segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

As melhores músicas do século XX

Melhor música francesa do século XX:



Melhor música americana do século XX:



Melhor música brasileira do século XX:


terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Who I am?

Who am I
Who am I
Was it all planned in advance
Or was I just born by chance in July
Who on earth am I
My friends only think of fun
They're such a curious a lot
Must I be the only one
Who thinks these mysterious thoughts

Some day I'll die
Will I ever live again
As a mountain lion
Or a rooster, a hen
Or a robin, or a wren, or a fly
Oh, who am I

Do you believe in reincarnation
Do you believe in reincarnation
Were you ever here before
Have you ever had dreams
That you knew were true
Some time before in your life
Have you ever had that experience
So you must question

All the truths that you know
All the love and the life
That you know and say
Who am I

Will I ever live again
As a mountain lion
Or a rooster, a hen
Or a robin, or a wren, or a fly
If I'm one of those lives
That have been reincarnated again
And again, and again
Oh, who am I


sábado, 27 de novembro de 2010

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Massacrar

“O desejo do puro é sempre hediondo.” Nelson Rodrigues

1) O que há de comum entre o massacre da Bósnia, Ruanda e Europa sob o domí-nio nazista? Qual o papel e de onde vem o poder do líder?

A intenção de “purificação étnica” é o que provavelmente encontra-se de elo entre os massacres descritos no livro do francês Jacques Semélin, “Purificar e destruir”. Tanto no ódio em relação aos judeus, equiparados aos bolcheviques, doentes mentais, homossexuais etc., para a ascensão ariana, quanto na ideia de “Grande Sérvia” e na oprimida e não-representada maioria hutu, vemos o objetivo de eliminar um determinado segmento, uma “raça”, uma “escória”. Na luta do “eles” contra o “nós”, um processo de legitimação da diferenciação é posta em prática pelos formadores de opinião dos respectivos países e povos, sendo eles jornalistas, professores e intelectuais em geral.

É neste cenário, quando a ideia de que o “eles” está ameaçando a integridade física, ideológica etc. do “nós” já está assimilada pela maioria, ou aparentemente assimilada pela maioria da população, que vê-se um terreno fértil para que um líder seja posto, dando ele um poder legítimo político para colocar-se em prática (entendimento lacaniano da “passagem ao ato”) o assassínio em massa, o genocídio, o massacre, que sobre o ser humano corporifica o poder (Vigiar e punir, Foucault).

Com a licença da palavra, eu gostaria de fazer alguns comentários sobre a situação de violência atual na cidade do Rio de Janeiro, que na semana da elaboração desta prova encontrou posição de destaques catastróficos, através da mídia e das autoridades, maior que o usual, haja visto que a estou acompanhando muito influenciado pelos ensinamen-tos obtidos em História do Mundo Contemporâneo.
Sendo assim, fico com medo de passarmos a ver os “traficantes” como “eles” e a “sociedade” como “nós”, achando que “aquela raça” deve ser aniquilada, para que o po-vo volte à sua normalidade.

Com isso – o apoio dos intelectuais e das instituições governamentais, que dão apoio a essa ideia e a transmite à população, fazendo com que o conjunto se tenha como ameaçado –, temo que se veja a questão do “marginal”, no sentido restrito da palavra, como alguém que pura e simplesmente deseja tirar o sossego de nós, ditos normais, ci-dadãos e sociáveis. Ou seja, existe um intrincado muito mais complexo, que envolve a questão latifundiária, educacional, moralista, econômica e do fato de a droga não ser vista como tema de saúde pública e sim como crime passível de punição, tendo-se o sis-tema prisional brasileiro como um grande agravante de todo esse esquema.

Então, quando uma autoridade diz: “vamos denunciar”, “vamos acabar com es-ses marginais”, “nossas famílias têm que voltar à paz cotidiana” etc., resguardadas as devidas proporções, me fazem lembrar os denuncismos e a situação infelizmente vividas na Alemanha nazista, em Ruanda e na Iugoslávia.

Não quero, com isso, dizer que a violência é legítima, por qualquer uma das partes, mas sim que temo que o massacre, o genocídio, seja algo autenticado no Rio de Janeiro, fazendo com que não consigamos ver que "nós" mesmos que excluímos esse "eles" que hoje dizemos que nos ameaça.

sábado, 20 de novembro de 2010

Sobre papai


"Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô, até mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justo como pai você era forte demais para mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais."


Carta ao pai - Franz Kafka

domingo, 31 de outubro de 2010

Um dos melhores discursos sobre Deus e religião


"Não compro todo o papo do Deus cristão, a onda toda dos testamentos não faz sentido para mim. Mas não tem como não acreditar em Jesus, que foi um cara fodão que andou ali pela Galileia e descobriu uma coisa genial. Naquela época, o cara fodão era o da espada e Jesus foi lá e disse: 'Brother, a parada é o amor, é o papo, é a gente se gostar.' E botou pra foder! Mas aí aquele papo da cruz, ressurreição e tal... é muito difícil pra mim."


Wagner Moura, em depoimento ao jornalista Ricardo Franca Cruz, na Rolling Stone de outubro de 2010.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sobre os animais

(Charles Bukowski)
"Sábado à noite. Seu programa é sofrer." (Cão da depressão, @caodadepressao)


"Dor de garganta. Não se compara à dor da sua alma." (Gato da depressão, @gatodadepressao)


"Lembre do seu passado. Perceba que nada de bom aconteceu." (Cão da depressão, @caodadepressao)


"Vieram te visitar. Carteiro." (Cão da depressão, @caodadepressao)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Ai Ai Ai

2) Joan Brossa era catalão, e por mais que a Catalunha seja uma região subjugada ao Estado espanhol castelhano, ele escolheu escrever seus trabalhos em sua língua natal. Portanto, a palavra “folha”, para o poeta visual, chama-se “full”. Mas assim como no português, tanto a folha de papel como a folha da árvore, ou a “full” de papel e a “full” de árvore, são homônimas, sendo distinguidas pelos símbolos indiciais¹. Tendo esta ideia como ponto de partida, “Falar implica a seleção de certas entidades linguísticas e sua combinação em unidades linguísticas de mais alto grau de complexidade.”² Certa-mente, a arte e Brossa apoderaram-se desta capacidade da língua de, em através de um signo verbal, poder referir-se a diversas coisas para fazer um jogo de significações com “Burocracia”. Com a definição de Roman Jakobson de “combinação” e “seleção”, vê-se que, para a elaboração do trabalho artístico, foi empregado o conceito do segundo, ao passo que o signo “folha” é apenas semelhante verbalmente entre suas duas possibilida-des, pois no aspecto físico e de função, o significado seja completamente outro: “(...) equivalente ao primeiro num aspecto e diferente em outro.”³. O título do trabalho e o clipe contribuíram para o entendimento do objetivo da obra e a situaram em uma linha de raciocínio. Apesar de tudo, por mais que a palavra “folha” esteja sendo analisada e vista como condição para o entendimento da obra, a linguagem não verbal é a predominante no trabalho e é ela quem o compõe, em sua totalidade. Por sabermos tratar-se da folha pela sua representação em imagem – e a partir daí que se passa a fazer a correlação linguística com seu homônimo – e pelo clipe que une as duas folhas nos remeter indicialmente ao trabalho de escritório burocrático de uma repartição pública, escritório etc., percebe-se que a correlação entre um signo verbal pressupõe a existência de um não verbal que o represente no mundo da percepção (uma palavra, um conceito, algo que não possua facilmente uma representação em imagem, um correspondente, torna-se rapidamente mais complexo de ser depreendido pela cognição humana, por tratar-se e chegar-se ao ponto de uma abstração). Substituiu-se uma folha por outra folha, gerando assim deslocamento e reflexão, através da seleção, em se tratando de folhas secas e caídas, sem vida, que demonstram a apatia de um estado burocrático e mecânico, em qualquer nível de relação interpessoal e de ofício.

