quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A beleza erótica do corpo em Alair Gomes








Eu realizei uma pesquisa sobre a natureza da experiência artística em geral, e sobre a arte do século XX em particular – Alair Gomes (documentário “Morte de Narciso”, sobre a obra de Alair);

Pois a beleza, Fedro, grava bem isso, apenas a beleza é simultaneamente divina e visível; ela é, portanto, o caminho do sensível, ela é, meu pequeno Fedro, o caminho pelo qual o artista alcança o espírito – Thomas Mann (livro “Morte em Veneza”).

          O fotógrafo Alair Gomes (1921-1992) dedicou cerca de 30 anos de sua vida – desde os anos 1960 até sua morte – a fotografar o homem em suas variantes. Engenheiro por formação e professor universitário, Alair – originário de Valença, no estado do Rio, e radicado até o falecimento na capital fluminense –, de sua janela no bairro de Ipanema, à beira-mar, e dentro de seu estúdio em casa, pôde ter uma visão privilegiada de seu mais caro objeto de adoração, sua mais cara obra de arte – o corpo do homem (em seu pelo, em seu falo, em seu ânus, em sua virilidade, em sua eternidade endeusada e bela de escultura greco-romana). Desta forma, pretende-se com este artigo fazer uma análise de toda trajetória sentimental, artística e, também, política de Alair Gomes, tendo como ponto de partida a mostra mais recente realizada no Brasil sobre seu trabalho, em 2015.
Considerado um dos principais difusores da arte homoerótica no Brasil, o fotógrafo registrou dezenas de imagens de corpos masculinos em situações como: exercitando-se na orla da praia, banhando-se no mar da Zona Sul, conversando entre si na calçada de Ipanema, em competições esportivas, dentro do estúdio em poses sinuosas e, em contraste, a estátua mesma, a própria coisificação de sua obsessão. Em um contexto de expressão marginal, Alair teve dificuldades tanto em ser reconhecido enquanto artista em seu país, como também em se considerar um artista por meio de seu ofício. De acordo com Maurício Bentes, artista plástico e um de seus assistentes mais importantes, Alair percorreu um caminho extenso até poder vislumbrar seu trabalho como arte. Bentes destaca que apenas a partir de exercício de descobrimento e diálogo entre artistas da oficina de cultura do Parque Lage que Alair pôde vislumbrar-se como produtor de conteúdo relevante, exibindo a partir de então suas imagens para o público: “Eu fui um dos que ajudou a entender essa obra como obra artística – que era uma coisa que ele fazia pessoalmente, só para ele mesmo” (LACERDA, 2003). Já Eder Chiodetto, curador da última mostra sobre Alair, ressalta que, em vida, o fotógrafo consegue fazer apenas algumas exposições, mas que só após sua morte que um curador francês conhece seu trabalho e o leva para uma grande exposição em Paris, na Fundação Cartier: “(é então que) a obra dele começa a ser de fato reconhecida, inclusive no Brasil” (CHIODETTO, 2015c).
Sendo assim, tendo como ponto de partida a dita marginalidade da obra de Alair Gomes, vide seu conteúdo explicitamente erótico e homossexual, que este trabalho irá focar analiticamente a exposição “Alair Gomes: percursos”, com a intenção de problematizar a imagem de corpo que o artista pretendeu registrar em suas imagens. Realizada na Caixa Cultural de São Paulo, entre julho e outubro de 2015, a mostra teve por meta fazer um trajeto – como o nome já supõe: percurso – da obra de Alair, desde seu princípio até seu fim. Trajeto esse que tanto nos remete ao do artista enquanto artista, como também ao corpo enquanto caminho – corpo este analisado a partir de seu detalhe e de seu contexto: desde seu mínimo até seu máximo (o pelo que encontra o suor/gozo, dentro do estúdio, até o caminhar do desconhecido com rosto impossível de se identificar pela distância). Obra essa que nos põe de frente ao homem moderno banal que percorre em seu cotidiano um lugar mortal – a praia da Zona Sul de Ipanema – e do homem endeusado/angelical em escultura e em santo cristão diante de uma ancestralidade divina/heroica que leva o corpo à sua eternidade estética e pura: eternidade essa que resvala nas tentativas de pureza e pujança da obra de arte.
Esta conexão entre o belo greco-romano e o corpo masculino pode ser explicada diante de algumas perspectivas. Engenheiro – e, portanto, conhecedor de matemática, assim como da filosofia – Alair conectou-se logo e para sempre ao estudo do estético, da forma: da eternidade por meio desta perfeição dada pela forma. Segundo o embaixador Paulo Franco, já em 1945, quando conheceu Alair, ele era um estudioso da filosofia:
Ele já tinha um imenso interesse por filosofia e ele tinha formação em matemática porque era engenheiro e isso facilitou muito os estudos de física e ele se orientou um pouco para a filosofia das ciências. Daí, toda a ideia que ele explorou que a indeterminação da física moderna permitiria, vamos dizer, uma brecha na qual se poderia entrar a liberdade e a criatividade humana (LACERDA, 2003).

