segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Traduzir-se, ou velhos que parecem velhas


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
alomoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questãode vida ou morte _
será arte?

sábado, 21 de agosto de 2010

O COMPLEXO MELANCÓLICO ou as veias carcomidas de uma vida bandida

O
COMPLEXO

MELANCÓLICO
ou As veias carcomidas de uma vida bandida



GUIDO AROSA


Desejo este livro a todas as frustrações, pecados, traumas e artes disponíveis, vividas, contadas e lidas, que proporcionaram-me vida criativa.


“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.” A hora da estrela – Clarice Lispector

I) Prefácio

Escrevo este livro desde a segunda quinzena de dezembro de 2007. Inicialmente, acreditei que estaria escrevendo um romance com “A vida da morte”, hoje o primeiro conto de “O complexo melancólico”. Isso ocorreu porque percebi que não possuo, ainda, disciplina suficiente para escrever uma estória grande do começo ao fim, que exige tempo, compromisso e técnica. Ao escrever instintivamente e tirar as coisas que saem de meus dedos de minha própria experiência pessoal e literária, constato que trabalhar com uma técnica, nesse caso, de um romance, seria ultrapassar necessidades momentâneas latentes, que obrigaram-me a colocar na tela do computador relatos curtos, mas nem por isso menos densos, de passagens consternantes e liricamente palpitantes dentro da mente do escritor.

“A vida da morte” nasceu pela ainda forte presença de “Cem anos de solidão”, romance do colombiano Gabriel García Márquez, do ano de 1967, em minha vida. Ao perceber que, apesar de todas as passadas tentativas, nunca havia conseguido terminar de escrever alguma coisa, disse para mim mesmo que, a partir daquele momento, o que escreveria não seria jogado fora e nem esquecido. Acho que consegui, pelo menos até o presente momento, guardar tudo o que já produzi, felizmente. Ainda que tivesse, mentalmente, forte presença lírica de “Cem anos de solidão”, o primeiro conto deste livro não chegou a ir para onde em princípio quis chegar, tendo sido levado para outros caminhos, não menos recompensadores.

Sendo assim, ao pensar que “A vida da morte” seria um romance de estilo realista fantástico, tão bem propagado durante a segunda metade do século XX pela América Latina, por Gabo e também por Mário Vargas Llosa, o nome deste livro seria este mesmo. Um mês depois, mais ou menos, ao perceber que aquilo não seria um romance, mas sim um conto, estilo que veio para favorecer meu modo de escrever, facilitando minha vida e permitindo que chegasse a fazer um livro, por mais que este não fosse um romance, resolvi colocar outro título para a obra, pois pensei que não seria necessário pôr um nome que seguisse o de um dos contos, sendo este hierarquicamente mais alto em relação aos demais. Com isso, “As veias carcomidas de uma vida bandida” estava crescendo, progressivamente, diante de minha inconsciência quanto gente.

Mas como, ainda que tarde, a lucidez chega à vida de uma pessoa, constatou-se, única e exclusivamente, por mim e por mais meia dúzia de pessoas, que esse título seria mais compatível a um melodrama televisivo mexicano, ou algo do gênero. Por mais que não tenha posto este nome em meu livro, sempre gostei muito dele e por isso o exponho aqui, para que a humanidade tenha conhecimento de tão bela criatividade que um dia eu cheguei a possuir. Ou não.

Há de se ressaltar que em nenhum (?) momento este livro é autobiográfico e nem revela estórias reais. Um escritor utiliza suas experiências de vida para fortalecer argumentos e incrementar uma narrativa, mas não há razão para se crer que é um relato juvenil fidedigno de minha pessoa. Como se vai garantir que Guido Arosa é mesmo meu nome? Eu posso estar mentindo, afirmando que é, sendo que, na verdade, é um pseudônimo, ou mesmo pode ser tudo ao contrário. Na verdade, escritores põem na voz das per-sonagens coisas que eles mesmos queriam dizer, sentir e ser, mas conseguem tirar o deles da reta pelo fato de terem dito que é “ficção”. Eu digo, concluindo, que meu livro é ficcional. Acreditem ao querer, ou não.

Já tendo dito isto anteriormente, nunca tive muita disciplina para escrever, assim como também tinha meus compromissos estudantis para cumprir, o que impedia-me de sempre estar a trabalhar nas palavras. Além do que, não é sempre que a inspiração está ao seu lado e o bloqueio mental ainda faz com que você não se sinta completamente dentro de sua suposta profissão, a de escritor. Deste modo, até hoje, janeiro de 2010, não sinto-me um, pois ainda não publiquei nada – vamos ver se alguma editora desejará acreditar em “O complexo melancólico”. Acredito ser mais um jornalista do que qualquer outra coisa e ainda não tive o reconhecimento da qualidade duvidosa destas linhas. Por isso, chego hoje, dois anos e um mês depois, ainda finalizando a obra, que não passa de poucas páginas.

No que se refere aos agradecimentos para a conclusão literária, reconheço a participação de Wesley Carneiro na elaboração de um dos contos, “Os fracassados”, pois foi feito em um dia em que fui, a convite dele, participar de uma roda literária em um apartamento de uma mulher, conhecida dele, que infelizmente não lembro-me do nome, no Leblon. Sei que no mesmo edifício vive Ney Matogrosso, que nasceu, aliás, no mesmo dia que eu, apenas para vocês terem uma noção de minha relevância astral. Os ou-tros contos são dedicados a Gabriel García Márquez, Fiódor Dostoievsky, Clarice Lispector e Agatha Christie, a última por ter me incentivado a ler compulsivamente e os demais na questão de conteúdo. Antes que me esqueça, quando falo de poemas, falo de Dilma Melo, professora de Literatura.

Não sei, definitivamente, se serei relevante para alguém, ainda que saiba, apenas, que tudo foi escrito em virtude de uma necessidade explicitamente interna de expor conceitos e extravasar a sempre latente necessidade de escrever e colocar em algum lugar algumas de minhas ideias tão díspares e confusas. Desagradando alguns, peço desculpas e aconselho a irem ler alta literatura. Agradando a poucos, pelo menos aos familiares e amigos piedosos, já me é o suficiente. Rejeição, então, não será tão grande e nem tão dolorosa.

Ao concluir o parto, muita água já rolou e eu não sei se progredi. Acho, enfim, que alguma coisa, pelo menos, eu fiz: escrevi nem cem páginas de texto do Word, que espero que tornem-se mais páginas quando em livro isto tranformar-se. Livros grandes sempre são mais bonitos na estante e sempre trazem uma aura mais séria, intelectual e de antemão boa literariamente falando.

Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 2010
Guido Arosa.

P.S.: Tentei, tentei, tentei, com todas as minhas forças, mas infelizmente havia já algo impregnado em mim, que impedia-me de fugir do nome. Então, o livro não tem como não ter em seu título a novela mexicana.

II) A vida da morte

Arcádia Gonzáles pariu Loló em um dia chuvoso de abril. Não era muito comum tal fenômeno meteorológico em tal mês. Naquela cidade esquecida por Deus e pelo Diabo, se chove é por sorte, muita sorte. A população acreditava piamente que se o rebento nascesse em dia de sol, teria sua saliência para fora e, se nascesse em dia de águas, teria sua saliência voltada para dentro. É por isso que existiam tantos machos em um espaço tão restrito. Difícil perceber que aquilo era uma cidade. Se fosse constituída de quatro avenidas principais, oito ruas de menor importância e umas duas praças, era muito, mas já bastavam para encher de satisfação e alegria os moribundos semi-analfabetos e completamente desprovidos de senso crítico. O lazer se constituía em escutar ao rádio sintonizado na Estação Central todos os dias santos e não santos, às vinte horas. Cinema ninguém sabia que tinham inventado. As missas de domingo eram obrigatórias para todos, sendo que as viúvas se enfurnavam cotidianamente no local escurecido e repleto de imagens divinas trazidas pelos Zulus em séculos passados. Elas oravam por seus maridos ou amantes, esperando que não os castigassem pelos pecados cometidos em vida. Como poucos sabiam ler, poucos livros eram lidos por esses poucos. Vila Boa, definitivamente, era uma aldeia feita por fanáticos religiosos, por pessoas que perceberam que os ventos uivantes vindos do sul enlouqueciam os que por muitos já eram considerados birutas e, por fim, por homens mal cheirosos que gostavam mais do laboro do que de casa, de mulheres reprimidas que só sabiam dar à luz, rezar e lavar a louça, de crianças que brincavam com as vacas e os porcos e por adolescentes cheios de tesão retido.

Ninguém desejou boa hora para Arcádia Gonzáles. Santa Goretti fizera chover e, em consequência do fato, todos estavam assentados em seus respectivos quintais observando o milagre espetaculoso. Além de fazer crescer mais rapidamente as árvores, esse acontecimento faz com que as abelhas amarelas acendam seus traseiros com mais força, sendo as estradas melhor iluminadas e não deixando que os viajantes se percam pelos tortuosos caminhos que levam até a Capela de San Martin de Allegros. Um dos que estavam estarrecidos diante do dilúvio era o progenitor de Loló. Benito Prestes nem se deu conta dos berros doloridos de sua esposa que, notando a ausência do bem amado, aceitou a idéia de ter que ter a filha sem ter ao seu lado quem sempre quis. Andou cambaleante, até sua cama de jacarandá, comprada em sua lua-de-mel, e trazida até sua casa pelos escravos centenários, que um dia foram pertences de seus bisavós maternos. O tempo como seu inimigo, não se preocupou com alguns detalhes que jamais passariam despercebidos por gestantes mais atenciosas. Abriu as pernas e pediu para que continuasse viva depois daqueles minutos intermináveis. Saiu. Se chorou, Jesus a calou. As duas, tanto uma quanto outra. Pois eram fortes. Todas as mulheres daquela família o eram. Fortes por fora e, por vezes, nem tanto por dentro. Mas isso não vem, não vinha e nunca virá ao caso. O que importava mesmo é que as moças daquela prole conseguiram passar por tudo nessa vida cuspida por algum ingrato.

Benito Prestes sempre frequentou os bailes promovidos no Quartel General de Figueiroa. Arcádia Gonzáles nunca foi muito adepta aos festejos. Ele aprendeu com os amigos o real significado da diversão. Ela foi ensinada pelas freiras ortodoxas da Igreja Católica que ler a cartilha sempre antes de todas as refeições e antes de dormir era fundamental. O dia em que se conheceram era de comemoração. E as comemorações na cidade eram concebidas na Igreja de Nossa Senhora dos Lamentos ou no Quartel General de Figueiroa. As espirituais na primeira e as carnais no segundo. Como bailes não são muito bem vistos por padres nem freiras, eram realizados sempre aos sábados no Quartel. No baile em que se conheceram, seria eleita a pessoa que viveria por mais anos dentre todos os presentes. Dádiva única dada para a mulher, preferencialmente, mais bela dentre todas. A premiação se realizava em um espaço em média de cento e vinte anos, pois é a expectativa de vida das mulheres anteriormente condecoradas. E uma senhora só pode colocar a Coroa da Centenária quando a antiga dona sucumbir.

Para se chegar ao Quartel era difícil. Isso por causa da densa Floresta de Eucaliptos, que mata sem piedade os desejos de plantio de qualquer outra forma vegetal e também pelas montanhas desproporcionais ao tamanho dos habitantes daquela delimitação territorial: altas e cobertas de gelo durante metade do ano. Nasceram muito depois da construção de uma das melhores rodovias do país. Chamar-se-ia Rodovia Calcaso, mas o terremoto que assolou o estado durante três dias consecutivos, fez com que surgisse, bem no meio desta, uma das maiores montanhas vistas pelos homens de então. Esses dois fatores citados anteriormente se transformavam em empecilho para a passagem de indivíduos para o local das festividades carnais.

Benito Prestes, com seu espírito aventureiro e a falta de moedas de ouro no bolso, juntamente com seu grande companheiro Pepe Legrel, percorreram de pés dez quilômetros, até chegarem, depois de algum esforço, ao Quartel. Já Arcádia Gonzáles decidiu-se a não sair de casa. Preferia muito mais praticar a rotina rotineira do que arriscar-se por entre matas e pedras grandes para chegar a uma bobagem de entrega da Coroa de Não Sei O Quê. Depois de tudo, nunca se achou bela. Então, não via coerência em ficar deslumbrando a beleza alheia, em detrimento da própria. Mas por insistência das dez irmãs que possuía, cedeu.

Benito Prestes chega com Pepe Legrel a “Festa da Premiação da Centenária”. Chegaram bem antes de todos. Para o ócio não tomar conta de seus corpos e mentes, resolveram caminhar por entre os soldados que lá estavam de serviço, para espairecer um pouco. Como não tinham relógio nem sabiam muito bem os números, noção nenhuma havia da parte deles do horário de início da grande premiação; sabiam apenas do dia em que seria realizada. Ainda do outro lado de Vila Boa, Arcádia Gonzáles e outras dez Gonzáles iam de carroça, puxada por quatro jegues cor de mel, acabados e com as patas calejadas de tanto caminhar. Quando conseguiram chegar, viram todas aquelas pessoas que sempre viam. Todas aquelas pessoas que sempre souberam o nome. Todas aquelas pessoas que sempre... sempre era a mesma coisa.

Arcádia Gonzáles, repentinamente, sem nenhum aviso prévio, sentiu-se estafada da vida. Cansou-se daquela vida que vivia tão igualitariamente há dezessete anos. Parou, deixou as irmãs continuarem o caminho para o centro da multidão de meia dúzia de quatro e respirou fundo. Dar um escândalo, não daria, porque isso não é coisa que se faz. Simplesmente olhou para trás e quis que sua vida fosse um pouquinho oposta do que era.