1. Lúcia Santaella, “O que é semiótica?”, página 69.
2. Roman Jakobson, “Linguística e comunicação”, página 46.
3. ______________________________________ , página 49.


1) Em “O enigma de Kaspar Hauser”, percebe-se que o personagem principal, ao estar totalmente privado das experiências externas durante todos os primeiros anos de sua vida, faz com que ele não tenha a faculdade da fala e, consequentemente, não possua uma interação específica e compreensível de mediação com o mundo e seus fenômenos. Ainda que não saiba ler, escrever e falar, sabe pronunciar a palavra “cavalo”, sendo ele um brinquedo que possuía. Em momentos do filme percebe-se que ele consegue no decorrer do tempo falar outras palavras, mas inicialmente elas soam vazias de conceito e significação, sendo nula a relação de conceito e imagem acústica, demonstrando uma capacidade apenas de repetição. Esta realidade tendo se alterado no decorrer de sua vi-da, Kaspar Hauser consegue aprender a ler e a escrever, demonstrando em um ser adulto os percalços passados por uma criança ao aprender a ler, escrever, falar e interagir com o mundo, por mais que com ele tudo tenha sido muito mais dificultoso. Apesar de tudo, por mais que o personagem principal tenha conseguido aprender a linguagem verbal, ainda assim era complicado administrar sua relação com os conceitos e com os códigos não verbais vigentes na época. Sendo a natureza do signo linguístico aleatória, para ele o era também muitas coisas, estando ele, por mais que soubesse falar, ler e escrever, privado em momentos de conseguir formular uma frase sintaticamente coerente e que possuísse lógica, já que ela, assim como o signo linguístico, é socialmente convenciona-da. Um bom exemplo desta situação é quando Kaspar está conversando com um profes-sor e o último quer convencer o rapaz da melhor maneira de saber se alguém está falando a verdade ou não. A distinção entre realidade e sonho também é estranha a Kaspar, pois ele não atribui categoricamente as linguagens em estados distintos, sendo tudo um mesmo aglomerado de sensações, palavras e conceitos. Kaspar tendo desenvolvido boa habilidade para músicas e arte e não tendo um bom curvamento subjugado às convenções da época em se tratando de etiqueta e religião mostram como os códigos são, assim como a linguagem em seu conceito primário de fala, ensinados e decodificados desde a infância e passados adiante. O que Kaspar Hauser fez com sua incompreensão do mundo como o obrigaram a ver é o que os estudiosos, filósofos etc. o fazem também, questionando as padronizações, ainda que estes não sejam considerados tão anormais como foi o rapaz alemão. Portanto, vê-se que a natureza do signo linguístico proferida por Saussure é correta no que concerne a sua aleatoriedade e a suas imagens acústicas, tendo em “O enigma de Kaspar Hauser” um bom caso de entendimento da situação onde a noção de signo, significado e significante é conturbada para o personagem, assim como de fato deve ser mesmo quando a vida, questionada.

Teoria da Comunicação III

3) Relacione as ideias de Primeiridade, Secundidade e Terceiridade. de Peirce, com uma imagem/obra de arte a sua escolha, desenvolvendo uma argumentação.

O quadro “La reproduction interdite” (A reprodução proibida), do belga René Magritte, de 1937, revela a complexidade humana em sua condição moderna e o papel da arte dentro desta questão. Por mais que isso não seja explicitamente vislumbrado na obra, como algo óbvio e inerente, por meio das ideias de Charles Sanders Peirce, além de um não tão pequeno conhecimento de mundo, há como se chegar a conclusões que em um primeiro momento vemos como distante. Tendo como embasamento teórico para a interpretação dos signos – neste caso, a obra de arte – outro signo – neste caso, o signo linguístico verbal –, já que precisamos passar por ele para compreendê-lo ao passo que não conseguimos sentir o mundo diretamente sem mediações, os conceitos de primeiridade, segundidade e terceiridade serão utilizados, para que se possa alcançar uma visão mais clara do que de fato a obra de arte pretende dizer-nos, escapando do que é claro e minimamente explícito. Atendo-se a esses três conceitos, tem-se que as representações de todos os elementos do quadro compõem a imagem como um todo, em sua qualidade inicial e total, elas por elas mesmas em sua integridade conceitual pré-estabelecida. Essa imagem, signo, qualidade e primeiridade, unida ao contexto com o qual o quadro foi elaborado, que levam em consideração o título escolhido pelo autor, o lugar no mundo deste trabalho, sua época, seu movimento, ou seja, a corporificação material desta arte/questionamento no tempo faz com que tudo saia de sua qualidade perceptiva inicial e passe a obter outros significados vários, conseguidos através da contemplação e do deslocamento provocativo em relação aos parâmetros realistas-simbolistas. Portanto, a terceiridade é alcançada com a junção das duas etapas passadas, formando uma tríade difícil de separação na vida, para que o significado interpretativo total seja vislumbrado de uma coisa, qualquer coisa, na experiência sensível. Neste momento, então, somando-se imagem a seu contexto, para que se gere uma interpretação, vê-se em “La reproduction interdite” mais que um homem de costas para nós e de costas no espelho, mas sim um homem moderno incompreendido e incompreensível, sem sua identidade e com isso sem sua resposta. Problematiza-se a arte em sua condição de reprodução do real. Tirando o espelho de sua função habitual, e tendo em vista os conceitos conhecidos da obra de Magritte em relação às janelas, portas e espelhos, pergunta-se se a arte seria um espelho da realidade e, com isso, se ela seria capaz de responder o homem, de sabê-lo e conhecê-lo. Uma pintura, signo limitado no tempo e no espaço, transformado em metafísica questionadora, no desdobramento de conceitos permitidos através da qualidade primeira dos signos utilizados e selecionados unidos ao seu contexto social e artístico. Com esta obra em questão, entende-se que a pintura, obra etc. não é apenas reprodução, mas sim também manifesto político, social e questionador, ampliando sua função de início frugal e contemplativa.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Conversa entre escritor e editor


"Sofro tanto quando escrevo que parece que não sei ser outra coisa e tenho medo de assim permanecer e achar que minha felicidade está na tristeza. E é tentando colocar o que quero dizer pra fora que pretendo encontrar uma salvação feliz para mim, por isso que faço esses pedidos de permanência de algo e de mudança de outras coisas no conto, porque acho que o que quis dizer da forma que o fiz é a maneira como quero ser visto e compreendido pelas pessoas."

