sábado, 30 de maio de 2015

Karin e a autoficção em "Costuras"



“Há uma linha tênue entre o que é verdade e ficção, isso se tiver linha alguma. Eu perguntei para Zélia se ela algum dia já havia dormido com um homem. (...) Ela olhou para mim e disse: “Eu não posso te ouvir”. Quando eu a perguntei pela segunda vez, ela respondeu: “Eu nunca fui casada” (...) Meu pesadelo: Zélia olhou para mim e perguntou: aos 26 anos e ainda não tem namorada? (...) Olhei para ela e disse: “Eu não posso te ouvir”. Quando ela me perguntou pela segunda vez, eu respondi: “Não, eu não tenho. Não exatamente”. E ela também falou: ‘Por que é tão complicado?’”

terça-feira, 26 de maio de 2015

Teoria do choque


Por que escrever um poema com rimas, se a vida não rima?
Por que escrever um poema, se a vida não é poema?
A vida é a sucessão dos dias, sentidos ou não sentidos, com sentido ou sem sentido
A vida não vai deixar de ser o que ela é, já que não é morte.
O que me resta a fazer, para conseguir traduzir
O que tenho a dizer, se a linguagem não é capaz de abarcar a experiência
Seria eu merecedor de solucionar o problema, ou de apenas enquadrá-lo?
É simples dizer que, naquela mesa de cozinha, falta uma cadeira
Difícil é explicar o vazio causado pela falta da cadeira da mesa de cozinha
O testemunho do grande trauma existe, a grande História existe
Mas o que me resta diante daquele pequeno trauma diário
Aquele trauma diuturno
Construído hoje de manhã no café, ontem de tarde no almoço e amanhã de noite no jantar?
O que fazer com essa pequena estória, esse pequeno relato de desgraça, essa ferida
Que não cura, mas que não dói
Ela não dói porque eu não a sinto
Eu morro quando sou esfaqueado e morrer esfaqueado não dói:
Eu morro porque o sangue se me esvai e eu perco os sentidos
Mas doer mesmo, não dói
Viver não dói, pensar em viver dói
Não quero contar, quero relatar
Não posso narrar, posso dizer
Vamos todos, juntos, para o reino da mímesis?
Esse poema não consegue falar tudo o que eu tenho que chorar

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Hoje, Clarice vai me telefonar



Estou indo agora dormir e bateu uma nostalgia muito grande, porque lembrei-me de Clarice Lispector. Mas como eu posso lembrar-me de alguém que eu nunca conheci? Claro que conheci, oras, fui íntimo até: li seus livros e, por isso, não a decifrei, porém – quase – me decifrei. Maior escritora não dos brasileiros, mas de cada um de nós, Clarice poderia me ajudar, hoje, em minha iniciante carreira de escritor. 

É conhecida sua fama de oráculo de novos autores: o poeta Manoel Bandeira chegou a mandar seus poemas para ela, mas infelizmente não obteve resposta; o crítico e escritor José Castello mandou-lhe um conto de sua autoria, cuja resposta veio apenas tempos depois: “Liguei para dizer que recebi seu conto. Só tenho uma coisa para lhe dizer: você é um homem muito medroso e com medo ninguém escreve. Boa tarde”; e a favelada Carolina Maria de Jesus, que na verdade nunca endereçou ao Leme seus textos para serem analisados, mas como quase iletrada, recebeu o grande incentivo de sua vida por meio de Clarice: “Você escreve a verdade”. E eu, pobre coitado de 25 anos e 1.60m de altura, receberei de quem o incentivo para saber se escrevo bem ou mal? 

Acho que nunca entendi Clarice como queriam que eu a entendesse. Conheci-a por meio de seu último livro, “A hora da estrela”, aquele em que ela tentou ser mais “escritora”, com uma escrita mais “narrativa”, contando de verdade uma “estória”. Era prova de escola e, por mais que eu tivesse me apaixonado perdidamente, sem eira nem beira, num poço sem fundo, por palavras que me caíram como um soco no meio do coração, por aquela “Hora...”, a professora não concordou com quase nada do que eu disse sobre o livro. Fazer o que? Ou eu não a decifrei, ou ela me decifrou, ou eu a decifrei de um modo que a professora não decifrou, ou ninguém decifrou-se, restando a ninguém entender ninguém, apenas aceitar essa grande dor que é viver. 