Refletiu. Flutuou até a barraca em que se vendia água benta e pediu um copo. Lá se vendia e se comprava de tudo. (A vendedora charlatã, dona da birosca, quando se viu desempregada, foi até o lavabo de sua residência e abriu a torneira. Pegou uma garrafa de plástico e colocou toda a água dentro. E com uma caneta escreveu, em letras ruins: “Água benta do Rio Jordão”. Nunca mais precisou pedir dinheiro emprestado para terceiros.) Depois de comprar a suposta água benta, Arcádia Gonzáles foi até o banheiro público, que fica afastado do meio do povo. Segurando o copo com toda a força que possuía em suas grossas mãos, tomou. Beber a água seria mais eficaz do que jogá-la na testa. Assim, a súplica subiria mais veloz ao céu e chegaria com mais nitidez aos ouvidos do Senhor. Engoliu tudo. Pediu outra vida. Pediu mais amor. Pediu mais beleza. Pediu mais furor. Pediu mais, mais, mais, cada vez mais.

Benito Prestes não imaginava que se lembraria daquele dia como o último em que veria os oficiais do exército com bons olhos. Ele e seu amigo cansaram-se de tanto nadar por aquele mar de uniformizados e resolveram voltar para onde já deveriam estar concentradas as pessoas. Logo que se aproximaram, os indivíduos começaram a berrar como se fossem leões famintos, sedentos por carne fresca. Pepe Legrel disse para Benito Prestes que os portões haviam sido abertos e que os comes e bebes começariam logo. Pois, como sempre se foi de costume, comia-se e bebia-se muito, apesar da miséria de grande parte das famílias. E sempre há motivos para se comemorar e comer, não necessariamente nessa ordem. A lógica seria esta: comer e beber, depois iriam todos aos seus respectivos assentos, para desfrutarem da semi-sesta. E, por último, depois de meia hora de descanso, assistiriam ao desfile das pré-candidatas, escolhidas a dedo pelo locutor da Estação Central. No fim das contas, resumindo-se os acontecimentos, Herundina Gonzáles, irmã mais velha de Arcádia Gonzáles, ganhou o grande troféu. Seria destinada a viver por, no mínimo, mais cem anos, em razão de que já tinha vinte e seis de idade. Depois que todos se retiraram do Salão, seguiram para fora. Várias eram as atrações no pátio. Barracas de beijo por duas moedinhas, maçãs adocicadas, gordas mulheres barbadas, elefantes amigos de ratos. Para se divertir tinha que se gastar, mas Pepe Legrel era primo de sexto grau de uma alta patente do Exército Vermelho. Então, nem Pepe Legrel nem Benito Prestes teriam que se incomodar.

Era a última barraca da última fileira de barracas. Vendiam-se fogos de artifício que se mirados corretamente para a pessoa amada, essa se apaixonaria perdidamente. Benito Prestes correu por muitas mulheres durante seus parcos dezoito anos. Nenhuma o interessou por mais que duas horas. Pepe Legrel nem isso. Virgem sempre foi e amar não estava ao seu alcance, segundo ele mesmo sempre frisou. Como era tudo regalia, Benito Prestes quis aproveitar tudo até a última gota.

Os fogos foram comprados e lançados o mais rapidamente possível. Afastaram todas as pessoas que se encontravam por perto e esperaram sorte para que o objeto alcançasse certamente a mulher que sempre olhou, mas nunca se aproximou. Arcádia González foi a imagem mais lúdica e sexualmente atraente que já chegou a seus olhos. Mas nunca foi mais que isso, nunca chegou mais perto, nunca se declarou de fato. Não via como possível amar uma pessoa que apenas havia olhado. Apesar de tudo, isso foi há tempos atrás. Agora, vendo a oportunidade que sempre sonhara, não a deixou ultrapassar seus dedos. Em menos de duas horas, Arcádia Gonzáles tornou-se Arcádia Gonzáles Prestes. Casaram-se longe dali. Isso porque o pai de Arcádia Gonzáles não poderia saber, pelo menos por enquanto, do matrimônio. Ele achava a filha muito nova para casar, queria que ela se enrolasse com uma pessoa que ele mesmo escolhesse e era homem não entrável na casa da família de Benito Prestes. Se unir a alguém foi uma forma de resposta para a água benta tomada por Arcádia Gonzáles. Porque se unindo àquele homem que um dia olhou e se apaixonou, poderia ser livre das irmãs e do pai que tanto a oprimiam. Para Benito Prestes, casar significaria usufruir do atributo que Deus dá para toda homem quando nasce: sustentar uma mulher e, posteriormente, um filho.

Na festa ficaram a irmã de Arcádia Gonzáles, escolhida para viver praticamente para sempre, e Pepe Legrel. Ninguém consegue explicar ao certo porque ela se chegou a ele nem porque ele se chegou a ela. O fato é que os dois resolveram ficar juntos. Ela sabia que ele tinha tuberculose, doença adquirida quando foi retirar leite de uma vaca possuidora da mesma doença, e que não viveria por mais do que dez, quinze anos. Ou seja, ficaria viúva por muito tempo. Foram morar ao lado do rio Serpa. Quando Arcádia Gonzáles e Benito Prestes regressaram da lua-de-mel, foram dormir em um quartinho perto da cozinha de Pepe Legrel e Herundina Gonzáles. O pai das duas morreu pouco tempo depois da “Festa da Premiação da Centenária”. Então, nem brigou muito com o casal, por causa da união. De passageira, a estada do casal se fez permanente, na casa alheia. E isso não foi problema para os donos da residência. Casa cheia, festa sempre. A casa passou a ser de todos os quatro.

Herundina Gonzáles Legrel se viu incapacitada de pegar barriga. Tinha um problema com os ovários, causado pela grande e contínua exposição ao frio da região em que moravam. Para sua revolta e inveja, sua irmã era mais fértil que cadela no cio. A primeira gravidez foi de Loló Prestes Gonzáles.

O tempo foi passando e Loló ficou mais e mais bela e sedutora. Os homens, os meninos e até as meninas e mulheres não conseguiam não olhá-la. Era um torpor. Quando de seu aniversário de quinze anos, o Exército Vermelho resolveu fincar pés próximo ao rio Serpa, local estratégico para a luta armada entre o Exército Vermelho e o Exército Amarelo, respectivamente de esquerda e de direta politicamente. Tal conflito foi causado por causa de uma questão familiar muito pouco esclarecida pelos periódicos do país e alcançou proporções nunca antes previstas. Uma guerra civil se fez presente e teimava em estar a complicar a vida e rotina das pessoas.

A idade mínima para se entrar no serviço militar era de dezesseis anos e a máxima de vinte e quatro. Então, os varões que lá trabalhavam eram os dos mais bem apessoados para as vistas femininas. Lá havia um homem conhecido com Asdrúbal Trombone. Ele, no momento em que se retirara do local de trabalho e fora à feira de peixes comprar mantimentos para a alimentação da tropa, vira Loló sair de sua casa. No momento, viu borboletas chegarem perto dele e o levantarem até o céu. Sensação semelhante, tinha certeza, nunca mais haveria de sentir igual. Era por aquela jovem, então, que lutaria e ganharia a guerra. Não tardou para começarem a trocar correspondências. Nelas, ele não se envergonhava em expor o motivo pelo qual guerreava: ela. Iria até as últimas consequências, apenas por ela. Loló criou também um sentimento por ele, e se martirizava cotidianamente por ser a causa de tanto cansaço em um pobre rapaz.

A Guerra Civil Latinera durou quinze anos. Acabou logo um dia após a morte de Pepe Legrel, tubérculo convicto. Asdrúbal Trombone ainda não tinha dado um beijo em Loló Prestes Gonzáles. Apenas as letras unia-os.

Demóstenes Josino, comandante-em-chefe do Exército Vermelho, deu a triste notícia para Loló, e apenas para ela, pois ninguém da estirpe, em quinze anos, soube da troca de confidências amorosas entres os dois seres humanos. Asdrúbal Trombone morrera em batalha, não um dia antes de a guerra terminar, como Pepe Legrel, mas sim no antepenúltimo dia. Ela aprendera com a tia e a mãe a ser uma mulher forte, pois assim eram todas as mulheres Gonzalesas. E, por isso mesmo, viu-se obrigada ao suicídio. Por ser tão determinada e teimosa, definiu em sua mente que se não conseguira trocar um beijo com Asdrúbal Trombone em vida, que fosse, então, na morte.

Pegou o cadarço do sapato mais novo, o amarrou no lustre e pronto. Antes deixou uma carta para os pais. Foi aí que se teve início o ódio de Benito Prestes pelo Exército. Com a morte da filha e a vitória do Exército Vermelho, tomou-se de ódio por todo o corpo. Decidiu-se em uma atitude. Sozinho, se encaminhou para a sede do Exército e declarou nova guerra. Ao contrário da outra, que durou por volta de quinze anos, esta, quinze minutos. Sucumbiu em dois tempos. Um sargento desavisado se incomodou com a berraria ministrada pelo homem, que atrapalhava seu almoço. Um tiro de fuzil e pronto. O serviço estava feito.

Herundina Gonzáles e Arcádia Gonzáles estavam sós. Arcádia Gonzáles não durou muito. Tomada por uma depressão profunda, ascendeu aos céus por inanição. Para não se ver completamente sem companhia por pelo menos mais setenta e poucos anos, Herundina Gonzáles deixou o corpo da irmã ali, bem ao seu lado, na mesa de jantar, para que, com isso, pudesse ter alguém com quem conversar. As suas outras irmãs a abandonaram depois de ter ganhado a vida longa, tempos atrás, por causa do ódio e inveja. Elas não conseguiram digerir a altivez que assolou Herundina Gonzáles. Apenas Arcádia Gonzáles conseguiu conviver com a irmã, por causa da boa vida gerada pela água benta, insuficiente para suportar a perda do marido e da filha.

A mulher chegou aos cento e vinte anos de idade. Durou exatamente o que previa. Morreu literalmente sozinha. Todos os outros da cidade não existiam mais. Viu de perto a solidão dos dias. Achou um alento morrer. Arrependera-se das coisas do passado e via um futuro promissor no reino de Deus Todo Poderoso. Sua vida não fizera muito sentido e não possui muita linearidade. Não lera livros, nunca fora ao cinema, rádio escutou pouco. Mas morreu como todos os outros. E foi para o mesmo lugar. Pelo menos fora o que esperava. Ao primeiro minuto de morta, não viu nada semelhante a um céu azul, com nuvens, nem seus familiares mortos. Estava em um lugar preto. Preto e sem ninguém por perto.

Escutou, ao longe, apenas uma voz: “A morte é assim. Conforme-se. Vivemos sozinhos e continuamos, ao morrer, sozinhos.”

A Guerra Civil Latinera é também conhecida pelos conterrâneos por Guerra Civil Espanhola. Desde o ano de 1936, então, encontra-se desaparecido Everardo Sobral Acuña. Deixou três filhos, esposa, e um bebê, que ainda não havia nascido. Atualmente, possui dez netos, dezesseis bisnetos e um tataraneto. Espera-se que o corpo seja encontrado e que as autoridades espanholas entrem em contato com a família. Todos agradecemos pela atenção e colaboração.

III) O analista

O personagem estava deitado no banco de trás do carro de sua mãe, olhando para o teto e lembrando-se da época em que foi pequeno o suficiente para estar grudado à janela da mala do Gol de sua avó materna, enquanto voltava da escola, para casa. Era trinta e um de agosto de dois mil e dois e eles estavam indo para o primeiro dia de análise do personagem. Como ele tinha boa memória, sabia que esse era o dia da morte de seu tio, dois anos antes. Seus familiares não sabiam se ele havia morrido exatamente naquela data, pois ficara quatro dias sumido, até que sua madrasta e seu cunhado o encontraram no Instituto Médico Legal. Então, para se ter uma oficialidade de luto, os próximos a ele escolheram a data de seu desaparecimento. Morreu atropelado em frente ao Túnel Novo, na madrugada. Por sempre se vestir de preto, o motorista não notou sua presença. O personagem lembrava-se de tais acontecimentos – juntamente com o fato de no mesmo trinta e um se comemorar o dia da nutricionista, profissão de sua mãe – enquanto o automóvel se locomovia em direção à Rua Senador Soares, número onze, em Vila Isabel. Era uma quarta-feira e o personagem sempre odiou as quartas-feiras, porque elas representavam aulas de matemática e física no colégio.

Não era a primeira vez que seus pais o levavam para psicólogas e afins. A primeira que teve foi em Niterói, bem próxima do estádio de futebol da cidade. Sempre ia até lá comendo Fofy pelo caminho e falando a tabuada para sua progenitora. A mulher que o atendia era alta, magra, loura, aparentando uns quarenta e cinco anos de idade. Como era muito novo, não via muita confidência e cumplicidade em cima daquela relação (na verdade, o personagem nunca teve uma completa relação com suas duas psicólogas e seu psicanalista, ao passo que nunca contava toda a verdade de sua vida para eles, sendo essa uma forma de cuspir na cara dos retrógrados que o oprimiam e o torturavam, com sessões semanais e anuais de terapia). Enxergava apenas uma pessoa a mais para brincar e se divertir. Apesar de saber dos detalhes de anos atrás, não sabia a razão para terem saído dela. Possuía, então, uns oito de idade e, no momento em que divagava sobre seu próprio histórico familiar, doze.