De Guido Arosa para Zeca Fonseca.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010



eu quero fumar, mas eu não posso fumar, eu não gosto de fumar. gostaria muito de mudar de vida, sair da minha bolsa auxílio, e não entrar mais em outro emprego, tão ou mais estressante quanto. eu acabo entrando na onda, apesar de tudo. acabo não saindo de um e entrando no outro, ou pelo menos pensando que posso entrar em outro, e que tudo ficaria lindíssimo e que eu ficaria riquíssimo. depois, volta tudo ao desânimo e ao desespero.

e eu só quero viver de escrever, mas o problema é que eu quero viver logo.

***

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Biscoito Fino lança este mês DVD em homenagem aos 50 anos de "O cavalinho azul"

Peça de Maria Clara Machado já virou filme, ópera e livro, agora chegando ao público como meio de preservação do passado cultural e visando a valorização do teatro e literatura infanto-juvenis




(Capa do DVD em homenagem aos 50 anos de "O cavalinho azul")


A Biscoito Fino, gravadora carioca no mercado desde 2001, em outubro lançará DVD pela comemoração do aniversário de 50 anos da primeira encenação da peça "O cavalinho azul", escrita e dirigida por Maria Clara Machado, considerada a maior dramaturga infantil brasileira. Fundadora do Teatro Tablado, uma das principais escolas de teatro nacional, faleceu de câncer há nove anos, mas deixou um legado vastíssimo de peças e livros ao longo de 80 anos de vida. Visando este legado que a Biscoito Fino presenteia seus ouvintes com trabalho de pesquisa e documentação primorosos, confirmando sua posição de vanguarda no incentivo às artes e ao reconhecimento de sua potencialidade no desenvolvimento de crianças e adultos.


Tendo recebido excelentes críticas na época de sua estreia, a peça, narrada por João de Deus, conta a história de Vicente, criança de origem pobre que vê em seu pangaré um belo cavalo azul, capaz de muitas peripécias e extravagâncias. Apesar de tudo, em consequência das dificuldades de vida da família, o cavalo é vendido, o que faz com que o garoto corra o mundo atrás de seu melhor amigo. Nessa busca, Vicente se depara com ambientes diferentes, onde passa por dificuldades e aventuras, mas não perdendo nunca seu intuito de reencontrar seu idealizado cavalo azul perdido. Peça infantil em um primeiro momento, Maria Clara Machado consegue alcançar crianças e adultos, já que o objetivo de ir atrás do que se ama e do que se acredita norteie o passar dos anos de alguém em qualquer idade.


(Fotografia da primeira montagem da peça, em 1960, no Teatro Tablado - RJ)

Manuel Bandeira, em sua coluna no "Jornal do Brasil", em 1960, afirmou que "Sonho e realidade, o sonho do menino, a realidade dos adultos sem resquício mais de infância, o circo e a cidade, chocam-se, combatem-se musicalmente nessa história fantástica, e naturalmente a vitória cabe à infância, à imaginação, ao sonho. Fica-se comovido. Eu fiquei comovido." Ao longo dos anos, recebeu adaptação para o cinema (dirigido por Eduardo Escorel, em 1984, com Joana Fomm, Erasmo Carlos e a própria Maria Clara Machado no elenco), para a ópera (músicas e libreto do maestro Tim Rescala, em 1991), fora outras encenações oficiais (em 1966, 1979, 1990, 2009 e 2010, atualmente no Teatro dos Quatro, no Shopping da Gávea) e livro. Considerada pela revista "Veja" a melhor peça infanto-juvenil de 2009-2010, sua última montagem tem direção geral de Cacá Mourthé. Nesse sincretismo de plataformas de projeção e de sentimentos, vários estudos acadêmicos já foram feitos, tanto sobre a peça especificamente, quanto sobre sua autora, como, por exemplo, "Interfaces midiáticas: do teatro ao cinema, em 'O cavalinho azul', de Maria Clara Machado", da Universidade de Marília.

Portanto, para que o legado de autora tão relevante no área cultural não seja esquecido, e aproveitando os 50 anos de estreia da peça, a Biscoito Fino pretende com este seu novo projeto levar aos adultos e crianças (e as crianças que coabitam os adultos) um feito primoroso, com depoimentos, extras e homenagens à arte que se inicia na infância. Principalmente, confirmando sua posição de vanguarda, a Biscoito Fino tenta mudar este cenário lamentável de esquecimento e renegação do produto nacional, que resvala e tem suas principais consequências no que se faz voltado em primeiro momento a um público infanto-juvenil.

Abaixo, segue entrevista feita pelo jornalista Sidney Rezende, contida no DVD, onde vê-se nitidamente o engajamento político e socio-cultural de Maria Clara Machado, que teve o privilégio de valorizar as crianças, para que estas sigam suas vidas com uma visão de mundo muito mais ampla que a tida por muitos adultos.






(Entrevista de Maria Clara Machado dada ao jornalista Sidney Rezende)


"Quando levamos o teatro para a criança, somos apenas aqueles que estão abrindo o caminho, o caminho que vai do sonho à realidade. Estamos criando, através da arte e a partir do maravilhoso, a oportunidade do menino sentir que a vida pode ser bonita, feia, misteriosa, clara, escura, feita de sonhos e realidades." Maria Clara Machado


(Fotografia de Maria Clara Machado)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

sábado, 4 de setembro de 2010

Os poemas inominados colados na porta do armário

Se um dia eu me escondesse
Seria onde eu seria mais triste
Mas ao mesmo tempo o mais feliz
Porque teria encontrado meu lugar calmo
Para poder ler e escrever e parar de ver.

***

Se eu acordasse cego um dia
Não saberia o caminho para os lugares
Os outros necessitariam ajudar-me
Para o Sol poder contemplar-me
Pois é no desassossego
Que o cego sente o tato.
Porque sentir é o necessário:
não ver.

***

Os outros querem aparecer
Eu quero transparecer
Os outros dão-me apenas alguns dedos
E eu quero a oficialidade da mão toda
Os outros vivem constantemente da surpresa
E eu vivo constantemente do espanto
Porque para mim as coisas são mais difíceis
Para mim as coisas são mais sofríveis
Porque eu preciso lutar para nascer,
Todos os dias, cotidianamente.
Para que os outros, um dia, com sacrifício
Aceitem-me
Porque eu quero a oficialidade da mão toda
Enquanto eles dão-me apenas alguns dedos.

Literatura do isolado

Eu queria viver de literatura
Mas o reconhecimento me trás empacamento
Então a solução seria viver de literatura
Apenas no isolamento.

