sábado, 21 de agosto de 2010

XIII) A via crucis do corpo

Pequeno nasci e assim permaneci depois por toda a minha vida, tendo passado a diminuir o já diminuto corpo a partir da idade velha, onde os ossos já não são mais tão resistentes e começam a definhar por vontade aleatória e própria. Não passei dos um metro e sessenta centímetros de altura, mas mesmo acreditando que poderia utilizar essa informação a meu favor, pelo menos no que se tratasse de Exército e serviços militares, ledo engano. Fui obrigado a ir para Triagem pelo menos umas quatro vezes durante os meus dezoito pobres vividos anos. Foi constrangedor perceber que eu não seria o que imaginava que viria a ser quando chegasse a uma idade decente. Quando era do tamanho relativamente normal para pessoas que tinham a idade que eu tinha, pensava que seria, ao chegar à maioridade, ou muito próximo dela, um homem esbelto, magro, alto e um tanto semelhante ao espelho mais fidedigno que possuía em minha casa, um tio que todos diziam e que eu percebia que era fisicamente parecido comigo. Mas como herdei o lado pigmeu da família, nada adiantaria de medicamentos tomar, pois baixinho era para eu ficar. Portanto, prendi-me a vida toda nos grandes discursos que ouvia quando se estava a esmorecer: dentro de todo pequeno frasco, existe uma grande fragrância. Isso confortava-me de um modo extremamente lamuriento e piegas, ainda que me fizesse uma das pessoas mais felizes no mundo dos anões de jardim.

Tenho, também, para agregar valor à minha situação, manchas que o médico disse serem chamadas de café-com-leite. O braço esquerdo do meu corpo está infestado por elas. Esteticamente, as pessoas me perguntam se é algum machucado, se me feri, se é uma queimadura. Não. São apenas marcas. Um outro médico, dos muitos que já havia ido para tratar dessas questões, ressaltou que poderiam ser manchas surgidas através de problemas emocionais. Sim, problemas da emoção. Eu sou muito emotivo. Choro bastante. Provavelmente é o lado feminino que envolve a dialética do corpo freudiano berrando. Acredito mais na tese de que essas marcas são uma mutação genética do vitiligo que já deixou Michael Jackson, minhas bisavó e prima de segundo grau branquelos.

Ao vir ao mundo, mais pela vontade de meus pais do que a própria, tinha algo na cabeça. Não era juízo, certamente. Na verdade, ao nascer, vim com um ovo na cabeça. Tinha pouco cabelo no todo, mas em volta desse ovo, era só mato. Se eu me visse bebê, sairia correndo com medo de Satanás. Apesar de tudo, Deus é bom e Jesus escreve certo por linhas tortas: meu cabelo cresceu e a cabeça foi preenchida pelo mais loiro e liso ca-belo. Ao constatar que felicidade moribunda dura pouco, aos cinco anos de idade, minha mãe levou-me ao cabeleireiro para um corte radical. Máquina foi passada e depois disso meu pobre coitado lindo cabelo nunca mais foi o mesmo. Hoje vivo da vergonha de um cabelo crespo e armado, que fez minha cabeça, já grande, ficar maior ainda. Já pensei em raspar, mas como deixar aquele ovo, emandioma, cachinho, à mostra? Um tio que é médico disse que eu não poderia operar, arrancando o mal pela raiz, pois, se o fizesse, cabelo nunca mais cresceria naquela área, pois a cirurgia pegaria o coro cabeludo. Tive, então, que resignar-me ao ovo e agradecer pelo fato de ele ser localizado bem no meio do crânio, permitindo que esse cabelo tão ruim o escondesse da sociedade. Meus amigos de escola, na adolescência, aquela fase criada pelo capitalismo estadunidense e que causou-me mais conflitos que tranquilidade, sempre me lembravam que eu alguma coisa tinha na cabeça. Por mais que meu cabelo escondesse a aberração, uma abertura singela se fazia naturalmente, fazendo com que, ao cabelo estando mais curto, pessoas próximas percebessem a situação anormal. Enfim, na hora tentar disfarçar, mas como certas atitudes na vida você não entende porque as toma, um belo dia, quando isso aconteceu, quis ser excêntrico e expus a anatomia de minha cabeça para a pessoa mais fofoqueira da sala de aula. Pronto. A merda já estava feita. Por a adolescência e suas situações e conjecturas ridículas serem passageiras, depois de alguns anos, os mesmos amigos deixaram de fazer chacota de mim por causa disso e passaram a ser pessoas mais conscientes com a deformidade alheia. Até minha família nunca mais comentou disso comigo. Então, um ovo que não se vê, por estar muito longe dos meus olhos, é um ovo que o meu coração não sente. O problema ainda é, infelizmente, ter que rezar para que a pessoa que está me beijando não passe a mão pelo alto de meu cocuruto; vai que ela grita e chama os órgãos de saúde?