A casa em que teria sua primeira consulta com este novo profissional ficava na rua de uma escola pública, a mesma em que estudou a pessoa que fazia o transporte do personagem para onde estudava, todos os dias. Um bar de encontro de motoqueiros enfeitava sua esquina oposta. Finalmente, chegaram. Era uma bela residência. Muro baixo, fachada de tijolos aparecendo e com janelas envoltas de uma tinta branca. Um pequeno, mas belo e cheio jardim. A campainha ficava escondida por entre o murinho e as plantas, tendo que ser feito um pequeno malabarismo para tocá-la. O personagem não via a hora de ir embora para casa, pois sabia que essa era mais uma das exigências de seus pais para que ele se enfurnasse dentro de um quarto fechado e escuro, em que ficaria conversando sobre sua vida e para ver se alguém descobria se ele tinha algum problema. Porque o personagem só poderia ter algum problema. Sempre brigando dentro do lar e com um jeito muito suspeito de ser. Nisso, um homem gordo, de estatura média, moreno, de nariz muito avantajado e com veias azuis saindo de dentro de suas narinas, com testa cumprida e cabelos ralos, abriu a porta branca e de ferro. Ele saiu. Era Suruape Jorge Garcia, o analista.

O homem tinha cinquenta e seis de idade, era casado há alguns anos, com um casal de filhos já de certa maturidade, e morava com a sogra de setenta e dois. Esses fatos, claro, o personagem só viria a saber no decorrer dos quase dois anos que passou com ele. Sendo assim, no momento da abertura da porta e da visão do grotesco, o personagem sabia apenas o nome do indivíduo. Quem o indicou, para sua mãe, foi uma amiga, que teve o filho tratado também por ele. Ao entrar, fizeram as reverências necessárias e o personagem subiu, apenas com o analista, para dentro da sala, onde as sessões se faziam presentes. Era uma escada de madeira, não muito larga e nem muito íngrime, situada do lado esquerdo da sala de recepção e com uma curva, bem no seu meio. Lá, em cima do maior degrau, havia uma foto, em preto e branco, de Sigmund Freud, que podia ser vista logo que se colocasse a cabeça para fora do pseudo-confessionário.

O analista entrou por último, como manda a educação, e trancou a porta. Ofereceu o sofá, para o personagem sentar, e o mesmo obedeceu ao pedido. Pensou em deitar-se, mas refutou a ideia, com medo de tender ao ridículo perante um desconhecido. As perguntas começaram. Depois de responder a praticamente uma ficha médica, o conteúdo mental, de fato, começou a ser pesquisado. O personagem lembrava-se sob os mínimos detalhes do que havia dito na primeira sessão. O cômodo estava com pouca luz, sendo a única proveniente de um abajur situado bem atrás e à esquerda da poltrona nababesca do homem, em cima da mesa em que apoiava uma maleta e certos outros pertences inúteis. Começou a verborragia.

O personagem falou de anseios, pretensões, desejos! Não ousou tocar em decepções, desilusões, catástrofes. Provavelmente, deve ter omitido ou mentido acerca de alguma informação, como já manda o protocolo dos Pacientes Analisados Brasileiros.

Com o passar das semanas – suas sessões eram todas as quartas-feiras, sendo depois alteradas para os sábados – a relação passou a ficar mais íntima. O analisado já tinha conhecimento de muitos fatos da vida do analista: soube que morava com a sogra e a esposa, possuía dois filhos. Quando o personagem chegava à casa, perguntava-se se o analista merecia saber do modo que estava sabendo sobre a vida do analisado. Ele contava apenas o que lhe convinha e até mesmo o que acreditava ser mais interessante para Jung e Freud analisarem, ainda que não fosse de todo verídico.

Suruape, como apenas o personagem o chamava, sendo o restante da população nomeando-o de Jorge, comentou, em um dia qualquer com ele, sobre a possibilidade de um novo método de trabalho, muito eficiente em outros pacientes. O tratamento consistia na passagem de óleos aromatizantes pelo corpo ou, como preferia dizer, passagem de óleos pelos “chakras”, que são, segundo a filosofia ioga, canais dentro do corpo humano por onde circula a energia vital que nutre órgãos e sistemas. Por esses canais se enveredarem por vias bem internas, haveria a necessidade de o paciente permanecer apenas de cueca, ou calcinha e sutiã, no caso de uma mulher, obviamente. Logo após o convite ser aceito – afinal de contas o paciente acreditava piamente, até o momento, na credibi-lidade da profissão e do profissional –, Suruape alertou-o: “Não se preocupe, pois é normal haver certa excitação por parte de quem está aí deitado. Relaxe, isso não irá significar nada.”

De fato, por algumas ocasiões das massagens, o personagem excitou-se, mas era praticamente impossível ficar impassível diante da situação, ao passo que um dos chakras localiza-se praticamente nos fundilhos.

As sessões de massagem eram irregulares. Vez ou outra aconteciam. No restante do tempo, ficavam a conversar.

Em uma dessas conversas, o personagem, pré-adolescente, perguntou para Suruape algo relacionado a sexo. Evidente surgirem perguntas assim, porque se trata da dupla psicanalista-psicanalisado, sendo Freud e toda sua corja inexistentes se não houvesse a questão sexual na mente humana. Tal foi a brecha para a pergunta por parte do mais velho: “Quer saber como é a sensação? Não se preocupe (novamente a porra do ‘não se preocupe’), você gosta, e continuará, gostando de mulheres. Isso aqui é só para você sa-ber como é a sensação.”

Coagido e sem saber o que responder, o personagem recebeu o sexo em seu sexo e teve a sensação de como o mundo era mundo pela primeira vez, aos doze anos de idade, ao lado de um velhote repugnante e impotente de cinquenta e seis insuportáveis anos.

“Olhe, as pessoas não podem saber do que está acontecendo entre nós, porque elas não entenderiam. Nós não estamos fazendo absolutamente nada de errado, só estou te mostrando como é a sensação do orgasmo. Eu continuo gostando de mulher, assim como você. Não se preocupe.”

Sempre que o personagem saía pela porta da Rua Senador Soares, a pergunta corria para sua mente: “O que eu estou fazendo? Será que eu gosto mesmo de meninas? Mas fazer isso é legal, gosto da sensação.” Juntamente, vinha a sentimento de culpa: “Pecado. O que faço é pecado, está errado. Mas gosto da sensação. Tenho nojo dele, mas gosto do que me proporciona. Ter orgasmos é uma coisa legal.”

Não dava. Apesar de gostar do que sentia, depois de alguns minutos a culpa o assolava, o comia por dentro, o acabava. Nada era dito para ninguém fora do consultório sobre o que acontecia, assim como o havia aconselhado o Velhote. Nem com o próprio homem o rapaz conseguia conversar sobre. Envergonhava-o muito tudo aquilo. O pior era que seus colegas de colégio apenas estavam descobrindo o que era um pentelho, quando muito, ao passo que ele já estava naquela situação, naquele dilema, naquela cilada, naquele labirinto.

Concomitantemente, o personagem tomou para si um sentimento de ódio contido pelo analista e o analista tomou para si um sentimento de amor contido pelo personagem.

Chegou dia doze de outubro, e Suruape Jorge Garcia deu de presente, ao personagem, um livro: “Serraria Baixo-Astral”, quarto livro das “Desventuras em Série”, de Lemony Snicket. O burro nem para dar um presente certo. Como o personagem leria o quarto livro da série, se nem conhecia o primeiro? Pois bem. Ao abrir-se o livro, lia-se: “Rio, 11/10/2002 – Ao pequeno grande Homem. Personagem, foi muito bom conhecê-lo. Assinatura.” O sorriso falso de agradecimento foi colocado no rosto do personagem, mas o rancor estava bem guardado dentro dele. Pelo ódio, jurou que nunca leria uma linha sequer do livro. Culpa não era do pobre autor, coitado. Culpado era o facínora, o cavalo, o nefasto.

A situação chegou ao ponto insuportável quando o personagem parava o que estava dizendo e Suruape simplesmente ficava olhando para ele, contemplando-o. Diante disso, a criança não sabia o que fazer. Permanecia, assim, olhando para ele também. Queria acabar rapidamente com aquilo, pois sabia que quanto mais ficasse olhando para o outro, mais ele poderia ficar apaixonado. Isso seria demais. Isso poderia causar uma tragédia maior do que já havia causado.

Fim. Um fim tudo tinha que ter.

O personagem acordou bem cedo, em um domingo do começo ou fim de 2003, não lembrava, chamou o pai para conversar, e não lhe contou os fatos concretos, mas sim apenas que desejava sair de onde estava, pois tinha medo do que poderia acontecer. “Ele olha-me estranho, papai.” Pobre progenitor se soubesse o que o Velho havia feito. E também o personagem não queria expor-se de forma tão escancarada.

Solicitou para que sua mãe resolvesse tudo. Ela que rompeu com a corda que aos poucos enforcaria as entranhas do personagem, até ele se perceber desfalecido no meio da sala, com seus olhos abertos e sua dignidade defunta. O medo era tanto por parte do analista, que ele chegou a ligar para a casa do personagem para perguntá-lo se algo estava acontecendo. Não ousou tocar no assunto “sexo”, pois receava que o motivo da saída fosse o abuso causado. Preferiu desejar boa sorte na vida do personagem. Ao não tocar nessa questão, poderia estar fazendo com que o personagem também não tocasse mais nela, pondo um ponto final em tudo aquilo, toda aquela coisa que ele próprio criara. Mas será que tinha sido ele?

Em casa, num outro bairro, Suruape lembrou-se de quando era criança. Seus vizinhos tinham uma galinha. Quando o maltrapilho garoto começou a sentir suas vergonhas salientarem-se, resolveu aliviar-se com o dito animal. Por essas aventuras, o dono da galinha, consequentemente seu vizinho, viu a cena que sempre se repetia toda manhã, quando o analista acreditava que os donos da casa haviam ido trabalhar. Diante daquilo, João – o nome do vizinho –, chamou Suruape para uma pequena conversinha. Depois daquele dia, o Velhote nunca mais aliviaria suas tensões na galinha. Seu João, como ele o chamava, poderia exercer tal função muito bem.

Ele, assim como o personagem, sentiu ódio do malfeitor.



O personagem alguma coisa fez. Como só se deu conta do crime cometido pelo analista alguns anos depois, quando o ato já era considerado nulo pela justiça, encontrou apenas uma solução.

No dia seis de janeiro, dia em que a Igreja celebra a festa da Epifania, o personagem subiu os degraus da escada de sua casa, entrou no quarto de seus pais, encami-nhou-se até o criado-mudo, localizado na parte esquerda da cama, onde seu pai dormia. Abriu a terceira gaveta do mesmo e pegou um revólver. Quem o havia posto lá fora seu tio, irmão de sua mãe, antes de sair de casa pela última vez, para encontrar a morte na entrada do túnel. Encheu a arma de munição e foi em direção à rua onde todos os crimes eram cometidos.

Com um fone de ouvido, contemplava “I wish I knew how it feel to be free”, e pensava no que faria com Suruape. O revólver finalmente teria uma utilidade. Assim como pensou Raskólhnikov, o mundo não poderia e não haveria de sentir falta nem pena de Lisavieta, a Velhota. Ela morreu, ele também morrerá. Velhote e Velhota irão encontrar-se no céu. Se ele existir, claro. Nesse instante, o personagem rezou para que o céu não existisse, pois assim o Velhote ficaria vagando pelo mundo, como alma penada, e elas simplesmente não conseguem descansar em paz. Uma pós-vida infernal seria o ideal para um homem tão banal.







O analista estava despedindo-se de seu último paciente. O personagem entrou sem nem pedir licença. Subiu e lá no consultório ficou. O analista correu em disparada até chegar onde o rapaz estava, encontrando-o deitado no divã, como nunca antes havia feito. O personagem disse: “Olá.” O analista viu o revólver na mão do personagem. O personagem perguntou: “O que foi?” O analista soltou um grunhido incompreensível. O personagem levantou-se. O analista afastou-se. O personagem divagou: “Conheces ‘Lolita’? Aposto que conheces... Vladimir Nabokov deveria ter escrito um final igual a esse que está prestes a acontecer. Bem diante de seus olhos. Velho de merda.”



!



O corpo foi retirado. O chão foi limpo. Tudo foi resolvido. Uma carta de despedida foi escrita pelo personagem, para que assim se aparentasse suicídio e casualidade da vida.

Antes de chegar em casa, o personagem deu uma volta e foi em direção à delegacia.

Melhor se entregar à polícia, com sua credibilidade, do que ver sua casa invadi-da, seu corpo tomado, e sua vida destruída. Deste modo, teve o destino que escolheu. Entregou-se, pois assim o desejou. Réu primário, endereço fixo. Sairia de lá logo.

Humbert, o pedófilo literário, e Suruape, o pedófilo real. Humbert matou Quilty, marido de Lolita. Suruape não matou ninguém. Ele é que estava morto agora. Acabado. Aniquilado.

Mas o fim do personagem, o abusado real, foi igual ao de Humbert, o pedófilo literário. Na prisão acabou, com seus anseios e sonhos aleijados. Tudo por causa do Velho de merda.*




_______________
*Que ódio sente o personagem pelo Velhote de merda.

IV) Sentimento póstumo

“Rio de Janeiro, 06 do 06 de 06

Eu escrevo tais palavras para que sejam lidas depois que eu morra. De preferência, durante o meu funeral. Se vistas fossem antes disso, não teria mais coragem de caminhar pelas calçadas tortuosas da cidade. A vergonha seria tanta, que sobreviver se tornaria, apenas, mero processo mecânico respiratório. Quedar-me-ia em casa, para nunca mais sair. Por isso, quem estiver passando os olhos por tais linhas tortuosas, antes de minha ascensão aos céus, que pare de imediato.

