que posteriormente seria considerada sua "Pentagonia", reunião de cinco obras (“Celestino antes del alba”, “El palacio de las blanquísimas mofetas”, “Outra vez el mar”, “El color del verano” e “El asalto”). Segundo lugar no concurso da União Nacional de Escritores e Artistas Cubanos (Uneac), em 1965, o livro foi apenas publicado em 1967 e não ganhou o primeiro lugar por ser considerado desprovido de "conteúdo político" e ser apenas obra fantasiosa. Das obras publicadas deste concurso, a de Arenas contou com apenas 2 mil exemplares, considerado pouco para a época em Cuba (MISKULIN, 2009, 195). Já em 1966, o autor enviou para a Uneac seu segundo romance, "O mundo alucinante", que conta a história de um religioso mexicano que, no século XVIII, percorreu o mundo e foi perseguido politicamente por suas ideias: "Apesar de referir-se a um período histórico bem distanciado, 'El mundo alucinante' tinha um conteúdo crítico bastante evidente em relação ao Estado" (MISKULIN, 2009, 196). O livro acabou apenas recebendo uma menção honrosa (que, segundo Miskulin, facultava a publicação ou não da obra) e não o prêmio, que em 1966 não foi dado a ninguém. No entanto, de acordo com o relato de Arenas, “O mundo alucinante” saiu de Cuba em 1967 contrabandeado pelo pintor cubano Jorge Camacho e levado para Paris. Camacho viera para a ilha expor em um evento internacional de pintura, em 1967, e Arenas alega que “quando foi embora”, o pintor levara a obra. Entende-se que Camacho só permaneceu em Cuba para a exposição, o que faz-se crer que já em 1967 ele partira. O livro recebeu tradução pelas Editions du Seuil e, segundo Arenas, os editores quiseram publicá-lo “imediatamente”. De acordo com artigo de María Guadalupe Silva, “O mundo...” foi publicado na França no ano seguinte, em 1968 e, em 1969, chegou ao México e à Buenos Aires (SILVA, 2011). Arenas conta também que publicara, no Uruguai, o livro de contos “Con los ojos cerrados” (ARENAS, 2009, 152-153). Este último livro foi publicado em 1972, no Uruguai, mas apenas nos anos 1980 já nos Estados Unidos que o escritor teve conhecimento de sua publicação (MINSKULIN, 2009, 201). Em 1968, de acordo com Enrico Santí, "Con los ojos...” teria recebido novamente menção honrosa da Uneac, mas não sendo publicada na ilha (MINSKULIN, 2009, 206-207). Segundo Arenas em sua autobiografia, a não premiação de “O mundo alucinante” em Cuba é culpa da pressão de Alejo Carpentier, membro do júri. Em introdução ao início de “O mundo...”, Arenas afirma: “Estás, querido Servando, como o que és: uma das figuras mais importantes (e infelizmente quase desconhecida) da história literária e política da América. Um homem formidável. E isso é suficiente para que alguns considerarem que este romance deve ser censurado” (ARENAS, 2000, 22). "Arenas foi informado que sua obra 'El mundo alucinante' tinha 'passagens eróticas' e por isto não poderia ser publicado em Cuba" (MINSKULIN, 2009, 197). Segundo o crítico literário Emir Rodríguez Monegal, em crítica sobre a obra, "as passagens homossexuais do livro fizeram com que Arenas fosse mal visto pela burocracia cubana. Entretanto, (...) mais subversivo na obra foi sua crítica às revoluções, ambientada nas lutas pela independência do México" (MONEGAL apud MISKULIN, 2009, 197).  
“O mundo...”, no entanto, ganhou na França, em 1969, o prêmio de melhor livro estrangeiro junto com, nada menos e nada mais, “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, publicado na Argentina em 1967 e considerado a maior obra-prima da literatura latinoamericana do século XX e sinônimo de realismo mágico das letras hispanoamericanas. Este é um fato divisor de águas para se compreender as questões do subdesenvolvimento social das minorias e da capacidade de autonomia do ser humano. A trajetória de García Márquez o levou a ganhar o Nobel de Literatura, em 1982, fato que Arenas não chegou nem perto, mas não porque sua obra fosse ruim, mas por definitivamente ele estar inserido em uma perspectiva de renegar o país de sua origem e, principalmente, renegar as finalidades pelas quais Deus o fez homem, que seria relacionar-se com mulheres. García Márquez, de obra unicamente heteronormativa, nunca esteve na marginalidade. Ao contrário, amigou-se ao poder, principalmente de Fidel Castro e, ao contrário do que amigar-se com Fidel pode supor, frequentou com certa facilidade pelos meios literários europeus e americanos. Deve-se considerar a visibilidade ou invisibilidade de Arenas tendo sempre em vista o homossexual. Após a publicação e prêmio no exterior de sua obra, Arenas foi considerado escritor maldito em Cuba e ele não estava nem relacionado na lista de escritores da Casa de las Américas, espécie de instituto cubano que agregava a cultura daquele país. Nos anos 1970, caso se procurasse por Arenas em seu país, não seria possível encontra-lo, já que não se constava nenhum registro dele, nem profissional e nem social. Encarcerado ao lado de presos comuns no presídio de El Morro, Arenas foi torturado e teve muitas de suas obras ao longo dos anos 1960-1970 destruídas. Por exemplo, o livro “Otra vez el mar” foi reescrito quatro vezes. Arenas também necessitou escrever segundo o intermédio de terceiros. Quando viu que sua obra não seria publicada em seu país – posteriormente, chegou a proibir que algum livro seu fosse lançado em Cuba até a morte de Fidel Castro – passou a guardar seus originais em frestas de telhas e a enviar, por meio do casal de amigos Margarita e Jorge Camacho, sua obra para o exterior, onde foi publicada, principalmente na França e Espanha. A voz de Arenas foi dita, durante principalmente os anos 1970 (antes de fugir para os EUA), não por meio dele, mas por intermédio de terceiros, já que a ditadura o calou.