Homossexual praticante, a presença do corpo atlético e belamente definido também foi constante em seu ofício, iniciado quando ele já beirava os 50 anos (e, portanto, a velhice – quanto mais a idade avançava, mais ele queria ir de encontro à juventude captada em seus registros, tal como um movimento antropofágico de alimentação pela beleza). Portanto, a conexão entre um estudo da filosofia e suas conclusões sobre o fazer artístico (bases dos estudos sobre poesia, literatura, política, ética etc. estão baseados nos filósofos clássicos gregos) levam à relação entre a homossexualidade e cultura da Grécia Antiga, principalmente, que até hoje permeia a concepção de corpo saudável e desejável (que se deseja em outrem e que se é desejado para si) e a visão que o público geral tem daquele período: época em que era aceita socialmente a relação gay. A realidade é um pouco conflitante, já que havia a relação entre o homem mais velho e o mais novo, mas com o intuito de instrução e pedagogia. Caso um homem adulto quisesse, por exemplo, manter uma relação sexual estável (principalmente passiva) com outro, isto seria mal visto (SPENCER, 1999, 40-65). Mas em linhas gerais, aquele período estereotipou-se como de complacência para a homossexualidade. A questão do esporte (as primeiras Olimpíadas – o exercício – o corpo desnudo para luta diante do povo) são temas retomados no século XX (primeiras Olimpíadas do tempo moderno) e caros também para a obra de Alair (a imagem do atleta e da beleza do atleta). Segundo Bentes, Alair transformou seu Arpoador em sua Olímpia particular, retomando aquela época para o hoje – sendo esta sensação de anterior com atual, em contraste e em consonância exacerbada por meio das exposições em que a fotografia de uma estátua grega (ou até de uma armadura medieval) é posta ao lado da foto de um corpo desnudo masculino: “(Alair) valorizava o Eros como o primeiro deus, mesmo, como o primeiro sentimento divino e chegava quase a ser tântrico, de uma certa maneira, mas na verdade era um hedonismo muito clássico” (LACERDA, 2003).
O corpo nu que é representado tal como a estátua grega, tal como a pintura renascentista, tal como a fotografia do século XX que ele não buscou representar como escultura-pintura (pois acreditava que a fotografia era menor), mas que no fim conseguiu sobrepor a estas duas iniciais formas de arte (a fotografia para além da escultura e pintura, na representação do corpo belo): “(Alair) começa dizendo que ele não vê a fotografia como arte. Ele fala: acho que uma fotografia única nunca pode competir, por exemplo, com uma pintura, com uma imagem que vai sendo construída ponto a ponto, pincelada a pincelada, por um artista, por um pintor” (CHIODETTO, 2015b). A fotografia que Alair vê como uma devolução mecânica do real teria dificuldade em ser vista como arte por uma obra única, completa o curador e, então, com seu sequenciamento – evento em determinado tempo, o fragmentando e após reunindo – leva sim a uma maior beleza da arte de fotografar. Tais sequências receberam nomes e foram organizadas de modo a transmitirem essa correspondência constante entre o belo – a arte – o corpo – o perfeito, do greco-romano ao barroco: “(...) sequências de imagens que ele elaborou inspirado em sinfonias e sonatinas e em altares religiosos, como na composição em trípticos”, destaca o catálogo de “Percursos” (CHIODETTO, 2015a). Sinfonias e sonatinas jogam com o harmônico – o corpo do jovem que Alair fotografa é harmônico: se encaixa no molde do musculoso, do rosto que Da Vinci projetou como geometricamente (matematicamente) organizado. Os trípticos – conjunto de três imagens em sequência de determinado momento da vida do rapaz belo – nos leva a se ajoelhar diante da imagem e rezar por ela, pedindo por sua beleza e sua deslumbramento, tal como podemos nos ajoelhar e rezar diante da imagem tríptica religiosa: o corpo como objetivo religioso de adoração, reza e devoção obsessiva.
Com 300 imagens trazidas do acervo do artista guardado na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, a mostra é um recorte de um total de 150 mil negativos e 15 mil cópias que desde a morte do engenheiro-fotógrafo tornaram-se de domínio público. Contrastando com a mostra realizada em 2012 na Bienal de São Paulo para homenagear os vinte anos de morte do artista, esta de agora na Caixa traz duas séries inéditas ao público, como a realizada em 1969, na Praça da República – um de seus poucos registros da capital paulista – e uma série de atletas em situações esportivas na orla de Ipanema. Esta da Praça da República é uma série que revela o cotidiano dos hippies no local, em um retrato da cultura jovem da época que, inicialmente, pode passar a impressão de se desconectar com o restante da obra miticamente erótica, mas na verdade coloca em cena uma potência de liberdade política e sexual muito forte: não é o corpo estático tal qual Pigmaleão e admirado tal qual Narciso admira-se, mas em circulação e comunicação entre si. Como destaca o curador Chiodetto:
Dentro desse espírito libertário da contracultura, do sexo livre, da pílula anticoncepcional, dos homossexuais, como ele, poderem se manifestar publicamente de uma forma menos reservada: o trabalho dele vem nesse contexto. Até por isso que a gente abre a exposição com essa série inédita dos hippies na Praça da República (...) porque para mim, é muito importante contextualizá-lo dentro de sua época: é um ser poético e político, pensando seu tempo (CHIODETTO, 2015c).