Conheci o amor de minha vida em algum dia, de algum mês, de algum ano. De susto, tudo se anuviou diante de mim, e vi que a pura e simples existência, que antes era tão clara, no momento se fazia escura. Perdi os sentidos e não agi mais por conta própria. Fui sendo levado pelos fatos e circunstâncias e impulsionado a venerar o ser idolatrado cada vez mais e mais.

Pode parecer estranho para o leitor inexperiente nas questões dos corações sofridos e calejados, mas é preciso que fique bem claro na mente de cada um de vocês: quem já amou sabe a dor e a delícia de gozar, no céu, e sofrer, no inferno. Apesar de tudo, creio que o texto só se fará claro, por completo, para a pessoa que eu amei. Aliás, para a pessoa que eu, infelizmente e felizmente, ainda amo.

O breu do seu quarto acalentava a alma dos dois corpos que ali sempre padeciam. A música exortava sensações excitantes e declarativas. A junção dos dois permitia a união. Ao menos de uma das partes do casal. Ou seja, ao menos de mim. Porque, pelo ser amado, nada posso responder. Só acerca da minha pessoa tenho a capacidade de tecer julgamentos e declarações. Dele, não sei nada. Só sei que viveu para estar ao meu lado durante a minha passagem por este lugar, nem que o “ao lado” seja somente nos meus sonhos noturnos e perfeitos.

Ficamos juntos, de início, por três semanas e quatro dias. Duas semanas e três dias após o término do caso, tivemos uma recaída. Acabou-se por aí. Eu era muito carente. Eu era muito subjugado. Eu pedia muitas desculpas. Eu, simplesmente, deixei que as coisas dessem errado. Eu era um completo e repleto asno. Eu me envolvi. O ser amado não. Eu me fodi. Creio que ele não. Eu sofri. Ele sofreu? Provavelmente. Mas não de amor. E sim de sufocamento. Eu o matei aos poucos.

Todos me diziam: o tempo resolve tudo. Depois de alguns meses, até resolveu. Tentei me refugiar em outros braços e lugares. Acostumei-me com a ausência. Lembrava-me dele muito esparsamente. Pensei que havia conseguido exorcizar o passado. Quando um relacionamento poderia dar certo, cultivava. Ele sempre acabava. Ou porque a pessoa ao me lado não me queria mais e me descartava. Ou eu que não me interessava mais na pessoa e a queria esquecer por conveniência da comodidade. Ou a pessoa morria. Sofria mais no segundo caso. Qual o motivo para não embarcar em um romance que a outra pessoa está interessada em iniciar? A parte mais difícil estava resolvida e eu simplesmente não estava satisfeito. Porque, no amor, quando você o ama, é fazê-lo te amar também. Enfim... Um dia houve uma morte. Ele simplesmente morreu. Se foi-se pro outro lado da vida. Mas até que as coisas, no decorrer do ano, estavam caminhando toleravelmente bem. Eu nem pensava mais tanto no amado inicial.

Mas meu aniversário chegou e ele ligou. Encontramo-nos, mas ele recusou. Desisti. Não o vi mais durante o ano.

Sendo que existiu o ano seguinte e ele me viu. Mais perto do que nunca. O que fazer?

Eu, a personagem, percebi que apenas com ele os sinos tocavam.

Apenas com ele os anjos cantavam. Somente com ele.

Para os ultra-românticos, a poesia preenche o vazio.

Para os bons de ouvido, uma música preenche o vazio.

Para os leitores, um livro preenche o vazio.

Para mim, nada está preenchendo o vazio.



Lutar ou desistir? Agora que vocês leem isto aqui, já sabem do meu destino. Já sabem se valeu mesmo à pena lutar ou não. Mas eu, por enquanto, ainda não sei. Espero que não morra de morte doída. Espero que, por ele, eu não morra. Quando eu já estiver morto, vocês me digam. Ao pé do ouvido, como ele fazia. Ele me abraçava e conversava comigo. Ele fazia. Ia. Ia. Ia. Ia. Passado. Sempre passado. Nunca presente. Inferno.

Ao descerem com o caixão pelas ruelas do Cemitério do Caju, declamem, para mim, por mim, o ‘Soneto da separação’, por favor. Se o meu amor estiver perto de vocês na hora, não o incomodem. Ele deverá estar sofrendo. Digam apenas uma coisa: ‘O morto pede desculpas por morrer sem, ainda, ter você’.

Grato, eu mesmo.”

V) Os fracassados

I

Esmeraldina estava sozinha no lugar. Não desejou mover-se, receosa de perder as recordações que acabara de ter. Era dessas coisas. Como mulher burra, não se dava ao luxo de permitir que o pensamento lhe fugisse de dentro.

Recordou-se dos tempos de menina. Ainda não trabalhava na cozinha fedida à gordura, nem balofa sua barriga tinha o disparate de ser. Mas no momento isso não tinha valor algum. O que adianta pensar no passado melancólico, se absolutamente nada de eficiente pode ser feito para alterá-lo?

Acabou com tudo aquilo em dois tempos. Aprendeu com a mãe a ser forte e não se deixar cair em sentimentalismos baratos. Sabia que morreria dentro de instantes e ninguém deveria, nem poderia, alterar nada. Se Deus não quis que vivesse, Esmeraldina era ninguém para querer fugir do próprio destino, com os próprios pés.

Olhou para o que tinha diante dos olhos grandes e azulados, marejados pela lágrima. O caldeirão estava ali, como sempre. Foi nele que alimentou milhares de moribundos esfomeados e a partir dele que recebeu seu pão para repartir com o filho. Esse, pobre coitado, era ciente de sua pequenez diante do mundo, de sua insignificância perante as grandes questões humanitárias, que tanto lhe afligiam.

Felizmente, pela primeira vez, em sessenta e nove anos de vida, constatou e aceitou o fato de que deveria largar o cacoete vil. Viver, para ela, se fazia mais difícil do que se ver uma cadela nortista retirante de um romance regionalista.

Viu seu próprio retrato no caldo situado no interior do panelão. Como era pequena, esforçou-se desmedidamente para subir. Finalmente, conseguiu. Estava na borda. Na linha. Na sacada de um mundo, um mundo novo, um vasto mundo.

Jogou-se.

Acabou-se.

Chorou-se?

Não. Pela estúpida, nem falta sentiram.

II

Acharam-na, não porque alguém a quis achar, mas apenas pela simples coincidência de terem entrado na cozinha do colégio a procura de um esfregão, que seria utilizado na limpeza da doença de uma criança exposta no meio de uma sala de aula.

III

No enterro, se houvesse o coveiro e Esmeraldino, o filho da morta, era muito.

Os dois estavam, de certo modo, felizes. O filho por se livrar do fardo de cuidar e fingir amores por uma mulher que não enxergava como mãe. O coveiro por estar ganhando, graças a Deus, seu bom dinheirinho.

O Caju estava lotado. Esmeraldina escolheu o Dia de Mortos para sucumbir. Quem olhasse de fora, até poderia pensar que comemoravam o falecimento da cozinheira, mas não. Para ela, um filho e um funcionário, para auxiliar nos trâmites legais da ascensão aos céus, e só. O resto era para todos os outros.

IV

Tempos depois, Esmê, como era conhecido o rapaz pela vizinhança, achou um envelope em baixo da cama que era de sua progenitora.

Em outras épocas, não se daria ao trabalho de ver o que se tinha por dentro dele. Apesar de tudo, naquele dia, estava com uma certa felicidade estranha. Achou que fosse o amor. Não... Homens (poderiam chamá-lo assim?) limitados como ele são carrancudos o suficiente para conseguirem recusar o sentimento. Até a palavra soava-lhe estranha. Enfim...

Leu a carta. Surpreendeu-se. Conseguiu ler alguma coisa! As nove semanas que estudou, até que lhe serviram de algo. Mesmo tendo visto nomes nunca dantes vislumbrados, nem entendido muitas palavras complexas, até que o âmago da leitura foi depreendido com perfeição.

Esmeraldina matou-se, mas por causa de terceiros. Chantagearam-na.

“Forças ocultas querem tirar-me de ação!”, a primeira linha gritava.

A trabalhadora burra e velha escrevendo isso? Esmê parou para pensar que tinha algo fora do lugar. A resposta estava no fim da dissertação: alguém escreveu a carta para ela. O homem lembrou-se que a mulher passava muito por dentro da Central do Brasil. Lá, como já haviam lhe dito, ficavam sentados homens e senhoras querendo escrever cartas de outros para outros. Estava entendido. Afinal, cozinheiras cozinham, não escrevem, muito menos leem.

Minutos adiante, notou que o texto possuía continuação. A questão é que a continuação não estava presente. Algo ele não deveria saber. Mas a mãe não merecia tanto esforço e perigo. Deixou para depois.

V

Esmeraldino, ou Esmê, ou Zé-Ninguém, ou filho da cozinheira, morreu dois meses após ter deixado a carta de Esmeraldina esquecida na recepção da escola que, igualmente à mãe, labutava.

Suicidaram-no.

E agora? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu.

Se havia algum segredo para ser descoberto, ninguém descobriu. Se havia alguma declaração para ser feita, ninguém fez.

Para aqueles desgraçados pela vida, a estrada acabou. Afinal, não existe razão aparente para continuar vivendo.

No céu, Esmeraldina e Esmeraldino encontraram-se. Constataram que não importava o porquê, não importava o por quem, não importava nada sobre a morte deles. A morte dos fracassados pelo Diabo simplesmente não importa.

VI) Morando com vovó

Ela chegou aqui em casa como quem nada queria. Trabalho não deu, na rotina se acomodou, comida nunca solicitou, feliz – supostamente – aqui ficou. A vovó era mãe de mamãe e deveria ter em torno de sessenta anos de idade. Ganhando a vida como professorinha primária, aposentou-se relativamente jovem para os dias de hoje. Ela, assim como o marido, não eram muito chegados na labuta. Mas mesmo assim, apesar deste desvio mínimo de caráter, não era possível não gostar de vovó mãe de mamãe. Baixinha, gordinha, cabelos quase todos brancos. Quando aqui em casa ainda não morava, adorava comer a fruta do conde e beber café. Aparentemente, para os outros, era a única coisa que ingeria durante todo o dia, todos os dias, em consequência de ninguém a ver comendo nada além. Era apenas uma fruta do conde e uma xícara de café preto, em vinte e quatro horas.

Vovó não pediu para ficar onde a colocaram. Não é que ela tenha odiado onde foi posta, apenas não fez menção em querer estar em outro cômodo da casa. Naquela região da residência, pouca gente passava, então, conseguia passar tranquilamente e sem sobressaltos seus belos e longos dias, noites e madrugadas e tardes. Momento de inquietação ela apenas teve um. Ou teriam sido dois? Lá, pelos idos anos, eu trouxe alguns coleguinhas pré-adolescentes para em minha morada passarem um belo cair do sol. Nunca havia antes, em tempo algum, chamado ninguém que não fosse do meu sangue para aqui estar. Então, para impressionar, quis mostrar vovó. Afinal, é feio não apresentar os parentes para as visitas. Ainda mais os velhos, que podem se sentir rejeitados pela sociedade. Tudo estava escuro, por causa de um filme que era visto na televisão. Maldita mania de querer reproduzir, dentro da sala de estar, uma sala de projeção cinematográfica. Divagações momentâneas à parte, abri a porta do quartinho de vovó e a fui buscar. De supetão, a televisão um berro deu e eu quase vovó derrubei, de encontro ao chão. Mas não. Pouco o foi. Ela ainda estava lá, em meus braços. Por causa do incidente, resolvi deixar vovó onde estava, para que, com isso, eu preservasse sua integridade física e moral.

Anos se passavam e ela continuava morando conosco. Eu nem percebi quando ela aqui chegou, sabendo apenas que muitos anos ela cá pernoitou. De todos os moradores da mansãozinha fajuta do Grajaú, ela era a mais estática. Não a levando para outro cômodo da casa, ela não se locomovia. Assim o desejando, ela acatava nossas exigências. Alguns vizinhos até nos perguntavam: “Por que vocês não a levam para o ‘asilo’? É perto de vocês! Apenas três casinhas daqui.” Negativo. Família é família e é aqui que deve estar: ao lado da família.

Em contrapartida ao grande interesse de não tirá-la de perto de nós, havia momentos em que a esquecíamos. Com o passar dos anos, esse esquecimento ia apenas agravando-se: Quantas vezes fomos à praia e não a levamos? Quantas vezes fomos ao Jardim Botânico e não a levamos? Quantas vezes fui à Reserva Florestal do Grajaú e não a levei? Coitadinha. Definitivamente, a coitadinha estava se tornando um simples adereço, como qualquer criado-mudo ou abajur. Para agravar a situação, o aniversário dela passou a ser renegado. Isso, pois eu conheci uma mulher, que em pouco tempo tornou-se grande amiga, que aniversariava no mesmo dia de vovó. Como essa amiga era mais jovem, ainda comemorava seus dias festivos. Sendo assado, o amor por vovó foi renegado.

Ela, como toda a família, nasceu no Grajaú. De pai comerciante do Rio de Janeiro e mãe do lar do Rio Grande do Sul, casou-se com um homem de sete anos mais no ano de mil novecentos e sessenta e dois. Três filhos teve, sendo dois homens e uma mulher e com todos paridos dentro de uma mesma década. Tais informações foram adquiridas através de terceiros, posto que as pessoas conversavam com vovó até antes de ela vir aqui para casa. Depois, a sociedade passou a encará-la como cidadã muda, haja visto que em nada se intrometia, não se dispunha, nada vivia. Das conversas que tive com ela, não me lembra nenhuma. Era criança quando assim fazia e, agora, mais velho, é impossível recordar de certas coisas que aconteceram no passado e no passado ficaram.