Meus pés sempre foram muito pequenos e curvos. Tais características, por mais que sejam admiradas por alguns especialistas em pé, não eram tão agradáveis para mim. Eu queria ter pé de homem, e eles são grandes, chatos e feios. Ao mesmo tempo, minhas mãos eram realmente coisas que eu gostava muito. Pareciam mãos de pianista: os dedos grandes, finos, bonitos definitivamente. O problema estava nas unhas rosas. Por a pressão ser muito baixa, as unhas não eram de uma cor muito natural. Sempre escuta-se se eu pintei as unhas para algum evento especial. Gentalha.

Na barriga de minha mãe fui lutador de boxe. Minha orelha esquerda era comidi-nha na parte superior. Não era nada muito explícito, mas como eu não poderia deixar de reparar, me lamentar sobre e tentar encontrar nos outros a pena e piedade necessárias para que me amassem mais, percebi nisso um obstaculuzinho para a plena felicidade. As minhas orelhas eram grandes, o que era muito reconfortante. Dizem que quanto maior é a sua orelha, mais tempo você viverá. Agarro esta ideia com o maior dos afincos e realmente penso que, pelo tamanho de minhas orelhas e pelas linhas tão grandes que perpassam minhas palmas das mãos, viverei em torno de cem anos, ou mais.

Para não dizerem que não falei das flores, além do defeito do rosa dos dedos, o dedo em que mando tomar no cu tem um calo. A intelectualidade proporcionou-me isso, pois o lápis e a caneta sempre são apoiados nesse pobre e sacana dedo, para escrever alguma coisa. Meus braços eram grandes, sempre o foram, em relação proporcional ao restante do corpo. Pensei que eles já poderiam ter crescido antes e que o corpo depois o acompanharia, mas equivoquei-me, novamente. Os braços grandes continuaram e o corpo parou mais ou menos onde sempre se encontrou: próximo ao chão.

Os mais de uma década de natação não fizeram efeito quanto ao meu maior problema, o tamanho. As únicas coisas que mais cresceram em mim foram os ombros e a cabeça, sendo essa não tão necessariamente em razão da atividade física. Sendo assim, por tudo isso, tive que encontrar algum modo de me socializar, ser bem visto e quisto pelos outros e aceito de modo eficiente na sociedade. Consegui ser, por isso, uma pesso-a de humor muito ácido e sagaz, pois todos os dias, antes de sair de casa para algum evento, piadas, frases e textos eram mentalmente decorados e passados em resumo pela mente, para fazer bonito na hora da apresentação. Simpático sempre fui, para agradar os outros e ser sempre lembrado como aquele cara legal. Os feios e limitados precisam ser os melhores em tudo, porque precisam conseguir as coisas com maior esforço.