Ela estaria hoje, se viva fisicamente fosse, morando naquele canto entre Botafogo e Copacabana, em um apartamento que pegou fogo porque ela dormiu com o cigarro aceso, mas que hoje é habitado pela atriz Zezé Mota. E se eu encontrasse Zezé e levasse ao apartamento meus contos? O apartamento conseguiria ler-me? Soube que devem construir uma estátua de Clarice na praia do Leme, tipo aquela que fizeram de Carlos Drummond de Andrade na praia de Copacabana. Disseram-me certa vez que Drummond foi o brasileiro que mais perto chegou de ganhar o Nobel de Literatura. Clarice teria chegado perto assim? Caso eu perguntasse para sua estátua: “Eu sou bom?”, receberia alguma resposta? Eu, tal qual Pigmaleão, apaixonaria-me pela estátua e estaria amarrado a ela para sempre, assim como o estou pela palavra que chega a mim de Clarice. Mas aquelas letras não são Clarice, são apenas letras. Mas aquilo tudo é Clarice/Guido. 

Vou dormir e vou sonhar que ela me telefona e me diz: “A partir de que momento o escritor passa a ser uma pessoa triste?”, mas então eu lhe responderia: “Clarice, fizeram essa pergunta para você, na verdade”, no que ela me responderia: “Mas eu quero saber o que você teria a dizer sobre isso”. Eu, então, quem sabe, sonhando, diria, que nem ela, “basta qualquer baque mais forte”? Acho que responderia que escrevo porque viver não é suficiente para dar conta, mas nem a linguagem consegue dar conta da experiência, então o que eu posso dizer? “Escrevo por não ter nada a fazer no mundo”, ela disse, e ela disse também: “Vocação é diferente de talento: você pode ser chamado e não saber como ir”. Pronto, se eu escrever mal, direi isso mesmo, dando os créditos para Clarice: tenho vocação, mas não talento. E pior que eu me chamo Guido, aquele que guia. Clarice, me liga hoje, por favor.

domingo, 24 de maio de 2015

Eu através



Vá e olhe o espelho diante de ti
O que vê?
É você?
É uma imagem?
É o outro?
Eu enxergo o que está lá, mas eu não enxergo-me
O espelho não me faz ver-me
O que eu olho é um que não sou eu
Aquilo não é você, não sou eu, não é ninguém
Aquilo não existe
Eu vou continuar existindo se o espelho não existir mais?
Narciso, no espelho da água, não apaixonou-se por si
Ele apaixonou-se por uma imagem
Pigmaleão não apaixonou-se por uma mulher
Ele apaixonou-se por uma estátua
O eu, o outro
O mundo como produção fantasmática
O fantasma como fetiche
Édipo vai desvendar o enigma da Esfinge e o mundo será salvo
Quem vai matar o pai e se casar com a mãe?
O mundo como produção semântica

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Praia aterrada do passado


“Escrevo para dizer que não morri, só voltei para casa” (Donato/Wagner Moura - "Praia do Futuro", em 1h45mins41segs)

"A convergência semântica entre amor e herói, que já está presente em uma etimologia imaginária do 'Crátilo' platônico, no qual Sócrates, de maneira jocosa, deriva a palavra herói (ήρωας) de amor (αγάπη), 'porque os heróis são gerados por Eros'" (Giorgio Agamben - "Entre Narciso e Pigmaleão", em "Estâncias - A palavra e o fantasma na cultura ocidental", página 195, Editora UFMG, 2007)

“O que tu ia fazer se eu sumisse um dia aí nesse mar?”, pergunta Donato (Wagner Moura) para o irmão caçula Ayrton (Jesuíta Barbosa). “Tu é o Aquaman, cara. Como é que o Aquaman vai sumir no mar se ele já é do mar?”, retruca Ayrton. É para sumirmos e nos encontrarmos (ou nos encontrar para sumir/sumir para nos encontrar), então, que o diretor brasileiro Karin Aïnouz (“O abismo prateado”, “O céu de Suely”, “Madame Satã”) se lança no roteiro (junto com Felipe Bragança) e direção do filme “Praia do Futuro” (Brasil/Alemanha, 2014), que por meio da metáfora do super/anti-herói (as personagens são identificadas com Speed Racer, Aquaman e Motoqueiro Fantasma e a parte estética também conflui para isso) conta a trajetória não linear do salva-vidas Donato, de seu irmão Ayrton e do alemão Conrad (Clemens Schick), em três capítulos compactados em magníficas 1h45mins de duração: I – “O abraço do afogado”; II – “Um herói partido ao meio”; e III – “Um fantasma que fala alemão”. Afetos são postos em xeque em uma história poucas vezes contada com tamanha mestria, focada na produção de sentido não da forma como conseguimos imediatamente decodificar em filmes enlatados, mas daquela maneira dolorosa e complexa, permeada de caminhos escusos e armadilhas profundas, que só a grande autoanálise é capaz de provocar no ser humano – a que nos faz descobrir quem somos.