Um dia, lá pelo começo de novembro, acho que o segundo dia dele, pensei em vovó. Creio que o fiz depois de uns seis meses sem dar nem “oi” para ela. Qual o motivo para não tirá-la aqui de casa? Eu acho que ela seria mais feliz em outro lugar. Um em que as pessoas a ouviriam falar, a ouviriam reclamar, a ouviriam cantar, a ouviriam sorrir, a ouviriam chorar. Mas ninguém aqui em casa deu-me ouvidos e tenho medo de falar muito de vovó com eles, pois não quero ofender e ferir os sentimentos de ninguém.

Indo para a padaria comprar pão, passei pela Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Entrei por razões que ainda desconheço. Nunca fui muito do chegado nessas coisas de religião. Sempre digo e repito: “Deus é apenas uma criação do homem para uma satisfação pessoal acerca da questão de nossa origem. Nosso cérebro já nasceu programado para acreditar n’Ele e Ele existe pelo fato de que é mais fácil explicar nossa existência pela mão divina de um, em sete dias, do que pela ciência de reações no espaço em milhões de anos.” Acreditava, entretanto, apenas na fé, no pensamento positivo e, por eles, até poderia chegar ao ponto de dar uma rezadinha básica.

O templo estava vazio e era iluminado apenas pela luz do dia pouca que adentrava pela porta escancarada. Indo pela lateral direita, sentei-me em um dos bancos de madeira. O pão me esperava, tinha que ir. Mas ali acabei permanecendo por alguns instantes. Deve ter sido a pintura belíssima – o agregado de Dom Casmurro iria agradecer-me por tais superlativos – da igreja e seus vitrais esplêndidos. Sim, eles que levaram-me até ali. Depois de cansar de olhar para tudo aquilo, voltei à rotina. Deus, definitivamente, nada me disse.

Já era noite alta. Todos dormiam. Meus pais no quarto deles, meu irmão no seu, meu tio no dele, minha cachorra em seu cantinho, vovó no primeiro andar, e eu no meu quarto. Dormir até que o fiz por meia hora, mas a maldita da insônia era mais forte que eu. Seguindo conselhos, peguei um livro para ler. O mais bonito que encontrei na estante foi um chamado “Ulisses”, de um homem cujo nome era James Joyce. Começando a ler, nada foi muito bem compreendido e assimilado. Só passei a ver a literatura com mais clareza e fidelidade no primeiro capítulo da segunda parte do livro, quando Leopold Bloom estava cagando no trono, lendo uma revista qualquer. Isto foi compreendido.

Escuto uns latidos fracos. Era ela, a cachorra, também velha, mas mais amada que vovó. Ela olhou para mim e saiu em disparada pela casa. Descendo os degraus da escada, que unia os dois andares do casebre, o bicho aparentava incorporado pela besta-fera. Comecei a correr atrás dela, para entender o que estava acontecendo. Tudo escuro e tinha medo de cair da escada, na primeira pisada em falso. Consegui não esmorecer e permaneci na corrida, para sossegar a cadela ou, no máximo, captar a mensagem que ela desejava passar-me. De nada adiantava. Eu não a alcançava e muito menos entendia o que queria. Até que, para chegar à porta que dava para a rua, a cachorra foi obrigada a passar por onde vovó relaxava. Paft!

Vovó havia, definitivamente, caído no chão. Pobrezinha. E agora? Uma vez caída, quem a tiraria de lá? Ela? Eu? A cachorra? Era tarde e não quis atrever-me a ir chamar meus pais ou meu tio para resolver a questão. Percebendo que vovó nada faria, dei uma olhada na cachorra. Apenas para afetar-me, ela nada fez. Ai, cachorra chata.

O animal já estava, realmente, velho. Quatorze anos não são para qualquer um. Seus olhos já não emitiam cor; eram apenas opacos. Por muitas vezes senti muito pela tadinha. Deve ser muito triste não conseguir mais enxergar direito as coisas da vida. Dizem que os cães enxergam em preto e branco. Não sei se isso é verdade. Nunca fui um cachorro para saber. Mas até que tal ensinamento me é pertinente. Vai ver é por isso que ela é tão racista. Ao ver um negro desconhecido andando pela calçada próxima da casa, tem início o ensurdecedor latido. Antigamente, mais vigoroso que os de hoje. Ela, bem provavelmente, deve ver um vulto, ou algo do tipo. Pode assustá-la. O racismo possui uma explicação e um entendimento.

Vovó ali permanecia. Estatelada, não disse nada. Boa senhora, pensei. Mesmo no estado em que se encontrava, ficava na reserva de seus princípios. Veio a pena. Veio a minha pena para com ela. Conheces aquela pena das pessoas velhas com caras de coitadas, que nos remete à paixão não dada e ao amor que devemos dar para conseguir um lugar ao céu? Eu deveria fazer alguma coisa por ela. Mas a vira-lata não cala a boca e não permite o término de qualquer raciocínio lógico. Deveria pensar rápido. E, o que fosse decidido, fosse o que fosse, apenas eu o faria. Todos estavam ausentes. Então, era apenas eu ali. Espero que ninguém brigue comigo. Eu devo estar fazendo alguma coisa digna. Vovó tem o direito de possuir um pingo de condolência.

Para sossegar a cadela que se esperneava, fui até a cozinha. Peguei sua coleira, pus em seu pescoço e a tranquei dentro da área, próxima à máquina de lavar. Apenas o fato de saber da possibilidade de passear já acalenta a alma de qualquer bicho. Foi então que voltei para vovó. Agora era eu e ela, apenas. Uma vez na vida eu daria atenção exclusiva a ela. Será que era uma atenção merecida? Bem, deveria ser. Todos os velhos, por piores que tenham sido no passado, recebem, seja lá de quem for, a redenção. Acho que ela tem que sair daqui. Assim, tudo ficará melhor. Ela vai encontrar sossego e nós também o encontraremos. Ou será que ele será presente até o próximo da família se tornar um velho, como ela e tantos outros de tantas outras famílias? Faz parte.

Abri a porta que separava a cozinha da área. Peguei a cachorra e a levei para o outro lado da casa. Com vovó por um braço, fomos juntos caminhando pelas ruas do Grajaú. Este, por sua vez, é um bairro um tanto pitoresco. Fundado, pelo pouco que sei, em mil novecentos e quatorze, a partir de uma igreja situada na rua que leva o nome do lugarejo. Mais conhecido pela maioria da população do município do Rio de Janeiro como o bairro dos velhos e retrógrados, bem provavelmente pela grande presença de pessoas idosas e remanescentes de guerras e períodos militares. Pelo que me disseram, fica na Zona Norte. Mas os grajauenses não gostam de serem chamados de suburbanos. Igualmente pelo pouco de geografia que sei, subúrbio são os bairros seguidos pela linha do trem. Se não me esconderam isso durante anos, o Grajaú não é seguido por nenhum trem. Outra questão é que nós não somos da Zona Norte. Aliás, ninguém que mora na Tijuca também é da Zona Norte. Todos somos da Grande Tijuca, assim como o povo do Andaraí e Vila Isabel. Devemos ter o rei na barriga e não é despropositadamente que as más línguas dizem que quem mora e está enchendo a Barra da Tijuca são os tijucanos emergentes. E, por fim, ninguém sabe onde começa ou termina Grajaú, Tijuca, Vila Isabel ou Andaraí. Tudo é uma coisa só. Eu só sei que eu moro no Grajaú. Ele só sabe que mora na Tijuca. O outro só sabe que mora em Vila Isabel. E fulaninho também só tem conhecimento de morar no Andaraí.

Caminhar pelas ruas do Grajaú é uma atividade das mais excitantes. Não há uma pessoa que respire pelas vielas de calçamento antigo e casarões centenários. Domingo, então... É pedir para ver um bolinho de poeira rolar pelo chão. O badalar dos sinos da igreja fazem qualquer pessoa se assustar, se esta no meio da rua estiver. Apesar de tudo, tinha que fazer isso. Mais por mim e minha família, que por vovó. O cansaço estava chegando e a pontada nas costas, cada vez mais, piorando. Espero que essas dores não se agravem quando eu mais velho ficar. Peguei a rua Comendador Martinelli, que ia até uma ladeira quase interminável. Se eu acreditasse em cadeirudos ou lobisomens ou vampiros, eles, com certeza, escolheriam aquele momento para atacar-me. Uma vez, cedinho, indo fazer um piquenique ali perto, um cachorro de rua de um condomínio de casas ali perto quase atacou-me. Desgramado de uma figa. Naquela hora, ali, ninguém para atrapalhar. A cachorra não me atrapalhava mais. Vovó estava calma e serena. Caminhando por mais alguns metros, cheguei à porta da Reserva Florestal do Grajaú, uma extensão da Floresta da Tijuca, mata Atlântica. Adentrei tudo. Ninguém estava a postos para impedir-me.

Um anfiteatro havia sido construído há muito pouco tempo bem no centro da floresta. Uma árvore bem grande, gorda e frondosa ficava em sua direção. Se tivesse sol naquele cenário, bem que tudo aquilo seria de chorar.

Tirando dos braços vovó, olhei-a. Acho que ela olhou-me também. Lembrei-me dos tempos antigos. Merda. Sentimentalismos bestas agora não, por gentileza e obséquio. Eu ia sempre para a casa dela, tomar banho e almoçar, para depois ir para a escola. Ela arrumava-me bonitinho. Fazia um topete em mim de invejar a qualquer um. Ela era baixinha e gordinha, como já foi dito. Um brotinho. Sempre fez para mim, quan-do eu da escola chegava, batatas fritas bem fritas e gordurosas. As servia em um daque-les potes de sorvete de plástico. Elas eram fininhas. Devorava-as assistindo Cocoricó ou Fantasia. Lembranças.





Abri a caixa. Não quis dizer adeus. Coloquei-a ao lado da árvore. Um dia ela deve nascer outra coisa, mais feliz do que o que foi nesta vida. Vovó agora era apenas cinzas. Jogada na terra foi para encontrar um caminho, uma direção. O pó encontrou o chão e os dois seriam companheiros. Da porra viemos e à merda retornaremos, foi o que alguém disse para alguém que disse para mim.

Descendo a rua de paralelepípedos, percebi que a cachorrinha só queria fazer necessidades. Ela deve morrer em pouco tempo, provavelmente. Virará cinzas, assim como vovó e assim como eu.

Em casa, dormi. Todos, no dia seguinte, acordaram. Ninguém falou de vovó. Eu não toquei no nome dela. Nunca mais se falou de vovó. Mas vovó ainda falava em meu pensamento.

VII) Deus e o esquizofrênico

"Rodrigo é beato. Acredita em deuses. Cristo. Iemanjá. Apolo. Afrodite. Ateneia. Exu. Afrodite. Mickey Mouse. Chaves. (...) Tudo o que vem do humano é Deus. Uma geladeira. Uma máquina de lavar. Conheci deuses na infância. Garotos que morreram. Solidões inóspitas que só se davam comigo. Café com leite. A utopia é importante. Escrever uma página hoje já é uma utopia. O futuro manda lembranças. As lembranças que fiz. Que farei. Eu sofro. Sofro de um sopro de vida." Me roubaram uns dias contados – Rodrigo de Souza Leão.