Assim, ninguém acharia este poema ruim.
Apenas eu.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Brevidades literárias

A Maria já foi ao mercadinho, já colocou o café na mesa, já assistiu a Ana Maria, já levou o cachorro pra passear, já tomou seu café sem açúcar, já varreu o quintal, já almoçou seu arroz empapado com farofa e carne moída, já deu uma cochilada de quinze minutos, já lavou o banheiro, já voltou ao mercadinho, já lanchou, já deu tchau pra vizinha que chegava, já assistiu ao telejornal, já viu a novela, já deu boa noite pra vizinha. Mas Maria, ao dormir, não conseguiu, porque ela sentia e pensava e queria.

***

Cansei de falar de mim mesmo, porque eu sou um porre, e porres me deixam com dor de cabeça. Aliás, eu nem fico de porre, nem bebo, porque não gosto do gosto. Se eu sou um porre e se eu não fico de porre, eu não seria eu?

***

Eu não escrevo português, eu me escrevo. Eu não escrevi isso, mas gostaria de tê-lo feito.

***

Quando você termina uma coisa, até começar outra é difícil, difícil, difícil.

***

O João perguntou pro Joaquim se ele um dia morreria. Ele disse que não, porque ele não morreria: “Ou viro estrela, ou viro purpurina, porque sou bicha.” Foi aí que João disse: “Que nojo, vou embora.” E foi.

***

Fatalista, fatalista, fatalista. Sou fatalista, fat. Porque sou força de atrito, sou fatal. Fato.

***

Estamos com calor, porque o sol está muito forte em cima de nossas cabeças. Anita chegou ao seu pai, já perguntando: “Papai, o que faremos, diante desta situação? Passeando aqui por São Cristóvão, sem uma sombrinha?” Papai respondeu: “Anita, você pode cobrir-se sozinha. Basta querer.” Mas ela disse que não queria se cobrir sozinha; queria que alguém a ajudasse a cobri-la em seu desassossego em Santo Cristo Ovo.

***

Eu sinto-me ridículo divulgando-me. Parece que eu estou torturando as pessoas com a obrigação de elas prestarem atenção no que digo e escrevo. Escrevo? Sim. Sou escrito? Não. Mentirinha, apenas uma vez, mas deve ter sido por caridade, mas gostei tanto.

***

Todos querem aparecer

Eu quero transparecer

***

Aceitem-me ou Engulam-me

Dão-me apenas alguns dedos
Mas eu quero a oficialidade da mão toda.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Traduzir-se, ou velhos que parecem velhas


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
alomoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
_ que é uma questãode vida ou morte _
será arte?

sábado, 21 de agosto de 2010

O COMPLEXO MELANCÓLICO ou as veias carcomidas de uma vida bandida

O
COMPLEXO

MELANCÓLICO
ou As veias carcomidas de uma vida bandida



GUIDO AROSA


Desejo este livro a todas as frustrações, pecados, traumas e artes disponíveis, vividas, contadas e lidas, que proporcionaram-me vida criativa.


“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.” A hora da estrela – Clarice Lispector

I) Prefácio

Escrevo este livro desde a segunda quinzena de dezembro de 2007. Inicialmente, acreditei que estaria escrevendo um romance com “A vida da morte”, hoje o primeiro conto de “O complexo melancólico”. Isso ocorreu porque percebi que não possuo, ainda, disciplina suficiente para escrever uma estória grande do começo ao fim, que exige tempo, compromisso e técnica. Ao escrever instintivamente e tirar as coisas que saem de meus dedos de minha própria experiência pessoal e literária, constato que trabalhar com uma técnica, nesse caso, de um romance, seria ultrapassar necessidades momentâneas latentes, que obrigaram-me a colocar na tela do computador relatos curtos, mas nem por isso menos densos, de passagens consternantes e liricamente palpitantes dentro da mente do escritor.

“A vida da morte” nasceu pela ainda forte presença de “Cem anos de solidão”, romance do colombiano Gabriel García Márquez, do ano de 1967, em minha vida. Ao perceber que, apesar de todas as passadas tentativas, nunca havia conseguido terminar de escrever alguma coisa, disse para mim mesmo que, a partir daquele momento, o que escreveria não seria jogado fora e nem esquecido. Acho que consegui, pelo menos até o presente momento, guardar tudo o que já produzi, felizmente. Ainda que tivesse, mentalmente, forte presença lírica de “Cem anos de solidão”, o primeiro conto deste livro não chegou a ir para onde em princípio quis chegar, tendo sido levado para outros caminhos, não menos recompensadores.

Sendo assim, ao pensar que “A vida da morte” seria um romance de estilo realista fantástico, tão bem propagado durante a segunda metade do século XX pela América Latina, por Gabo e também por Mário Vargas Llosa, o nome deste livro seria este mesmo. Um mês depois, mais ou menos, ao perceber que aquilo não seria um romance, mas sim um conto, estilo que veio para favorecer meu modo de escrever, facilitando minha vida e permitindo que chegasse a fazer um livro, por mais que este não fosse um romance, resolvi colocar outro título para a obra, pois pensei que não seria necessário pôr um nome que seguisse o de um dos contos, sendo este hierarquicamente mais alto em relação aos demais. Com isso, “As veias carcomidas de uma vida bandida” estava crescendo, progressivamente, diante de minha inconsciência quanto gente.

Mas como, ainda que tarde, a lucidez chega à vida de uma pessoa, constatou-se, única e exclusivamente, por mim e por mais meia dúzia de pessoas, que esse título seria mais compatível a um melodrama televisivo mexicano, ou algo do gênero. Por mais que não tenha posto este nome em meu livro, sempre gostei muito dele e por isso o exponho aqui, para que a humanidade tenha conhecimento de tão bela criatividade que um dia eu cheguei a possuir. Ou não.

Há de se ressaltar que em nenhum (?) momento este livro é autobiográfico e nem revela estórias reais. Um escritor utiliza suas experiências de vida para fortalecer argumentos e incrementar uma narrativa, mas não há razão para se crer que é um relato juvenil fidedigno de minha pessoa. Como se vai garantir que Guido Arosa é mesmo meu nome? Eu posso estar mentindo, afirmando que é, sendo que, na verdade, é um pseudônimo, ou mesmo pode ser tudo ao contrário. Na verdade, escritores põem na voz das per-sonagens coisas que eles mesmos queriam dizer, sentir e ser, mas conseguem tirar o deles da reta pelo fato de terem dito que é “ficção”. Eu digo, concluindo, que meu livro é ficcional. Acreditem ao querer, ou não.

Já tendo dito isto anteriormente, nunca tive muita disciplina para escrever, assim como também tinha meus compromissos estudantis para cumprir, o que impedia-me de sempre estar a trabalhar nas palavras. Além do que, não é sempre que a inspiração está ao seu lado e o bloqueio mental ainda faz com que você não se sinta completamente dentro de sua suposta profissão, a de escritor. Deste modo, até hoje, janeiro de 2010, não sinto-me um, pois ainda não publiquei nada – vamos ver se alguma editora desejará acreditar em “O complexo melancólico”. Acredito ser mais um jornalista do que qualquer outra coisa e ainda não tive o reconhecimento da qualidade duvidosa destas linhas. Por isso, chego hoje, dois anos e um mês depois, ainda finalizando a obra, que não passa de poucas páginas.