A marginalização de Arenas era tão extrema que para ele seria impossível não fazer de seu trabalho de escrita um trabalho autoficcional, onde o sujeito homossexual (tal como Jean Genet) e político fossem evidentes. Falando sobre si e em seu próprio nome – ainda que por intermédio, durante certo tempo, de terceiros – Arenas conseguiu exilar-se e, apenas a partir dos anos 1980 (quando Fidel implementa uma saída em massa da ilha dos que não eram alinhas à revolução, ao que se pode resumir com o grito: “que se vayan”) que sua obra começou a tomar um destino mais livre, onde ele seria capaz de trabalhar em suas edições e coordenar traduções e antologias. Como afirma Alberca, é na Espanha pós-1975 (pós-morte do ditador Francisco Franco) que os relatos sobre o eu tomam uma vista maior; como afirma Duque-Estrada citando Silviano Santiago, é no Brasil dos anistiados e ex-exilados que os relatos autobiográficos e memorialistas tomam mais vista no Brasil; e é com Reinaldo Arenas agora nos EUA que sua obra será administrada por ele. 
É nesta perspectiva dos anos 1970 que um viés de estudos literários veio à tona e tomou conta da produção e análise: os estudos culturais das literaturas de minoria. Rechaçados pelo cânone literário, por onde a obra tem o valor estético e deve ser vista independente de sua questão social, os Estudos Culturais vieram para se unir à luta pelos direitos que embarcaram nas lutas pós-1968: “Na Europa Ocidental/América do Norte, o cerne das preocupações deslocou-se para grupos minoritários, de caráter étnico ou sexual, cujas vozes começaram a erguer-se cada vez com mais vigor” (COUTINHO, 1996, 69). Esta perspectiva descentralizada da literatura questiona veementemente o cânone e desloca a visão “straight white Christian man and property” posta por Spivak como “Sujeito Universal” (DUQUE-ESTRADA, 2005, 160).  
É, então, neste cenário cubano, de prisão e exílio em seu próprio país, que Arenas escreve sua obra. Muitos escritos são dos anos 1960 e 1970, mas só vieram a ser publicados na década de 1980, já no exílio: “A velha Rosa” (de 1966, mas só publicada no começo dos anos 1980) relata a história de uma dona católica de fazenda que não concorda com o sistema comunista e vê seu filho mais velho aderir ao sistema, sua filha casar-se com um negro contra sua vontade e seu filho mais novo, Arturo, relacionar-se com um homem. Ao descobrir a homossexualidade do mais novo, Rosa tenta matar o filho, mas ele foge e ela se mata tacando-se fogo ao corpo; já “Arturo, a estrela mais brilhante” (1971) conta de forma crua a realidade de um campo de trabalho forçado nas fazendas de cana-de-açúcar, onde eram enviados os “jovens contrarrevolucionários” que na maior parte das vezes eram nada mais que homossexuais, como Arenas, enviado a estes locais. No texto, também publicado nos EUA nos anos 80, o autor conta como era a relação promíscua entre os presos e os soldados e revela a perseguição incessante e aterradora. Não se pode acreditar, porém, que Arenas foi condescendente com o regime econômico e social dos EUA. É em “O porteiro”, escrito entre 1984 e 1986, que Arenas relata as desgraças das relações sociais em um mundo supostamente livre e já no texto revela os mistérios da Aids (supostamente antes de ele se descobrir portador do vírus, em 1987). O livro revela um homossexual entendido de forma patológica, pois era assim que Arenas era visto por si mesmo e por Cuba e, pelos EUA, era visto de forma menos óbvia de discriminação, mas colocada nos entremeios dos discursos, continuou sendo visto da mesma maneira equivocada. É nesta narrativa autoficcional, “O porteiro”, que Arenas questiona-se e questiona o mundo (como em toda sua obra) e revela a capacidade de peregrinar entre o real da vida e o real do livro, quando se coloca dentro da própria narrativa, onde questiona-se da viabilidade de alguém como ele de contar aquela mesma história:
“e quanto a Reinaldo Arenas, sua homossexualidade confessa, delirante e reprovável contaminaria todas as nuances do texto, todas as situações, descrições e personagens, obscurecendo a objetividade deste episódio que em nenhum momento pretende ser nem é um caso de patologia sexual” (ARENAS, 1995, 144).