            Tendo encontrado, então, a beleza da fotografia por meio do sequenciamento – marca característica de sua visão sobre os homens da praia de Ipanema –, Alair quis mostrar ao mundo, por meio de seus estudos filosóficos e estéticos, essa comparação entre o amor (pelos homens) e o divino (o heroico, que salva / o erótico, que salva / Eros, herói, erótico), em assimilação já realizada pela filosofia grega antiga:
A convergência semântica entre amor e herói, que já está presente em uma etimologia imaginária do Crátilo platônico, no qual Sócrates, de maneira jocosa, deriva a palavra herói de amor, ‘porque os heróis são gerados por Eros’, realizou-se verossimilmente no âmbito da ressurreição neoplatônica dp culto popular dos heróis e da demonologia teúrgica (AGAMBEN, 2007, 195).

Divino maravilhoso esse que ele buscou e encontrou, mas que em determinado ponto o engoliu. Catalisador decisivo para o crescimento da beleza do mundo, Alair projetou em sua obsessão, em seu ser amado (Alair trabalhando a partir da linguagem do apaixonado, do ser enamorado à la Barthes), sua necessidade de vida. Tendo começado a fotografar a beleza e a juventude a partir de seu início de velhice, o fotógrafo acompanhou, com o passar dos anos, o avanço de uma juventude e de uma cultura queer que foi sendo engolida pelas desgraças da vida – pela desgraça de uma velhice que chega cedo demais. Nos anos 1960 foi registrada pelas lentes de Alair a efervescência da contracultura, do hippie, do amor livre, da emergência gay, das drogas como libertação. Já no fim dos anos 1980, com o assentamento de uma epidemia de Aids que maldosamente maculou uma geração, Alair encontrou seu fim. O fim de sua beleza como obra de arte morreu junto do ápice de um momento onde a beleza do homem gay estava sendo posta à prova. Assassinado por um de seus namorados – segurança de uma boate – Alair encontrou o fim de seu percurso em 1992. Morto tal como Pier Paolo Pasolini (que fotografou o belo da mesma forma – ainda que de modo diferente). Os que sempre buscaram o belo, em todo momento, foram boicotados por ele. A obra de arte que Alair correu atrás – ele o homem mais velho, que inicia pedagogicamente o mancebo no mundo do conhecimento (tal como o crioulo homossexual e mais velho em “Bom-crioulo”, de Adolfo Caminha, de 1895, considerado o primeiro romance brasileiro homossexual, iniciou seu jovem branco e amado / tal como na Grécia Antiga). Encontrando a juventude em sua velhice progressiva. Alair foi assassinado por uma de suas fotografias, em seu apartamento de Ipanema de frente à praia, em 1992 – a juventude o matou, assim como morreu Oscar Wilde diante de seu retrato; assim como, em “Morte em Veneza”, Gustav Aschenbach morre diante de sua bela obra de arte; assim como Frenhofer morre após ter queimado sua tela da perfeição de Balzac; assim como o Bom-crioulo de Adolfo Caminha mata seu objeto amado diante da traição.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1ª ed, 2007;
CHIODETTO, Eder. Catálogo “Alair Gomes: percursos”. São Paulo: Caixa Cultural, 2015a;
__________________. Entrevista à Revista Brasileira. Brasil, 2015b. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=MTaGQ7WbfTc>;
__________________. Entrevista ao programa “Metrópolis”, da TV Cultura. Brasil, 2015c. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=CrBnyjry380>;
LACERDA, Carlos Luiz. A morte de Narciso. Brasil, 2003. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ZCqIrY3sxwA>;
SPENCER, Colin. Homossexualidade, uma história. Rio de Janeiro: Record, 1ª ed, 1999;

Imagem feita por Alair Gomes – o corpo como índice (Symphony of erotic icons)