Donato é um bombeiro salva-vidas, morador de Fortaleza (Ceará) e atuante na Praia do Futuro – “(...) lá não tem prédio por causa da maresia, do salitre, que só perde para o do Mar Morto. Não dá para construir prédio lá, porque o sal é tão violento que entra por dentro do concreto para comer os ferros” (Donato). Conrad, motoqueiro e dono de uma loja de conserto de motos na Alemanha, está no Brasil junto a um amigo (casado e com filhos na Europa), com a intenção de passear, mas após ambos entrarem no mar da Praia do Futuro, o amigo morre afogado. Donato tenta salvá-lo (“O abraço do afogado”), mas não consegue e vai até o hospital, onde encontra-se Conrad, para dar a notícia. Inicia-se, então, uma relação amorosa entre os dois homens. Ayrton, ainda criança (o irmão mais velho é tido, até então, pelo jovem como herói eterno e imbatível), vai, no dia seguinte à cena do afogamento, encontrar Donato na praia, momento em que ambos encontram Conrad – “Tu (Donato) contou para ele (Conrad) que eu sou o Speed Racer? Ele parece um motoqueiro fantasma” (Ayrton). Passa-se o tempo e, sem perguntas e sem respostas – apenas ausências sentidas por meio de gestos, olhares, toques e, principalmente, silêncio –, Donato está com Conrad morando na Alemanha (“Um herói partido ao meio”). A distância entre os irmãos (“O fantasma que fala alemão”) está presente e é focando no tripé Donato, Ayrton e Conrad (Aquaman/Speed Racer/Motoqueiro Fantasma) que o filme desenvolve-se. 

Por que Donato vai e não volta? Qual a falta que o irmão fez durante os anos para Ayrton? Qual a história passada e presente de Conrad? O que da relação amorosa dos homens nós sabemos? São sempre perguntas – nem sempre respostas – que o filme nos dá. E é esta, então, toda a beleza estética e de conteúdo dramático que o filme têm para nos apresentar. “Praia do Futuro” é um grande ensaio das relações e, por ser ensaio, não começa com Adão e Eva e nem termina com o fim do problema, mas se inicia na onda das emoções e é cortado no ápice do conflito, evidenciando a força que só a vida real tem. Reclama-se da falta de ação do filme. De fato, se formos comparar a filmografia de Karin Aïnouz com a de qualquer filme “de ação” de Hollywood, não acontece nada mesmo com os de Karin. No entanto, se olharmos de forma atenta, se nos enxergarmos de forma verdadeira, vamos sim ver todas as leituras possíveis deste grande clássico não apenas do cinema brasileiro, mas da cinematografia mundial. O poder do simbólico em nossas relações interpessoais é determinante e o filme nada mais faz do que conseguir de forma total retratar essa subjetividade arenosa e invisível que nos assola. Filmes focados em muita movimentação interior são a marca registrada do diretor (mestre em cinema nos EUA e radicado na Europa).

“O abismo prateado” é nada mais, nada menos, que um único dia na vida de uma mulher (Alessandra Negrini) que é abandonada sem motivo aparente pelo marido – em “O abismo...” e “Praia...” há cenas em que as personagens principais dançam sozinhas em uma danceteria, como forma extrema de encontro com suas individualidades e intenção de exorcizar seus demônios. Já “O céu de Suely” conta, em um registro avassalador do Nordeste, a vida de uma mulher que quer cuidar do filho e lidar com as circunstâncias nem sempre dignificantes da vida. Em “O abismo prateado” o marido fujão reencontra a mulher para viverem felizes para sempre? Em “O céu de Suely” a personagem-título encontra seu príncipe encantado para com ele viver em um castelo? Em “Praia do Futuro” teremos, mesmo, uma solução fechada para a problemática que é viver, conviver e se traumatizar? Não se vê razão para isso. São histórias comuns, de pessoas, de gente que não são o herói da literatura romântica dos séculos passados, mas sim o herói errante, o homem sem dom, que vemos em “A metamorfose” (Franz Kafka), “O homem sem qualidades” (Robert Musil) e “Diário de um ladrão” (Jean Genet), por exemplo. “Praia...” é um clássico (Ítalo Calvino), já que conseguimos (pelo menos eu consigo) ver sempre um filme novo a cada vez que o encontramos, um novo viés a cada sessão, a ele uma resposta diferente a cada encontro. Como em uma análise de terapia psicanalítica, é de extrema importância relacionar as cenas de ontem e de hoje, do passado e do presente, para conseguir fazer um retrato do filme. Essa é a chave.