Estava de pés, diante da grande janela que abria seu quarto de dormir para o mundo. Naquele dia, acordara com um certo temor, estranho para sua pessoa, mas já conhecido através da literatura de Dostoiévski. Tinha anseios que lhe faziam o coração palpitar de maneira extremamente acelerada e descompassada. Pensou em fechar a janela e deitar-se por mais alguns instantes, porém refutou a ideia, ao passo que sua coluna vertebral doía demasiadamente, em consequência de uma lordose obtida na infância distante e poeril. Estar como estava seria o melhor a ser feito, pensou. Logo desceria os degraus que separavam os andares da grande residência e tomaria um farto café da manhã. Infelizmente, o comeria só. Não se lembrava bem o porquê de estar ali, sem ninguém, em uma casa tão grande. A esquizofrenia afetava de modo permanente seu cérebro e impedia que possuísse raciocínios muito longos e complexos. Parou. Olhou para trás e vislumbrou o ódio que minutos antes havia sentido. Queria sofrer. Queria matar. Queria retirar de seu interior aquela angústia que o assolava e o imobilizava. Fez questão de retirar-se do quarto e encaminhar-se para o lavatório, onde jogaria em sua cara carcomida um bom punhado de água e tentaria sair de alma lavada para mais um dia. Ao chegar lá, mirou o espelho e foi em direção ao mesmo, sem hesitar nem sequer por um momento. Tinha certeza de que a imagem que seria vista no espelho não lhe seria das mais agradáveis, mas ainda assim quis chegar até o final, como poucas coisas em sua vida conseguiram chegar. Sua intuição não falhou. Repugnou veementemente o espelho. Quebrou-o, em seguida. Com as mãos ensanguentadas e inchadas, foi para a cozinha e as limpou. Por ser uma pessoa forte e de heranças ameríndias, as feridas cicatrizaram-se rapidamente, sem necessidade de curativos. Estava era com fome, bastante. Sentia ódio de si por comer tanto e não engordar. Ora, pois! Porque não era como os seres humanos normais? Qual a razão para não engordar ao ingerir tanto alimento como ingeria? Ódio passou a ter mais ainda. Quando saiu dos pensamentos conflitantes, sentou-se à mesa e notou que a lacaia havia posto tudo em seu devido local, para que agora pudesse desfrutar da hora supostamente tão feliz e fortuita. Começou. Sentiu gases. Isso irrita demais. Parou. Levantou. Saiu. Estava fora de casa, mas ainda não de sua propriedade. Contemplou a piscina, majestosa, por vezes tão azul e por outras tão verde. Recordou-se do filme mexicano “E sua mãe também”, em que Gael García Bernal nadava em uma piscina parecida, num hotel moribundo e chinfrim. Teve vontade de fazer igual. Em contrapartida, não possuía traje de banho, apropriado para o mergulho, o que fez com que não saísse de onde estava, pois seria inconcebível jogar-se dentro da água clorada de pijamas. Tal disparate sairia completamente da normalidade estabelecida pela sociedade. Por ter tido uma criação rígida e católica, não seria capaz de fazer uma loucura. Jogar-se dentro é uma loucura. Logo, em seguida, com praticamente nenhum intervalo, sentiu saudades da família que nunca teve. Da família grande e unida que nunca nem chegou aos pés de ter. Invejou os Buendía. Invejou Gabriel García Márquez por romance tão sublime. Sabia que o autor do romance realista fantástico deveria ter tido uma família semelhante, pois é impossível escrever o que se desconhece. Parou. Achou-se maluco. Como era capaz de sobrepor pensamentos e ideias tão díspares? Além do que, nem possuía motivo para tê-las. Pensou em sentir pena de si. Não, logo depois. Isso seria triste demais da conta. Finalmente, tomou um bom banho, vestiu sua melhor roupa, perfumou-se com seu melhor perfume e saiu. Saiu para usufruir de tudo. Do mundo. De Deus. Mas Ele existe? Porque “Ele” e não “ele”? Porque o “porque” e não um “mas” da vida? Que doideira. Entrou no carro com cheiro de novo, comprado há poucas semanas, com um grande desconto, concedido em virtude da crise econômica que assolava a região. As concessionárias possuíam muito estoque e necessitavam colocá-los no mercado. Virou à direita, depois à esquerda, depois seguiu reto e depois deu uma curva. Começou a chover. De supetão, veio à sua mente o dia em que perguntou para sua prima uma coisa. Era noite de Natal e todos estavam na casa da avó. A prima, de apenas cinco anos de idade, estava quase chegando à varanda do apartamento quando lhe veio a afirmação, para logo vir a pergunta: “Júlia, está chovendo.” Ela olhou-o fixamente em seus olhos. Prosseguiu escutando. “Está chovendo muito!” Continuou impassível. “É Deus que está fazendo xixi”, prosseguiu. Pela primeira vez, então, a menina manifestou-se: “Deus?” Para que viesse a resposta: “Sim, Deus! Você não O conhece?” E, depois disso, nenhuma das duas pessoas conseguiu sair de onde estavam, nenhuma conseguiu parar de olhar uma para a outra, nenhuma conseguiu absolutamente nada. Afinal, quem é? A chuva não tardou a parar. Tanto a do passado, quanto a do presente.

VIII) O oprimido

Já era noite alta e Getúlio decidiu retirar-se de seu quarto e caminhar em direção ao Nada. Em sua mente, naquele momento, não possuía objetivo definido, querendo apenas sair daquela situação repressora e opulenta, que ele tanto menosprezava. O local em que residia era fétido, pequeno e de paredes cheias de infiltrações. Vivia lá por causa dos estudos. Como era da região de Trás os Montes, e lá não havia uma universidade ao alcance de sua intelectualidade, obrigado foi a se mudar para a região de Trafalgar, distante uns quinhentos quilômetros de sua cidade natal. Não possuía familiares fora de seu condado, então teve que sentar na calçada mais próxima do Porto de La Basura, estender suas mãos largas e calejadas, para conseguir obter alguns trocados que lhe permitissem alugar um buraco em qualquer pocilga que fosse não tão distante da Universidade de Estudos Antropológicos Internacionais. O jovem lá já morava havia nove meses.

Ao virar a primeira rua à direita, encontrou um professor seu de História Contemporânea, chamado Senhor Doutor Fulaninho Castro de Alda. Getúlio repugnava-se quando esbarrava em alguém, quem quer que fosse, durante sua caminhada ao Nada, todas as noites. Isso acontecia porque trazia para ele a incapacidade de andar por vias menos movimentadas, e repetia: “Seu traste. Até para isso tu não serves? Meu inconsciente não quer falar com ninguém e minhas pernas não decodificam tal informação? Morra, peste!”. Sendo assim, fingiu que olhava para a calçada, para não ter que movimentar seus lábios e interpretar uma educação que, no momento, era inexistente. Quanto mais se aproximava do homem de meia-idade, mais seus membros corriam. Depois de ter saído do raio de alcance do professor, ele pensou ter escutado algum grunhido vindo por parte dele, mas não deu ouvidos para tais alucinações. Como um homem que ministrava aulas para mais de cento e cinquenta alunos, por semana, se lembraria da existência de uma pessoa tão insignificante, diminuta, aleatória, e que não fazia algo de produtivo para ninguém? “Ufa, tudo passou. Agora posso continuar só.”

Ao ir para o Nada, desejava retirar de seu coração o vazio que o assolava. O grande e aterrador vazio que amedronta as mentes e os corações dos homens mundanos. Pensava em fazer outra coisa além de ir para o Nada, mas diante de tal nervosismo da caminhada e do encontro, de supetão, com pessoa que poderia lhe falar, foi incapaz de raciocinar e lembrar-se de outra coisa para fazer. Começou a esfriar e Getúlio maldisse o dia em que saiu de sua casa para ir para tão longe. Arrependeu-se de ter abandonado mãe, pai, irmãos, cachorros e galinhas, para aventurar-se no mundo do pensamento, dos questionamentos, da produção literária, das amizades curtas e das que duram. Por que tanto sacrifício, se no fim acabaria como agora, caminhando para o Nada? Enquanto caminhava, pensava apenas que deveria ter posto um casaco por sobre as costas. Tinha medo de ter um ataque epilético antes de chegar ao destino tão desejado. Era dessas coisas. Os ataques. O primeiro se fez presente em uma apresentação musical de um grupo vindo de tão, tão distante. Como havia muita gente grudada, Getúlio sentiu-se sufocado, sua claustrofobia manifestou-se em seus piores níveis e desejou que, se não conseguisse sair fisicamente da multidão ensandecida e suarenta, que pelo menos sua alma ascendesse aos céus, para ir de encontro a algum palácio metafísico.

Percebeu que ao longo da grande avenida, que se iniciava, não havia muitas pessoas, o que o felicitou grandemente. Primeiro obstáculo resolvido. Matutou em sua cabeça se haveria de ter esquecido a porta de seu cubículo destrancada. Poderiam roubar-lhe algo. Mas não. O que haveriam de retirar dele? Meia dúzia de papéis em que se discutiam as filosofias de Platão e Freud. Um ladrão, nem por mais perspicaz que fosse, jamais perderia seu tempo em furtar pertences de um homem que não dá ao respeito nem a si próprio. Reteve-se no meio da Avenida dos Santos Anjos e refletiu acerca de uma coisa. O si, o ele mesmo. Por que era uma pessoa que pensava tanto em si mesma, em si própria? As crianças que sofrem de falta de alimento e falta de atenção hospitalar não mereceriam alguma reflexão? Os flagelados da guerra entre Rússia e Geórgia não pediriam alguns segundos de atenção? Seus vizinhos, a família Schauman, que era atingida constantemente por tantos problemas, não almejava nem sequer uma visita de rapaz tão estimado por eles?, o “pequeno Senhor Gegê”, como sempre ressaltava a matriarca dos Schauman, em alusão a Getúlio. “Ah, bobagens e mais bobagens!”, o subconsciente gritou para o consciente de Getúlio Nutini.

Cansou-se de andar sempre em linha reta e virou à esquerda. Logo em seguida, passou diante de uma banca de jornal. Por aquela região, os jornaleiros vendiam jornais e revistas dos mais diversos assuntos e das mais diversas localidades, sendo que a banca de jornal pela qual Getúlio acabara de passar possuía uma novidade: vendia, à mostra em plena calçada suja e desnivelada, livros. Diante de tal fato, ele congelou. Que homem de boa índole, haveria pensado, se antes não houvesse posto os olhos em um livro cujo título se lia “Mrs. Dalloway”. Quase que instantaneamente, voltou aos tempos infantis, quando foi com sua mãe e seu pai à Bienal do Livro. Uma lágrima saiu de seu olho direito, solitária. Mas logo depois seu olho esquerdo, muito solidário, projetou outra lágrima, fazendo com que as duas se encontrassem na ponta do nariz torto. Limpou o choro e retornou para o antes. Em tal Bienal, que naquele ano de 1753 acontecia na cidade de Trás os Montes, sua cidade querida, comprou um livro não muito fino nem muito grosso, com uma capa sem muitas cores contrastantes, em que se via apenas uma rosa bem rosada, diante de um fundo branco bem branco. O maior orgulho não era nem pelo livro em si, no fundo, e sim pelo preço com que conseguira obter tal mercadoria. Apenas dez contos. Quando Getúlio conseguia comprar livros e outros utilitários culturais e engrandecedores de espírito por preços tão em conta, era como se tivesse encontrado sem muitas dificuldades o caminha do Paraíso. Quando chegou à fazenda em que moravam, depois de muito tempo vislumbrando um arsenal literário, pôs um Virginia Woolf legítimo na estante reservada para os grandes clássicos. Em consequência de ainda estar lendo outro livro, conversou com Mrs. Dalloway: “Senhora, pode esperar algumas semanas? Juro que quando terminar com o Senhor João Miramar, venho correndo para a senhora.” Mas isso nunca ocorreu de fato. A senhora foi perdida. A empregada que cuidava da limpeza da fazenda a deve ter levado para passeios em outras pradarias. Getúlio nada pôde fazer. Nem demitir a maléfica foi capaz. Sua mãe não acreditou na estória. Então, para acalentar a dor, vestiu-se de luto por uma semana completa, escreveu em uma papel os dizeres: “Mrs. Dalloway, Virginia Woolf, descansem em paz”, colocou-o em uma caixinha de vidro e foi em direção ao rio que havia se formado próximo de onde moravam. Pôs, com toda sutileza que fora capaz de empregar no material, o caixão fúnebre em águas. Ele foi-se caminhando em sua total plenitude. Virginia Woolf fora jogada por ele no rio e nunca mais fez o caminho de volta para ele. As duas senhoras foram definitivamente mortas. Como a uma santa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a caixa, e as duas senhoras que dentro dela foram sepultadas, encontraram seu acalento dentro do líquido transparente e cheio de vida dentro. Diante da banca de jornal, naquela rua sem saída que tinha entrado, passou a acreditar na ressurreição e, por conseguinte, em Jesus Cristo. Isso pois, se até o livro havia ressuscitado, porque Jesus também não seria capaz de igual performance? Sua amada nunca lida havia voltado para ele. Tudo fazia um pouco mais de sentido no vazio existencial em que se perdia cotidianamente. Ajoelhou-se, encostou as mãos, que outrora pedira esmola e que agora apalpava ouro, no livro. Leu as letras que juntas formavam a frase, que juntas formavam o parágrafo, que juntos formavam o texto e que juntos formavam o livro, com tanta intensidade como a um garoto que perdia a virgindade com o mais belo semblante das redondezas. O mundo, naquela hora, o pertencia. Tudo era dele. O conhecimento era dele. Sua vida, que por anos acreditou que não possuía controle, passou a ser controlada por ele. A saliva escorria por seus lábios, como se houvesse a carne mais apetitosa diante de seus olhos castanhos, escuros. Teve, ali, a exata dimensão do prazer que a leitura o proporcionava. “Através da percepção e da notação do que se passa em torno e dentro da personagem central – Clarissa Dalloway -, Virginia Woolf apresenta a história de uma crise.” Igual, idêntico. Assim mesmo leu há tantos anos atrás. Sublime. Por já ser hora avançada e o frio extremo, o senhor que cuidava da propriedade encontrava-se bem dentro dela e Getúlio não quis perder aquela oportunidade. Seus bolsos estavam inóspitos. Dinheiro era inexistente para efetuar a compra. Sentou-se ao chão e rasgou o plástico que envolvia de forma tão apertada a obra. Comeu o livro com seu próprio furor. Encontrou seus dilemas, mas caminhar para o Nada ainda se fazia necessário e essencial.

Depois de ter se fartado com o banquete, Getúlio precisou pensar no que era para ser feito. Manter o livro na prateleira em que anteriormente se encontrava, mesmo aberto, para que outras pessoas pudessem ter a oportunidade que ele teve de aumentar seu autoconhecimento, ou levá-lo consigo, para assim poder desfrutar da felicidade eterna. Necessitou ficar parado, diante de um emaranhado de livros postos em ordem alfabética, contemplando-os, durante alguns longos instantes, para se ter certeza do que deveria ser realizado. Logo depois de se ver iniciada a grande questão, a cabeça de Getúlio começou a latejar de forma muito inapropriada. Seus ouvidos, tanto um quanto o outro, passaram a escutar algo. De início, quase nada, de tão baixo que se falava. Depois, gradativamente, o homem começou a entender o que estava sendo expresso dentro de sua mente. Percebeu que havia não apenas um monólogo em sua cabeça, mas sim um diálogo. Apesar de tudo, o próprio Getúlio Nutini não era nem sequer o mediador do impasse. Não participava de absolutamente nada do que se passava. Estava ficando cada vez mais irritado.