No que se refere aos agradecimentos para a conclusão literária, reconheço a participação de Wesley Carneiro na elaboração de um dos contos, “Os fracassados”, pois foi feito em um dia em que fui, a convite dele, participar de uma roda literária em um apartamento de uma mulher, conhecida dele, que infelizmente não lembro-me do nome, no Leblon. Sei que no mesmo edifício vive Ney Matogrosso, que nasceu, aliás, no mesmo dia que eu, apenas para vocês terem uma noção de minha relevância astral. Os ou-tros contos são dedicados a Gabriel García Márquez, Fiódor Dostoievsky, Clarice Lispector e Agatha Christie, a última por ter me incentivado a ler compulsivamente e os demais na questão de conteúdo. Antes que me esqueça, quando falo de poemas, falo de Dilma Melo, professora de Literatura.

Não sei, definitivamente, se serei relevante para alguém, ainda que saiba, apenas, que tudo foi escrito em virtude de uma necessidade explicitamente interna de expor conceitos e extravasar a sempre latente necessidade de escrever e colocar em algum lugar algumas de minhas ideias tão díspares e confusas. Desagradando alguns, peço desculpas e aconselho a irem ler alta literatura. Agradando a poucos, pelo menos aos familiares e amigos piedosos, já me é o suficiente. Rejeição, então, não será tão grande e nem tão dolorosa.

Ao concluir o parto, muita água já rolou e eu não sei se progredi. Acho, enfim, que alguma coisa, pelo menos, eu fiz: escrevi nem cem páginas de texto do Word, que espero que tornem-se mais páginas quando em livro isto tranformar-se. Livros grandes sempre são mais bonitos na estante e sempre trazem uma aura mais séria, intelectual e de antemão boa literariamente falando.

Rio de Janeiro, 17 de janeiro de 2010
Guido Arosa.

P.S.: Tentei, tentei, tentei, com todas as minhas forças, mas infelizmente havia já algo impregnado em mim, que impedia-me de fugir do nome. Então, o livro não tem como não ter em seu título a novela mexicana.

II) A vida da morte

Arcádia Gonzáles pariu Loló em um dia chuvoso de abril. Não era muito comum tal fenômeno meteorológico em tal mês. Naquela cidade esquecida por Deus e pelo Diabo, se chove é por sorte, muita sorte. A população acreditava piamente que se o rebento nascesse em dia de sol, teria sua saliência para fora e, se nascesse em dia de águas, teria sua saliência voltada para dentro. É por isso que existiam tantos machos em um espaço tão restrito. Difícil perceber que aquilo era uma cidade. Se fosse constituída de quatro avenidas principais, oito ruas de menor importância e umas duas praças, era muito, mas já bastavam para encher de satisfação e alegria os moribundos semi-analfabetos e completamente desprovidos de senso crítico. O lazer se constituía em escutar ao rádio sintonizado na Estação Central todos os dias santos e não santos, às vinte horas. Cinema ninguém sabia que tinham inventado. As missas de domingo eram obrigatórias para todos, sendo que as viúvas se enfurnavam cotidianamente no local escurecido e repleto de imagens divinas trazidas pelos Zulus em séculos passados. Elas oravam por seus maridos ou amantes, esperando que não os castigassem pelos pecados cometidos em vida. Como poucos sabiam ler, poucos livros eram lidos por esses poucos. Vila Boa, definitivamente, era uma aldeia feita por fanáticos religiosos, por pessoas que perceberam que os ventos uivantes vindos do sul enlouqueciam os que por muitos já eram considerados birutas e, por fim, por homens mal cheirosos que gostavam mais do laboro do que de casa, de mulheres reprimidas que só sabiam dar à luz, rezar e lavar a louça, de crianças que brincavam com as vacas e os porcos e por adolescentes cheios de tesão retido.

Ninguém desejou boa hora para Arcádia Gonzáles. Santa Goretti fizera chover e, em consequência do fato, todos estavam assentados em seus respectivos quintais observando o milagre espetaculoso. Além de fazer crescer mais rapidamente as árvores, esse acontecimento faz com que as abelhas amarelas acendam seus traseiros com mais força, sendo as estradas melhor iluminadas e não deixando que os viajantes se percam pelos tortuosos caminhos que levam até a Capela de San Martin de Allegros. Um dos que estavam estarrecidos diante do dilúvio era o progenitor de Loló. Benito Prestes nem se deu conta dos berros doloridos de sua esposa que, notando a ausência do bem amado, aceitou a idéia de ter que ter a filha sem ter ao seu lado quem sempre quis. Andou cambaleante, até sua cama de jacarandá, comprada em sua lua-de-mel, e trazida até sua casa pelos escravos centenários, que um dia foram pertences de seus bisavós maternos. O tempo como seu inimigo, não se preocupou com alguns detalhes que jamais passariam despercebidos por gestantes mais atenciosas. Abriu as pernas e pediu para que continuasse viva depois daqueles minutos intermináveis. Saiu. Se chorou, Jesus a calou. As duas, tanto uma quanto outra. Pois eram fortes. Todas as mulheres daquela família o eram. Fortes por fora e, por vezes, nem tanto por dentro. Mas isso não vem, não vinha e nunca virá ao caso. O que importava mesmo é que as moças daquela prole conseguiram passar por tudo nessa vida cuspida por algum ingrato.

Benito Prestes sempre frequentou os bailes promovidos no Quartel General de Figueiroa. Arcádia Gonzáles nunca foi muito adepta aos festejos. Ele aprendeu com os amigos o real significado da diversão. Ela foi ensinada pelas freiras ortodoxas da Igreja Católica que ler a cartilha sempre antes de todas as refeições e antes de dormir era fundamental. O dia em que se conheceram era de comemoração. E as comemorações na cidade eram concebidas na Igreja de Nossa Senhora dos Lamentos ou no Quartel General de Figueiroa. As espirituais na primeira e as carnais no segundo. Como bailes não são muito bem vistos por padres nem freiras, eram realizados sempre aos sábados no Quartel. No baile em que se conheceram, seria eleita a pessoa que viveria por mais anos dentre todos os presentes. Dádiva única dada para a mulher, preferencialmente, mais bela dentre todas. A premiação se realizava em um espaço em média de cento e vinte anos, pois é a expectativa de vida das mulheres anteriormente condecoradas. E uma senhora só pode colocar a Coroa da Centenária quando a antiga dona sucumbir.

Para se chegar ao Quartel era difícil. Isso por causa da densa Floresta de Eucaliptos, que mata sem piedade os desejos de plantio de qualquer outra forma vegetal e também pelas montanhas desproporcionais ao tamanho dos habitantes daquela delimitação territorial: altas e cobertas de gelo durante metade do ano. Nasceram muito depois da construção de uma das melhores rodovias do país. Chamar-se-ia Rodovia Calcaso, mas o terremoto que assolou o estado durante três dias consecutivos, fez com que surgisse, bem no meio desta, uma das maiores montanhas vistas pelos homens de então. Esses dois fatores citados anteriormente se transformavam em empecilho para a passagem de indivíduos para o local das festividades carnais.