Sempre que confrontado pelos motivos, Donato responde com silêncios. Sua infelicidade no Brasil não é necessariamente solucionada na Alemanha – “Deixe de tristeza, brasileiro. No futuro, tudo vai ficar bem. Ouvi dizer que no Brasil todo mundo é feliz” (uma mulher que trabalha no bar de uma boate, dizendo para Donato, em alemão). Sua paz de espírito em relação com a própria sexualidade não é também respondida em traços claros no filme – Ayrton, entredentes, chama-o de “baitola” e acusa: “Tu é um viado egoísta, que gosta de dar o cu escondido na porra desse Polo Norte”. Sendo visto como super-herói, é fracassando que Donato está inteiramente dentro de seu papel – “E se falhasse meu poder?”, pergunta Donato para Ayrton. Seu não-lugar, deslocamento e infelicidade o definem e o transformam ao longo do filme, fazendo com que o roteiro seja primordial para a compreensão da obra. Apesar de muito utilizadas neste texto, o filme possui poucas falas. Elas são de extrema importância para a compreensão da obra e, por isso, utilizo muito os diálogos para justificar minhas teses. A linguagem do corpo tem igual importância para a composição, e é nesta junção de linguagens que, como Freud entende, é que se consegue expurgar o mal – “Não tinha acabado já esse inverno? Está parecendo mais frio ainda” (Donato).

Lidando com a sexualidade à flor da pele – o corpo masculino é trabalhado de forma provocante para demonstrar o fogo e paixão (brega mesmo, porque o brega tem sua força) que representa a relação entre Donato e Conrad – o diretor Karin Aïnouz, para saber se o elenco teria uma boa química em cena, convidou Wagner Moura e Clemen Schick para um jantar, antes de saberem que seriam escalados para o filme. Foi lá que o diretor percebeu que havia entrosamento entre ambos e foi então que eles foram escalados para o papel. As cenas variam do sexo forte, com total entrega dos atores ao nu, ao beijo e à paixão, até o olhar desafiador, do dominante para com seu dominado, que ameaça e não compreende. A potência simbólica desta paixão é a cena em que ambos dançam “Aline”, que diz “Eu desenhei sobre a areia seu suave rosto que me sorria. Depois choveu sobre essa praia. Nessa tempestade, ele despareceu (...). Eu a procurei sem mais acreditar e sem esperanças para me guiar”, mas Donato está dançando com um retrato colado ao seu rosto, de uma menina, que estava pendurado na parede do apartamento de Conrad. Não se sabe quem é a menina.

P.S.: "De Aquaman para Speed Racer: escrevo para dizer que eu não morri, eu só voltei para casa. Aqui, nessa cidade subaquática, tudo para mim faz mais sentido. Eu não preciso me esconder no mar para me sentir em paz, nem preciso mergulhar para me sentir livre. E sempre que me perguntam como era aí, do lado de fora, eu conto de um menino que acha que não tem coragem, mas é o cabra mais corajoso que eu já vi: magricela quando todo mundo é forte, voz fina quando todo mundo é macho, pés pequenos quando todo mundo é firme. Conto do menino e digo que ele é meu irmão, que ele sou eu no dia em que eu tive que aceitar o quanto que eu tenho medo das coisas. Porque tem dois tipos de medo e de coragem, Speed: o meu é de quem finge que nada é perigoso; o seu é de quem sabe que tudo é perigoso nesse mar imenso". 

quinta-feira, 7 de maio de 2015

1° de maio

Não existe lugar para mim, pois eu sou o fruto da utopia - não me ambiento entre os meus de formação; sou frustrado no dia-a-dia diante de meu medíocre desempenho no que me dispus a fazer como trabalho. O que tenho de mim me consome deveras e o que tenho para oferecer como mão-de-obra especializada reduz-se a farelos de depressão, subjetividade e negação. Dizem haver no mundo registrado pela psicanálise um processo chamado “auto-boicote”: acredito ser eu. Quando posso, digo que não posso mais; quando quero, digo não querer mais; quando ganho, digo que perdi. Eu sinto-me mais confortável no desconforto do que no lugar comum. Prefiro sofrer para produzir o que eu quero do que ser feliz para copiar o que os outros querem. Não sei de absolutamente nada, só desconheço absolutamente tudo. Eu vou embora porque acabo de me demitir do meu décimo emprego em cinco anos.