O Vermelho disse para o Branco que já era hora de pararem de conversar apenas entre eles e colocar o hospedeiro no falatório. “Oh, Senhor Nutini! Por favor, ajudai-nos!” Getúlio deu uma volta de trezentos e sessenta graus para tentar encontrar quem pedia ajuda. Não viu ninguém na rua em que se encontrava. Nem nela, nem em suas adjacências. O jornaleiro passara a dormir um sono profundo e, de tão denso, praticamente mortal. A rua, que sem saída fora feita, tinha mais ninguém além dele e o dorminhoco. Chegou a caminhar para olhar a Avenida dos Santos Anjos, de onde saíra, para entrar na rua em que estava agora, tentando ver algum ser humano suplicante. Ninguém. Vazio. Ausência completa. Voltou para onde estava, diante da banca de jornal, revistas e livros. Olhou para dentro dela e não viu o senhor, que lá dentro desfalecia. Ficou, por frações de minutos, com medo. Mas tal sensação era reservada para os que não tinham medo de certas coisas. Pois, apenas os que não possuem temor de algo, podem saber o que é ter medo de outro algo, ao passo que seria uma sensação contrastante a outra. Tal é a dicotomia da vida. Por Getúlio só conhecer a sensação do temor – que, para ele, não possuía esse nome, ou sequer possuía nome –, ela era a reinante sempre, sem nunca tê-lo abandonado. Quando ia se encaminhando para o muro que encerrava a rua, o Branco gritou para Getúlio: “Pare! Somos nós! Seu inconsciente!” Obedeceu, fitou os tijolos velhos que formavam o muro e tentou enxergar seu cérebro. Ainda que não conseguisse de fato olhá-lo, pelo menos o escutaria melhor. Os três, juntos, formularam a tese da leitura do livro. Por quê? Sabe-se lá, apenas obedecia ordens alvirrubras. Assim dizia o manifesto que o Vermelho e o Branco mandaram que Getúlio escrevesse:

“Um livro deve existir única e exclusivamente para perpetuar, difundir, disseminar uma ideologia. Jamais alguém pode partir do princípio do lucro para se iniciar uma abordagem contista de uma estória. Se assim o fizer, o âmago do livro perde seu valor, seu sentido, seu poder. Quando se preza pelo dinheiro, a forma entra em evidente decadência. Acaba-se o teor de experimento que se propõe a literatura como arte. A literatura entra no caráter comercial, mercantil, fabril. As editoras até encontram conforto nesse quesito, sendo felizes com a resolução da ‘literatura comercial’, mas apenas em curto prazo isso se mostra palatável. Porque, se se pensar em um período mais longo, apenas os livros não comercias encontram a divindade.”

Deu o ponto final, foi em direção ao único estabelecimento da rua, colocou o papel com o “Manifesto da Literatura” em cima do balcão e desejou que alguém algum dia pudesse passar por ali e ler o que estava escrito. Realmente, cem anos depois, alguém passou por ali. Era um menino de dez anos de idade, que acabara de sair da escola. Encontrou um papel amarelado dentro de um quadrado de alumínio que havia pegado fogo alguns anos antes. Leu com certa dificuldade, pois aquela ortografia já não se mostrava mais vigente. Mas ainda conseguiu ler, ao passo que a língua ainda permanecia a portuguesa. Não concordou muito com o que ali estava escrito.

Ao sair da rua sem saída, Getúlio retornou à grande avenida que aparentemente não tinha fim. Precisava, ainda, chegar ao Nada. A avenida mudava de nome a cada cinco quarteirões. Getúlio lera dez nomes diferentes.

Gritou. Jogou-se no chão e chorou como a um bebê faminto e sedento por leite materno. Não compreendia o que poderia estar acontecendo com ele. Passou a sentir falta de seu quarto quadrado, pequeno e opressor. Lá, pelo menos, estaria a salvo e com calefação eficiente. Maldisse o dia em que sua mãe pensou em ter um rebento. Qual o motivo para querer colocar no mundo uma pessoa que correria sérios riscos de ser que nem ele? Era triste pensar em como sua vida era limitada. Nunca alguém lhe disse que o amava, nem seus pais. Segundo eles, o filho era causador de grandes problemas e dizer “nós o amamos” seria algo como um consentimento das atrocidades cometidas por ele. Getúlio não entendia muito perfeitamente quais as acusações concretas que pendiam contra ele. Viveu sua vida da mesma forma. Sairia de casa muito cedo, aos dezessete anos. Estudar poderia ser uma solução para sua angústia interna.

O céu passou a ficar mais denso, com nuvens chegando carregadas de cidades vizinhas. Sem pedir licença, uma melodia foi ouvida pelo coitado estendido no chão a chorar. Definitivamente, estaria iniciando um processo de loucura sem remédios. Correu. Desesperadamente, quis sair de onde estava. Uma tentativa de preservar a suposta sanidade que ainda gostaria de deixar com ele. De olhos fechados, tentando conversar novamente com o Vermelho e o Branco, pensou em acabar com toda aquela situação. Não! Quis ser mais forte! O Nada ainda não se fazia presente.

Quanto mais se desesperava, mais a melodia se tornava clara em sua mente. A música se fazia entendível e a sandice caminhava para fora do corpo de Getúlio. Cambaleava delirante, mas determinado. O Nada não deveria estar longe. Tinha que chegar. “Tenho que chegar.”

Não havia mais rua. Não havia mais cidade. Não havia mais chão. Não havia mais jornaleiro. Não havia mais quarto. Não havia mais nada por ali. Apenas um grande breu se fazia presente diante dele. Finalmente! Que alívio. Deus, se existisse, teve piedade dele. Não aguentava mais ficar caminhando de forma desmedida e desenfreada. Chorou agora de alegria, não mais de tristeza. Tudo se fizera findo. As coisas passadas não tinham mais importância, as do presente estavam acontecendo ali e as do futuro não poderiam mais acontecer, porque o homem estava diante do Nada.

Abriu um sorriso na cara, pensou em como era lindo. O homem mais lindo do mundo. A pessoa mais feliz do mundo... Claro que se fosse antes, ele não estaria fazendo tais afirmações. Mas como estava diante do Nada, tudo era permitido e, como já dito, o passado não tinha mais importância. O mundo sempre o havia oprimido, sendo que agora o horizonte o enchia de esperanças. Colocou a mão em seu bolso direito e, surpreendentemente, encontrou algo volumoso nele. Retirou-o de lá e notou que era uma garrafa cheia de Vodka. Não sabia como aquilo havia parada ali, mas foda-se. Chegar ao Nada bêbado seria mais fácil. Agradeceu a quem poderia ter posto aquilo ali.

Voltar não voltaria. Seguir em frente era o que queria. “Vou ao teu encontro, Mrs. Dalloway. Vou ao teu abraço, Mrs. Woolf.” Entornou dentro do fígado toda aquela quantidade de bebida alcoólica. Queria cantar, como nunca o haviam permitido. Sempre acreditou que quem cantasse, seus males espantasse. Mas os vizinhos e os parentes não compartilhavam do mesmo ditado popular. Gritavam com ele: “Pare, matraca!”

Embriagado já estava.

“If I was young, I’d flee this town. I’d bury my dreams underground. As did I, we drink to die, we drink tonight!”

Assim, bêbado e cantando, como sempre quis e nunca o deixaram, voou ao Nada, de encontro com Virginia Woolf, Mrs. Dalloway e Elefant Gun.

Saltou do precipício. Não caiu. Voou. Flutuou em direção ao Paraíso dos Oprimidos. Lá, de onde as pessoas vieram do pó, do pó passaram e ao pó retornaram. Se algum dia o quisessem retirar do Paraíso, simplesmente diria: “Se vocês querem me mandar para a reabilitação, eu digo não, não, não!”

IX) Amar: Transtorno obsessivo compulsivo

Ontem choveu
E levou minhas lembranças comigo
Agora vivo do presente
Sem passado e incerto do futuro
Perco a esperança
Encontro a pouca bonança
Nem meu amor está aqui
Para acalentar-me em frenesi
Queria ser menos fortuito
Mais virtuito
Mas de que adianta?
Eu estou aqui e você ali

Ontem solou
A vida não estragou
Fui à praia
O povo entornou
Quis ficar
A turma me incentivou
Mas ao cair da noite
Perdi a vida, com sorte
Lembrei-me que tu lá não estavas
E que a vida era bosta emplastada

Alguma coisa aconteceu
Sim, sempre soube que Paris existiu
Vi ali você regressando
A vida cor-de-rosa se fez
Acalentou-me o coração o amasso
Que não quis perder por um compasso
Pois sabia que depois de tudo
Adeus seria dado
Mas Deus não nos tira o que nunca nos foi dado

E vendo a vida em cor-de-rosa
Vou me despedindo de tudo
Com o sorriso no rosto do tristonho
Para acabar com tudo, de coração lavado
Chegando feliz, lá no fundo.

X) O escritor

Quando seu irmão nasceu, com traumáticos dois anos e nove meses a menos na idade da certidão de nascimento, o homem que um dia se propôs a tentar escrever alguma coisa pensou consigo mesmo, sendo a ideia exposta a seu pai logo em seguida, que seria muito interessante saber ler, para que, com isso, pudesse acompanhar a missa de batizado de seu companheiro de pai e mãe, realizada em maio do ano de mil novecentos e noventa e três. Juntamente ao desejo da leitura, veio o da escrita, que apesar de ser aprendida quase que ao mesmo tempo por crianças na escola, possui uma carga de dificuldades muito maior e uma responsabilidade intrínseca imensa a ser carregada pelo feitor do texto escrito e não apenas passivamente lido. Nos dias em que ultrapassava a madrugada almejando transcrever psiquicamente no papel algo de interessante e construtivo para alguém, rogava pragas ao dia em que pensou em querer aprender a escrever, pois era algo tão desgastante e sem muito sentido instantâneo, que poderia vir a tirar as esperanças dos menos corajosos e bem aventurados do reino de Deus. Ler, portanto, era algo tão simples, tão gratificante, tão relaxante e recompensador, que, na balança das virtudes, encontrava-se em patamar completamente superior a qualquer outra maneira de se passar alguma informação para terceiros. Ler coisas dos outros, é claro, pois sempre são os outros que escrevem as melhores coisas, sendo elas consequentemente as melhores coisas para serem lidas. Apesar de tudo, ele até gostava de ler as coisas que escrevia, pois se estava a ler, era porque o texto já havia passado por seu crivo censurador algumas vezes e alcançado uma glória de permanência pouco comum na vida de uma página de papel preenchida por letras. Mas quando quis, há tantos anos atrás, além de saber escrever, ser um escritor, não sabia dos percalços que teria de percorrer para alcançar uma glória permanente apenas durante o tempo em que as pessoas o quisessem ler, ou as pessoas que leem quem o lê quisessem fazer o mesmo.

Isso, portanto, de querer escrever, vem muito por causa dos bons livros que o escritor, durante a vida, tem a oportunidade de ler. Os clássicos e as boas obras, que o deixam de certa forma encontrando o divino ao fim da última página, da última palavra, que o fazem querer escrever também, passar toda aquela alegria, tristeza e, principalmente, melancolia, para os outros. A desgraça, então, é quando se perde a vontade de ler os livros deles e tem-se a prepotência de querer escrever os seus próprios. Ele, coitado, não sabia que, para ser autor consagrado, de renome e bem criticado, teria que ter passado como requisito básico por muitos livros grandes, complexos e eruditos e ter atirado longe grandes tiras de árvores amazônicas tropicais tupiniquins, por tê-las achado feias e sem sentido concreto, ou até mesmo abstrato.

Sua leitura começou com alguns livros de capa vermelha fina, dados por seu pai. Possuíam muitas ilustrações, letras grandes, pequeno texto e muita diversão para as horas pré-sono protagonizadas pelo homem. Rivalizando as leituras com a visão dos filmes em fita (Meu Deus, alguém hoje em dia ainda se lembra de fita de vídeo? Hoje, acho que ainda sim, mas depois, acho que não mais) do Dumbo e do pinguim Arteiro, o escritor encontrou o ensinamento eficiente para a leitura. Em seguida, com a idade já mais avançada, teve o prazer de poder vislumbrar, diante de seus olhos muito cansados e com olheiras de tanto ler e pouco dormir, uma vasta coleção na biblioteca da escola em que estudava, no bairro carioca do Cachambi, mais conhecido por pessoas de outras zonas como “ah, ali no Méier”. Possuindo capas bem desenhadas e conteúdo aparentemente atraente, os livros de Agatha Christie ocupavam uma parte inteira e completa de estante feia e sem cor, sendo esta preenchida pela variedade de felicidades espalhadas por títulos e épocas de lançamento e edição. Tendo saído da aula e passado no local para escolher o primeiro livro a ser retirado da mais nova, ou seria a primeira?, biblioteca de seu conhecimento, ainda que hoje dizer isto o envergonhe, escolheu os dois livros que em seguida seriam sorteados pela coloração. O roxo, por ser cor predominante no momento, teve prioridade. Deixou, por fim, duas obras, que seriam escolhidas pela bibiotecária. Aquela seria a primeira vez, também?, que teria um contato e trocaria palavra com a senhora, sendo ela durante seis longos outros anos grande companheira. Tratando-se de “A mansão Hollow” e “Convite para um homicídio”, Maria Gladys apontou o dedo para o primeiro, permitindo ao então jovem rapaz o direito de deleite, mas a prisão da leitura, que torna-se, a longo ou curto prazo, compulsiva, grandiloquente, esquizofrênica e gratificante.