Benito Prestes, com seu espírito aventureiro e a falta de moedas de ouro no bolso, juntamente com seu grande companheiro Pepe Legrel, percorreram de pés dez quilômetros, até chegarem, depois de algum esforço, ao Quartel. Já Arcádia Gonzáles decidiu-se a não sair de casa. Preferia muito mais praticar a rotina rotineira do que arriscar-se por entre matas e pedras grandes para chegar a uma bobagem de entrega da Coroa de Não Sei O Quê. Depois de tudo, nunca se achou bela. Então, não via coerência em ficar deslumbrando a beleza alheia, em detrimento da própria. Mas por insistência das dez irmãs que possuía, cedeu.

Benito Prestes chega com Pepe Legrel a “Festa da Premiação da Centenária”. Chegaram bem antes de todos. Para o ócio não tomar conta de seus corpos e mentes, resolveram caminhar por entre os soldados que lá estavam de serviço, para espairecer um pouco. Como não tinham relógio nem sabiam muito bem os números, noção nenhuma havia da parte deles do horário de início da grande premiação; sabiam apenas do dia em que seria realizada. Ainda do outro lado de Vila Boa, Arcádia Gonzáles e outras dez Gonzáles iam de carroça, puxada por quatro jegues cor de mel, acabados e com as patas calejadas de tanto caminhar. Quando conseguiram chegar, viram todas aquelas pessoas que sempre viam. Todas aquelas pessoas que sempre souberam o nome. Todas aquelas pessoas que sempre... sempre era a mesma coisa.

Arcádia Gonzáles, repentinamente, sem nenhum aviso prévio, sentiu-se estafada da vida. Cansou-se daquela vida que vivia tão igualitariamente há dezessete anos. Parou, deixou as irmãs continuarem o caminho para o centro da multidão de meia dúzia de quatro e respirou fundo. Dar um escândalo, não daria, porque isso não é coisa que se faz. Simplesmente olhou para trás e quis que sua vida fosse um pouquinho oposta do que era.

Refletiu. Flutuou até a barraca em que se vendia água benta e pediu um copo. Lá se vendia e se comprava de tudo. (A vendedora charlatã, dona da birosca, quando se viu desempregada, foi até o lavabo de sua residência e abriu a torneira. Pegou uma garrafa de plástico e colocou toda a água dentro. E com uma caneta escreveu, em letras ruins: “Água benta do Rio Jordão”. Nunca mais precisou pedir dinheiro emprestado para terceiros.) Depois de comprar a suposta água benta, Arcádia Gonzáles foi até o banheiro público, que fica afastado do meio do povo. Segurando o copo com toda a força que possuía em suas grossas mãos, tomou. Beber a água seria mais eficaz do que jogá-la na testa. Assim, a súplica subiria mais veloz ao céu e chegaria com mais nitidez aos ouvidos do Senhor. Engoliu tudo. Pediu outra vida. Pediu mais amor. Pediu mais beleza. Pediu mais furor. Pediu mais, mais, mais, cada vez mais.

Benito Prestes não imaginava que se lembraria daquele dia como o último em que veria os oficiais do exército com bons olhos. Ele e seu amigo cansaram-se de tanto nadar por aquele mar de uniformizados e resolveram voltar para onde já deveriam estar concentradas as pessoas. Logo que se aproximaram, os indivíduos começaram a berrar como se fossem leões famintos, sedentos por carne fresca. Pepe Legrel disse para Benito Prestes que os portões haviam sido abertos e que os comes e bebes começariam logo. Pois, como sempre se foi de costume, comia-se e bebia-se muito, apesar da miséria de grande parte das famílias. E sempre há motivos para se comemorar e comer, não necessariamente nessa ordem. A lógica seria esta: comer e beber, depois iriam todos aos seus respectivos assentos, para desfrutarem da semi-sesta. E, por último, depois de meia hora de descanso, assistiriam ao desfile das pré-candidatas, escolhidas a dedo pelo locutor da Estação Central. No fim das contas, resumindo-se os acontecimentos, Herundina Gonzáles, irmã mais velha de Arcádia Gonzáles, ganhou o grande troféu. Seria destinada a viver por, no mínimo, mais cem anos, em razão de que já tinha vinte e seis de idade. Depois que todos se retiraram do Salão, seguiram para fora. Várias eram as atrações no pátio. Barracas de beijo por duas moedinhas, maçãs adocicadas, gordas mulheres barbadas, elefantes amigos de ratos. Para se divertir tinha que se gastar, mas Pepe Legrel era primo de sexto grau de uma alta patente do Exército Vermelho. Então, nem Pepe Legrel nem Benito Prestes teriam que se incomodar.

Era a última barraca da última fileira de barracas. Vendiam-se fogos de artifício que se mirados corretamente para a pessoa amada, essa se apaixonaria perdidamente. Benito Prestes correu por muitas mulheres durante seus parcos dezoito anos. Nenhuma o interessou por mais que duas horas. Pepe Legrel nem isso. Virgem sempre foi e amar não estava ao seu alcance, segundo ele mesmo sempre frisou. Como era tudo regalia, Benito Prestes quis aproveitar tudo até a última gota.

Os fogos foram comprados e lançados o mais rapidamente possível. Afastaram todas as pessoas que se encontravam por perto e esperaram sorte para que o objeto alcançasse certamente a mulher que sempre olhou, mas nunca se aproximou. Arcádia González foi a imagem mais lúdica e sexualmente atraente que já chegou a seus olhos. Mas nunca foi mais que isso, nunca chegou mais perto, nunca se declarou de fato. Não via como possível amar uma pessoa que apenas havia olhado. Apesar de tudo, isso foi há tempos atrás. Agora, vendo a oportunidade que sempre sonhara, não a deixou ultrapassar seus dedos. Em menos de duas horas, Arcádia Gonzáles tornou-se Arcádia Gonzáles Prestes. Casaram-se longe dali. Isso porque o pai de Arcádia Gonzáles não poderia saber, pelo menos por enquanto, do matrimônio. Ele achava a filha muito nova para casar, queria que ela se enrolasse com uma pessoa que ele mesmo escolhesse e era homem não entrável na casa da família de Benito Prestes. Se unir a alguém foi uma forma de resposta para a água benta tomada por Arcádia Gonzáles. Porque se unindo àquele homem que um dia olhou e se apaixonou, poderia ser livre das irmãs e do pai que tanto a oprimiam. Para Benito Prestes, casar significaria usufruir do atributo que Deus dá para toda homem quando nasce: sustentar uma mulher e, posteriormente, um filho.