Auxiliando na regressão geométrica de meu tamanho, a coluna possuía uma lordose desconfortante. Sendo apenas isso, vá lá, mas a dor que sentia era tanta, que joguei-me, certa vez, ao chão, chorando de lamurientas dores. Falar desses assuntos com vovó era um prato cheio. Não sei se esses casos são hereditários, mas sei que ela igual-mente tinha problema semelhante e, quiçá, bem pior. Compartilhávamos, como se eu também um idoso fosse, que conversa com seus parceiros sobre dor, morte e remédios, nossas colunas curvadas. Esse fato, sempre pensei, ao ver-me diante do espelho, caso não existisse e minha coluna fosse melhor, poderia deixar-me alguns centímetros mais alto, fazendo com que sentisse-me menos inseguro ao chegar em uma balada cool. Apesar de tudo, por algum tempo, a coluna neste estado fez-me uma pessoa ligeiramente feliz. Como era uma lordose, involuntariamente, minha bunda, traseiro e nádegas eram mais arrebitados, como se eu tivesse, mesmo, uma bunda grande. Vocês não sabem como as pessoas gostam de apertar uma bunda grande. O problema é que, com o tempo, – tudo bem, tempo não, alguns segundos, haja visto que com apenas vinte anos minha bunda já não era a mesma – o traseiro começou a, pelo menos na minha imaginação e dentro de minha calça skinny, ficar menor e, pior, sem roupa, via-se todos aqueles caminhos que não levavam a lugar algum, tortuosos e feios, mais brancos que o próprio branco da pele que nunca viu sol, fazendo com que tudo ficasse extremamente visível. Sim, as estrias tomaram conta de minha bunda e, gradativamente, foram alcançando a perna.

Minha forma física sempre foi a de um palito de madeira de espetar dentes em churrascaria. Até que isso é bom. Para uma pessoa pequena, é interessante ser magro, pois é proporcional. Sendo gordo, nem estaria aqui escrevendo, pois já teria suicidado-me há séculos, rolando pelo Alto da Boa Vista, em direção aos carros. Teimosamente, na fase do fim da adolescência, onde a escola vai passando e começa-se a ir mais à festas e, principalmente, boates, inscrevi-me na academia do clube. Verão, época de fim de ano, tudo levou-me a isso. Tanto os corpos sarados da praia quanto a ideia de uma mu-dança completa de vida, proporcionada pelo Ano-Novo. Não sabia que entristeceria-me o fato de que, além de não conseguir, nem por um decreto, pegar corpo, as pessoas que lá iam, mais altas, bonitas e esbeltas que eu, aparentemente compravam roupas novas, de grife, para lá suar. Eu, na sorte, ia com a blusa que estava fora do armário e usada dentro de casa há uma semana. Inferior, mais do que já era, sentia-me. Mas como certas pessoas erram os mesmos erros consecutivas vezes, quis voltar para a academia um ou dois anos depois após a primeira e falida tentativa. Oito meses foram freneticamente passados naquele antro perdido, para absolutamente nada. Os professores, muito motivadores, diziam que cada corpo é um corpo e que cada um possui seu tempo, mas eu não consegui nada, fora um pouquinho de uma barriga mais dura. O que realmente parou-me, no entanto, foi uma crise de pedra renal que me afastaria de lá por apenas um mês, sendo que depois nunca mais voltei. Qual razão, motivo ou circunstância? Gastar dinheiro, suar que nem louco, não conseguir resultados e ainda sentir-me mendigo? Sendo assim, continuo pequeno e fracote, tendo a onda de fama do estilo nerd e do estilo magro, tatuado e descolado, salvo a minha vida, pelo menos por agora.

Tenho vergonha de ir à praia, nem por minha magreza, mas porque meus peitos, ao redor dos mamilos, possuem pelinhos dispersos e eloquentes. Pelinhos! Olho para aquilo e me sinto um ornitorrinco. Por causa dos pelinhos dos meus peitinhos, sentei e chorei. Na competição, os pelinhos do peitinho perdiam apenas para as espinhas na cara. Não é que eu tenha tido muitas, pois já conheci casos bem mais berrantes, mas algumas minhas deixaram marcas, principalmente nas costas, mas isso de menos, pois ainda esconde-se, mas fiquei com duas marcas no rosto, bem ali, na cara de todos. Junto, ainda há as marcas de catapora, outrora adquirida.

Definitiva e peremptoriamente, uma pessoa feia.

Um comentário:

André Ramos disse...

Apesar do personagem (que por sinal me lembrou alguém) ser extremamente depressivo e ter auto-estima no subsolo... Gostei. :)