É assim, nesta configuração diaspórica e utópica, de não pertencimento a ninguém e a nada, que se situa Arenas. A afirmação de que seu relato autobiográfico não é eficaz, que ele “coloca-se diante de sua vida como se ela exibisse na forma de uma materialidade empírica já dada, diante da qual só lhe resta fazer uma transcrição para o tempo presente do somatório de acontecimentos (...) que constitui o grande mosaico de sua vida passada” (DUQUE-ESTRADA, 2005, 160-161) revela nada mais que uma apreciação pontual da vida de Arenas e não revela, de forma alguma, um conhecimento eficaz da totalidade de seu trabalho e luta para consigo mesmo. Considerar a tradução do trauma de viver e de ser homossexual como um relato ineficaz não contribui para o processo de emancipação do humano e revela que, de fato, a tese de Lyotard que Duque-Estrada utiliza do “diferindo” mostra-se aqui contra ela própria: ela, como branca heterossexual e da classe dominante, afirmar que o relato autobiográfico de Arenas “perde sua força contestatória”, demonstra que o conflito está sendo dado na língua A, do dominante, e não tem a oportunidade de ter a resposta dada por meio da língua B, do dominado.  
Com isso, deve-se afirmar com justiça que a obra de Arenas é porcamente publicada no Brasil (de uma vastidão que inclui mais de dez obras literárias, cinco peças de teatro, poemas, ensaios e um manifesto contra Fidel Castro, apenas temos traduzidos, e com edições antigas e esgotadas, do selo “Contraluz”, os livros “Antes que anoiteça” [BestBolso, selo da Record: primeira edição, em 1994], “A velha Rosa”, “Arturo, a estrela mais brilhante” [ambos publicados em uma edição pela Record: primeira edição, em 1996], “O porteiro” [Record: primeira edição, em 1995] e “O mundo alucinante” [Record: primeira edição, em 1997]), o que revela seu ainda deslocamento em determinados locais, frente à sua expansão no mundo. O filme “Antes do anoitecer” (2000) adaptou a autobiografia de Arenas e colocou Javier Barden como o autor, fazendo com que o espanhol concorresse ao Oscar de melhor ator, mas esta iniciativa pontual e benéfica para a expansão da obra do cubano (o filme no Brasil é transmitido esparsamente no Telecine, da Globosat) não foi ainda capaz de expandir de forma verdadeira a obra do autor no Brasil, mesmo dentro da Universidade, que carece de estudos em português sobre sua obra e foco quase que exclusivo ao relato autobiográfico “Antes que anoiteça”.  

Bibliografia: 
ALBERCA, ManuelEs peligroso asomarse (al interior). Autobiografía vs. Autoficción. In: Rapsoda. Revista de Literatura, n. 1, pp.1-24. Málaga: Universidad de Málaga, 2009 < http://pendientedemigracion.ucm.es/info/rapsoda/num1/studia/alberca.pdf>;
ALMENDROS, Néstor e LEAL, Jiménez OrlandoConducta imprópria. França: TV Antenne 2, 1984. <https://www.youtube.com/watch?v=oATGXqa69TA 
ARENAS, ReinaldoAntes que anoiteça. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009; 
________________. A velha Rosa. Rio de Janeiro: Record, 1996; 
________________. O mundo alucinante. Rio de Janeiro: Record, 2000; 
________________. O porteiro. Rio de Janeiro: Record, 1995; 
COUTINHO, Eduardo FLiteratura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do cânone. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.3, pp. 67-73. Rio de Janeiro: ABRALIC, 1996; 
DUQUE-ESTRADA, Elizabeth MuylaertSubjetividade e política. In: Devires autobiográficos: a atualidade da escrita de si. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio e NAU Editora, 1ª ed, 2009; 
MISKULIN, Sílvia CezarOutro olhar sobre a Revolução Cubana: a trajetória e obra de Reinaldo Arenas na revista 'Vuelta'. In: Revista Brasileira do Caribe, v.10, n. 19, pp.191-208. Brasília, jul-dez 2009; 
PUCHEU, AlbertoKafka poeta. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 1ª ed, 2015; 
SELIGMANN-SILVA, MárcioQuando o tempo para: fragmentos de uma infância. In: O local da diferença: Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução. São Paulo: Editora 34, 1ª ed, 2005; 
SILVA, María Guadalupe. “El mundo alucinante”: construcción de la disidencia. In: Anclajes, v. 15, n. 1, Santa Rosa: Universidad Nacional de La Pampa, en-jun 2011 <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?pid=S1851-46692011000100005&script=sci_arttext#notas4>
VELOSO, CaetanoEntrevista ao programa Roda Vida. São Paulo: TV Cultura, 1996. <https://www.youtube.com/watch?v=DTY9_w1fh9w>.