Na festa ficaram a irmã de Arcádia Gonzáles, escolhida para viver praticamente para sempre, e Pepe Legrel. Ninguém consegue explicar ao certo porque ela se chegou a ele nem porque ele se chegou a ela. O fato é que os dois resolveram ficar juntos. Ela sabia que ele tinha tuberculose, doença adquirida quando foi retirar leite de uma vaca possuidora da mesma doença, e que não viveria por mais do que dez, quinze anos. Ou seja, ficaria viúva por muito tempo. Foram morar ao lado do rio Serpa. Quando Arcádia Gonzáles e Benito Prestes regressaram da lua-de-mel, foram dormir em um quartinho perto da cozinha de Pepe Legrel e Herundina Gonzáles. O pai das duas morreu pouco tempo depois da “Festa da Premiação da Centenária”. Então, nem brigou muito com o casal, por causa da união. De passageira, a estada do casal se fez permanente, na casa alheia. E isso não foi problema para os donos da residência. Casa cheia, festa sempre. A casa passou a ser de todos os quatro.

Herundina Gonzáles Legrel se viu incapacitada de pegar barriga. Tinha um problema com os ovários, causado pela grande e contínua exposição ao frio da região em que moravam. Para sua revolta e inveja, sua irmã era mais fértil que cadela no cio. A primeira gravidez foi de Loló Prestes Gonzáles.

O tempo foi passando e Loló ficou mais e mais bela e sedutora. Os homens, os meninos e até as meninas e mulheres não conseguiam não olhá-la. Era um torpor. Quando de seu aniversário de quinze anos, o Exército Vermelho resolveu fincar pés próximo ao rio Serpa, local estratégico para a luta armada entre o Exército Vermelho e o Exército Amarelo, respectivamente de esquerda e de direta politicamente. Tal conflito foi causado por causa de uma questão familiar muito pouco esclarecida pelos periódicos do país e alcançou proporções nunca antes previstas. Uma guerra civil se fez presente e teimava em estar a complicar a vida e rotina das pessoas.

A idade mínima para se entrar no serviço militar era de dezesseis anos e a máxima de vinte e quatro. Então, os varões que lá trabalhavam eram os dos mais bem apessoados para as vistas femininas. Lá havia um homem conhecido com Asdrúbal Trombone. Ele, no momento em que se retirara do local de trabalho e fora à feira de peixes comprar mantimentos para a alimentação da tropa, vira Loló sair de sua casa. No momento, viu borboletas chegarem perto dele e o levantarem até o céu. Sensação semelhante, tinha certeza, nunca mais haveria de sentir igual. Era por aquela jovem, então, que lutaria e ganharia a guerra. Não tardou para começarem a trocar correspondências. Nelas, ele não se envergonhava em expor o motivo pelo qual guerreava: ela. Iria até as últimas consequências, apenas por ela. Loló criou também um sentimento por ele, e se martirizava cotidianamente por ser a causa de tanto cansaço em um pobre rapaz.

A Guerra Civil Latinera durou quinze anos. Acabou logo um dia após a morte de Pepe Legrel, tubérculo convicto. Asdrúbal Trombone ainda não tinha dado um beijo em Loló Prestes Gonzáles. Apenas as letras unia-os.

Demóstenes Josino, comandante-em-chefe do Exército Vermelho, deu a triste notícia para Loló, e apenas para ela, pois ninguém da estirpe, em quinze anos, soube da troca de confidências amorosas entres os dois seres humanos. Asdrúbal Trombone morrera em batalha, não um dia antes de a guerra terminar, como Pepe Legrel, mas sim no antepenúltimo dia. Ela aprendera com a tia e a mãe a ser uma mulher forte, pois assim eram todas as mulheres Gonzalesas. E, por isso mesmo, viu-se obrigada ao suicídio. Por ser tão determinada e teimosa, definiu em sua mente que se não conseguira trocar um beijo com Asdrúbal Trombone em vida, que fosse, então, na morte.

Pegou o cadarço do sapato mais novo, o amarrou no lustre e pronto. Antes deixou uma carta para os pais. Foi aí que se teve início o ódio de Benito Prestes pelo Exército. Com a morte da filha e a vitória do Exército Vermelho, tomou-se de ódio por todo o corpo. Decidiu-se em uma atitude. Sozinho, se encaminhou para a sede do Exército e declarou nova guerra. Ao contrário da outra, que durou por volta de quinze anos, esta, quinze minutos. Sucumbiu em dois tempos. Um sargento desavisado se incomodou com a berraria ministrada pelo homem, que atrapalhava seu almoço. Um tiro de fuzil e pronto. O serviço estava feito.

Herundina Gonzáles e Arcádia Gonzáles estavam sós. Arcádia Gonzáles não durou muito. Tomada por uma depressão profunda, ascendeu aos céus por inanição. Para não se ver completamente sem companhia por pelo menos mais setenta e poucos anos, Herundina Gonzáles deixou o corpo da irmã ali, bem ao seu lado, na mesa de jantar, para que, com isso, pudesse ter alguém com quem conversar. As suas outras irmãs a abandonaram depois de ter ganhado a vida longa, tempos atrás, por causa do ódio e inveja. Elas não conseguiram digerir a altivez que assolou Herundina Gonzáles. Apenas Arcádia Gonzáles conseguiu conviver com a irmã, por causa da boa vida gerada pela água benta, insuficiente para suportar a perda do marido e da filha.

A mulher chegou aos cento e vinte anos de idade. Durou exatamente o que previa. Morreu literalmente sozinha. Todos os outros da cidade não existiam mais. Viu de perto a solidão dos dias. Achou um alento morrer. Arrependera-se das coisas do passado e via um futuro promissor no reino de Deus Todo Poderoso. Sua vida não fizera muito sentido e não possui muita linearidade. Não lera livros, nunca fora ao cinema, rádio escutou pouco. Mas morreu como todos os outros. E foi para o mesmo lugar. Pelo menos fora o que esperava. Ao primeiro minuto de morta, não viu nada semelhante a um céu azul, com nuvens, nem seus familiares mortos. Estava em um lugar preto. Preto e sem ninguém por perto.

Escutou, ao longe, apenas uma voz: “A morte é assim. Conforme-se. Vivemos sozinhos e continuamos, ao morrer, sozinhos.”

A Guerra Civil Latinera é também conhecida pelos conterrâneos por Guerra Civil Espanhola. Desde o ano de 1936, então, encontra-se desaparecido Everardo Sobral Acuña. Deixou três filhos, esposa, e um bebê, que ainda não havia nascido. Atualmente, possui dez netos, dezesseis bisnetos e um tataraneto. Espera-se que o corpo seja encontrado e que as autoridades espanholas entrem em contato com a família. Todos agradecemos pela atenção e colaboração.