Dois anos depois, em decorrência de uma promoção de um jornal carioca, juntamente com um paulista, obteve uma coleção de trinta livros, a preços relativamente baratos, quatorze reais ou algo do tipo, somados aos três reais do jornal dominical, na época ainda não assinado por sua família, algo que só viria a ser feito no dia vinte e cinco de agosto de dois mil e cinco. Diferentemente dos outros livros que já haviam sido lidos por ele, pegou em mãos os considerados pelos críticos dos dois jornais os maiores clássicos da literatura nacional e internacional do século XX. Em dois mil e três, por julho, enfim, conseguiu alcançar o altar dos maiores clássicos da grande literatura, daquela que diz muita coisa para não dizer nada, ou daquela que diz coisas fáceis de maneira difícil. Como já tinha sido picado pelo mosquito da compulsão, passou a ler sem meias palavras. Parou no terceiro. Teve a maturidade de conscientizar-se ser novo demais para compreender tal tipo de estrutura frasal, literatura mais que infanto-juvenil, mas literatura de introspecção psicológica, epifanias sentimentais, fluxos de consciência e passagem de experiências de vida que ele ainda viria a ter muitos anos em seguida. Os clássicos – lidos paulatinamente, portanto, durante o longo do tempo – não o fizeram maior, nem mais forte em relação às dificuldades e dilemas da vida, mas o deixaram mais próximo do buraco existencial que há ao fim de cada coisa.

Mas o problema de querer escrever veio antes um pouco do início da leitura dos clássicos, ainda que os tenha deixado de lado por algum tempo, para maturar-se com literatura mais adequada. Não demorou muito para ter a ideia de que, infelizmente, com treze anos de idade ou por aí, nada de adulto poderia vir a ser escrito. Ainda que escrever seja se comprometer e em tudo que se escreva encontre-se vestígios e evidências de passagens, fatos e verdades autobiográficas, naquele instante o homem não estava po-dendo dizer em palavras coladas em folha aquilo que naturalmente estava vivendo, haja visto que sempre vivemos acontecimentos intensos e tristes o suficiente para serem um dia escritos. Sendo assim, poderia ter coisas já para dizer, mas ainda não sabia como. Marcel Proust não escreveu a coleção de sete livros desde os oito anos de idade, sendo elas feitas muito depois, ainda que com temática da infância, mostrando-se complexa e cheia de sentimento e tempo, comprovando que a infância e adolescência são sim momentos tão construtivos e literários, decisivos para a formação e criação de um caráter sólido e que perdura durante todo o resto da vida de uma pessoa, qualquer pessoa, seja ela boa ou ruim, rica ou pobre, escritora ou não escritora, fodida ou não fodida, por alguém ou pela vida.

Tendo decodificado a informação de que não seria capaz de escrever nada muito alguma coisa nem para si mesmo, quanto mais para os outros, chegou a uma conclusão solucionadora de problemas excelente: dentro de seu mundo interno imaginário e psicológico, só ele e apenas ele e mais ninguém tinham acesso a determinados livros. Ou seja, o escritor acreditou ou se fez acreditar que única e exclusivamente ele tinha possibilidade de folhear, ler, sonhar, livros que estavam guardados na biblioteca da escola. Como notou que eles já eram bem antigos, não apareciam na mídia e ninguém da escola praticamente os pegava, imaginou que era ele o único a ter aquelas preciosas coisas em mãos. Fora da escola, em casa, um tio, irmão de sua mãe, havia deixado vários livros um tanto que abandonados. Muitos anos depois o escritor chegou a conclusão de que sua compulsão por livros foi gerada em razão da genética proveniente dele. Ao ter a informação de que supostamente ele, escritor, era o único leitor de certas obras, pensou que poderia enganar os desavisados, fazendo com que copiasse os livros e os repassasse, como se fossem dele mesmo. Ninguém saberia que obras eram aquelas, ninguém na escola lia aqueles livros, ninguém nos jornais mencionava a existência por menor que seja de qualquer um deles. Sendo assim, aquele tesouro era dele, unicamente. Um achado, o caminho mais fácil e rápido para a felicidade, tudo de bom e do melhor, o reconhecimento como grande escritor para toda a vida. Um dos principais fatos que mais o animavam para copiar livros já consagrados era sua idade diminuta. Agregaria muito valor escrever profundidades tão profundas e complexidades tão complexas apenas aos treze anos de idade, ou até menos. Um gênio precoce, diriam todos. Mas como alegria de pobre dura pouco, encarou a questão de frente e vislumbrou o triste fim e verdade: a única vantagem, benesse e tantos outros adjetivos positivos, que aquilo o traria, se constituía em ter alcançado, muito rapaz, uma agilidade tremenda na digitação, sendo mais veloz até que uma dessas secretárias que fazem curso de datilografia. Daria um banho até nessas de antigamente, muito mais sérias e empenhadas. Sua habilidade era tanta que até seu pai dizia para que o escritor pusesse em seu currículo a rapidez na escrita computadorizada. Evidentemente, ele achava isso uma bobagem e refutava.

Segundo os analistas pelos quais o escritor passou até o exato momento de sua vida, o fato de ele copiar obras alheias, como “O jogador”, de Dostoievski, “Hamlet”, de Shakespeare, seria um desencadeamento para a descoberta de sua própria personalidade. (Sim, ele achava que Dostoievski e Shakespeare não eram tão conhecidos assim e poderiam passar batidos pela censura das editoras. Mas sua felicidade durou algum tempinho: chegou a mostrar a cópia de três capítulos de “O jogador” para Maria Gladys e ela disse: “Você é um grande escritor; uma grande pessoa.” O remorso sempre vinha ao lado, pois sabia que aquilo não era genuinamente dele.) Por todos que passou, adeptos sempre foram de Sigmund Freud e Jung. Falaram que o escritor, como adolescente, não possuía, ainda, pelo menos para si, uma identidade completamente formada e que, por isso, necessitava de um apoio externo aonde por ventura viria a se espelhar. Nunca chegou a saber exatamente se aquelas obras copiadas vieram a interferir na sua escrita futura, mas teve a certeza de que nunca chegou a ler de verdade aqueles livros, os copiando pela força momentânea e imediata que eles haviam causado em seu interior. Por conta própria, ajudado pela teoria da formação identitária que analistas chatos o haviam im-putado, entendeu o motivo pelo qual copiava a letra do coleguinha ao lado, na sala de aula. Tal hábito durou até o primeiro ano do ensino médio, surpreendentemente. O escritor sempre, logo que sentava-se na carteira, pensava mentalmente consigo próprio: qual letra hoje copiarei? Geralmente a escolhida de um dia durava por quase um mês, sendo posteriormente escolhida por outra supostamente mais bonita e com mais personalidade implícita. Muito disso veio porque ele acreditava que a letra estava unida ao modo da pessoa viver. Seu caderno sendo composto por letras que ele copiou de outrem o fazem, consequentemente, ter a mesma personalidade, atitude e alegria que o caderno da pessoa da letra copiada. Essa sensação era estendida a toda uma gama de atitudes vividas e cotidianas. Pegou-se a letra, pegou-se a vida, de terceiros. Não achando que poderia ter vida própria e pensamentos próprios que o fizessem poder escrever um livro, um dia olhou no espelho e disse: “Uma pessoa tão esquisita como eu definitivamente não tem como ser outra coisa na vida. Apenas escritores e malucos têm hábitos como os meus, transtornos obsessivos compulsivos como os que eu tenho, atitudes apersonais como as minhas, uma vida tão vazia externamente, mas ao mesmo tempo agitada internamente. Portanto, eu não sou nada e, por isso, continuo sendo nada.” No entanto, seu primeiro livro, por mais que tenha visto que aquilo não levaria a lugar nenhum, foi iniciado com algo já anteriormente escrito por alguém. Aquilo era, para ele, seu sumo, sua razão, sua explicação e entendimento. Não tendo nada a fazer no mundo, escreveria, apenas. Havia sobrado e definitivamente na terra dos homens e mulheres e crianças e cachorros e gatos e maritacas não existiria lugar para ele. Entendeu que escrevia porque era um desesperado e estava cansado, não suportando mais a rotina de ser sempre ele e se não fosse a coitada da sempre novidade que é escrever porcamente, ele se morreria suicidado simbolicamente todos os dias. Preparado, porém, estaria, para sair pela saída da porta dos fundos. Portanto, o escritor experimentou quase de tudo na vida, inclusive a paixão e o seu desespero subsequente. Agora, só desejaria ter o que tivesse sido e não foi. Ai. Tudo na vida, então, é uma hora. É uma hora de uma estrela, morrendo logo em seguida.

Quando pensava em escrever, pensava mais à noite, quase na hora de dormir. Ao entrar no computador, tentava escrever, mas não tinha muito sucesso na empreitada. Foi percebendo que, quando via uma folha de papel branca, sem nada ainda escrito, vinha como se fosse um bloqueio, algo difícil de se compreender, que o deixava amordaçado e não o permitia sair do lugar onde estava sentado, imóvel, com a mente oca. Isso ocor-rendo, levantava de seu pequeno falso trono e ia para a cama, pois no dia seguinte a vida continuava. Ao fechar os olhos, mentalmente, constatava – com muito ódio no coração e perguntas incessantes das razões causadoras –, que escrevia as melhores passagens e textos mais lindos, que nem o melhor dos escritores poderia pensar em escrever. Ao dormir, tinha a certeza de ser o maior escritor do mundo, com tiradas primorosas e encontro de palavras exatamente perfeitas, mas tinha a infelicidade de notar que aquele momento era breve e que o fim estaria chegando, logo que alcançasse o sono profundo, ao sonho atormentado. Já até tentou escrever logo em seguida ao pensamento dos olhos fechados, mas seu cérebro é mais esperto que ele e sabia que o epifânico chegou em momento de olhos fechados, devendo ficar restrito àquele momento e à minha (inconsciente, ato falho, perdão) pessoa. Que bodega. Sonho se fosse bom, em alemão não seria quase que “trauma”. A experiência de ser bom escritor apenas no sono o traumatizou.

O escritor utilizava, apenas para exemplificar aos amigos e familiares tal situação, o trecho a seguir, ressaltando que o havia pensado ao quase dormir: “Sinceramente, a dor dói tão doída, que quando ela doi, chega a doer tanto, que eu chego a gritar um grito alto, que chega tão longe e ao mesmo tempo não chega a ninguém, que acaba me fazendo ficar com mais dor, fazendo com que volte tudo ao princípio, matando e consumindo as almas doloridas e sofridas dessa África de sofrimentos mundanos e sem sentido, que existe internamente dentro de nós mesmos.” Um gaiato, em certo dia, perguntou: “Como pode você dizer que não consegue escrever bem e que as boas escritas se restringem ao sono e nada mais, se você conseguiu transcrever este trecho para nós?” Meu Pai do Céu, que alegria tomou conta da alma do coitado do escritor. Sim, ele podia transcrever a escrita do sono, mas depois de um tempo notou que isso ocorreu apenas daquela vez, não mais depois, sendo todas as tentativas posteriores frustradas.

Sua vida estando boa, não dava muito bons frutos, mas quando estava abaixo do nível da merda, aí sim, dialeticamente, via o paraíso diante de si e conseguia escrever. Apenas pequenos trechos isolados e soltos, sem muita coesão e coerência entre si. Um romance, então, pelo escritor, nunca seria escrito, continuando nesta dinâmica. Vendo que nunca sairia daquele vício de não conseguir se expressar e que muito da culpa era de seus pais, que sempre o exigiram explicações antes dos atos, sempre o oprimiram e o deixaram completamente inseguro diante da quase totalidade de pendengas da vida, quis então ser um escritor confessional, desses que dizem tudo de si mesmos nos livros e que podem se dar ao luxo e à enganação de dizer que escrevem literatura ficcional, portanto inventada e não condizente com suas vidas reais, dando um valor maior a escrita. Pois há de se convir que escrever sobre frustrações próprias é muito mais fácil que escrever sobre as alheias e desconhecidas, portanto. Você tem apenas que encontrar palavras certas e difíceis para ter lugar cativo na Academia Brasileira de Letras.

O escritor, no fim das contas, nunca se considerou, para terceiros, em sua vida, um escritor. Tal profissão, podendo ser chamada assim, era apenas considera dele para consigo mesmo. Quando qualquer documento o perguntava a profissão, atividade, até ele imaginava o quão ridículo seria colocar ali o substantivo “escritor”. As profissões dignas são medicina, engenharia, direito, e não escritor. Ninguém é escritor. As pessoas, na realidade, estão escritoras. Esse é o grande problema que a questão problematiza. Se a maioria dos seres humanos que desejassem escrever alguma coisa ganhassem dinheiro nesse processo dolorido, as coisas seriam bem melhores e os suicídios cairiam de forma bem significativa.

O escritor, então, depois de passar algum tempo sem nada fazer, apenas pensan-do em, decidiu agir. Pensou. Escreveu. Apagou. Reescreveu. Pernoitou. Imprimiu. Pagou. Fotocopiou (para não fazer propaganda espontânea). Procurou. Editora. Anos. Achou. Editou. Lançou. Ganhou? Li. Lestes? Leram? Lerão? Lerinho? Não. Procedimento? Parar e voltar à biblioteca da escola para copiar livro dos outros, para depois perceber que todo mundo já conhece aqueles livros e jogar tudo fora. Fazendo isso algumas sucessivas vezes, você, porque isso aconteceu com o escritor, se dará conta de que existem coisas que tem mais valor na vida, como andar de bicicleta e passear com o cachorro na rua. Mas até o escritor chegar nesta conclusão, ele já havia perdido quase toda a sua vida em nada, porque muito se escreve e os outros não perderão o tempo deles lendo coisas que você está escrevendo. Fik a dik: desista de contar como foi legal seu dia de garota emo pré-adolescente no blog e de como você a-mou o CD do Cine, porque ninguém se importa por isso e muito menos com você.

Tudo já foi escrito por todos os outros anteriores. Mas, então, porque escrever? Se não escreve-se, explode-se. Simples assim.