III) O analista

O personagem estava deitado no banco de trás do carro de sua mãe, olhando para o teto e lembrando-se da época em que foi pequeno o suficiente para estar grudado à janela da mala do Gol de sua avó materna, enquanto voltava da escola, para casa. Era trinta e um de agosto de dois mil e dois e eles estavam indo para o primeiro dia de análise do personagem. Como ele tinha boa memória, sabia que esse era o dia da morte de seu tio, dois anos antes. Seus familiares não sabiam se ele havia morrido exatamente naquela data, pois ficara quatro dias sumido, até que sua madrasta e seu cunhado o encontraram no Instituto Médico Legal. Então, para se ter uma oficialidade de luto, os próximos a ele escolheram a data de seu desaparecimento. Morreu atropelado em frente ao Túnel Novo, na madrugada. Por sempre se vestir de preto, o motorista não notou sua presença. O personagem lembrava-se de tais acontecimentos – juntamente com o fato de no mesmo trinta e um se comemorar o dia da nutricionista, profissão de sua mãe – enquanto o automóvel se locomovia em direção à Rua Senador Soares, número onze, em Vila Isabel. Era uma quarta-feira e o personagem sempre odiou as quartas-feiras, porque elas representavam aulas de matemática e física no colégio.

Não era a primeira vez que seus pais o levavam para psicólogas e afins. A primeira que teve foi em Niterói, bem próxima do estádio de futebol da cidade. Sempre ia até lá comendo Fofy pelo caminho e falando a tabuada para sua progenitora. A mulher que o atendia era alta, magra, loura, aparentando uns quarenta e cinco anos de idade. Como era muito novo, não via muita confidência e cumplicidade em cima daquela relação (na verdade, o personagem nunca teve uma completa relação com suas duas psicólogas e seu psicanalista, ao passo que nunca contava toda a verdade de sua vida para eles, sendo essa uma forma de cuspir na cara dos retrógrados que o oprimiam e o torturavam, com sessões semanais e anuais de terapia). Enxergava apenas uma pessoa a mais para brincar e se divertir. Apesar de saber dos detalhes de anos atrás, não sabia a razão para terem saído dela. Possuía, então, uns oito de idade e, no momento em que divagava sobre seu próprio histórico familiar, doze.

A casa em que teria sua primeira consulta com este novo profissional ficava na rua de uma escola pública, a mesma em que estudou a pessoa que fazia o transporte do personagem para onde estudava, todos os dias. Um bar de encontro de motoqueiros enfeitava sua esquina oposta. Finalmente, chegaram. Era uma bela residência. Muro baixo, fachada de tijolos aparecendo e com janelas envoltas de uma tinta branca. Um pequeno, mas belo e cheio jardim. A campainha ficava escondida por entre o murinho e as plantas, tendo que ser feito um pequeno malabarismo para tocá-la. O personagem não via a hora de ir embora para casa, pois sabia que essa era mais uma das exigências de seus pais para que ele se enfurnasse dentro de um quarto fechado e escuro, em que ficaria conversando sobre sua vida e para ver se alguém descobria se ele tinha algum problema. Porque o personagem só poderia ter algum problema. Sempre brigando dentro do lar e com um jeito muito suspeito de ser. Nisso, um homem gordo, de estatura média, moreno, de nariz muito avantajado e com veias azuis saindo de dentro de suas narinas, com testa cumprida e cabelos ralos, abriu a porta branca e de ferro. Ele saiu. Era Suruape Jorge Garcia, o analista.

O homem tinha cinquenta e seis de idade, era casado há alguns anos, com um casal de filhos já de certa maturidade, e morava com a sogra de setenta e dois. Esses fatos, claro, o personagem só viria a saber no decorrer dos quase dois anos que passou com ele. Sendo assim, no momento da abertura da porta e da visão do grotesco, o personagem sabia apenas o nome do indivíduo. Quem o indicou, para sua mãe, foi uma amiga, que teve o filho tratado também por ele. Ao entrar, fizeram as reverências necessárias e o personagem subiu, apenas com o analista, para dentro da sala, onde as sessões se faziam presentes. Era uma escada de madeira, não muito larga e nem muito íngrime, situada do lado esquerdo da sala de recepção e com uma curva, bem no seu meio. Lá, em cima do maior degrau, havia uma foto, em preto e branco, de Sigmund Freud, que podia ser vista logo que se colocasse a cabeça para fora do pseudo-confessionário.

O analista entrou por último, como manda a educação, e trancou a porta. Ofereceu o sofá, para o personagem sentar, e o mesmo obedeceu ao pedido. Pensou em deitar-se, mas refutou a ideia, com medo de tender ao ridículo perante um desconhecido. As perguntas começaram. Depois de responder a praticamente uma ficha médica, o conteúdo mental, de fato, começou a ser pesquisado. O personagem lembrava-se sob os mínimos detalhes do que havia dito na primeira sessão. O cômodo estava com pouca luz, sendo a única proveniente de um abajur situado bem atrás e à esquerda da poltrona nababesca do homem, em cima da mesa em que apoiava uma maleta e certos outros pertences inúteis. Começou a verborragia.

O personagem falou de anseios, pretensões, desejos! Não ousou tocar em decepções, desilusões, catástrofes. Provavelmente, deve ter omitido ou mentido acerca de alguma informação, como já manda o protocolo dos Pacientes Analisados Brasileiros.

Com o passar das semanas – suas sessões eram todas as quartas-feiras, sendo depois alteradas para os sábados – a relação passou a ficar mais íntima. O analisado já tinha conhecimento de muitos fatos da vida do analista: soube que morava com a sogra e a esposa, possuía dois filhos. Quando o personagem chegava à casa, perguntava-se se o analista merecia saber do modo que estava sabendo sobre a vida do analisado. Ele contava apenas o que lhe convinha e até mesmo o que acreditava ser mais interessante para Jung e Freud analisarem, ainda que não fosse de todo verídico.

Suruape, como apenas o personagem o chamava, sendo o restante da população nomeando-o de Jorge, comentou, em um dia qualquer com ele, sobre a possibilidade de um novo método de trabalho, muito eficiente em outros pacientes. O tratamento consistia na passagem de óleos aromatizantes pelo corpo ou, como preferia dizer, passagem de óleos pelos “chakras”, que são, segundo a filosofia ioga, canais dentro do corpo humano por onde circula a energia vital que nutre órgãos e sistemas. Por esses canais se enveredarem por vias bem internas, haveria a necessidade de o paciente permanecer apenas de cueca, ou calcinha e sutiã, no caso de uma mulher, obviamente. Logo após o convite ser aceito – afinal de contas o paciente acreditava piamente, até o momento, na credibi-lidade da profissão e do profissional –, Suruape alertou-o: “Não se preocupe, pois é normal haver certa excitação por parte de quem está aí deitado. Relaxe, isso não irá significar nada.”

De fato, por algumas ocasiões das massagens, o personagem excitou-se, mas era praticamente impossível ficar impassível diante da situação, ao passo que um dos chakras localiza-se praticamente nos fundilhos.

As sessões de massagem eram irregulares. Vez ou outra aconteciam. No restante do tempo, ficavam a conversar.

Em uma dessas conversas, o personagem, pré-adolescente, perguntou para Suruape algo relacionado a sexo. Evidente surgirem perguntas assim, porque se trata da dupla psicanalista-psicanalisado, sendo Freud e toda sua corja inexistentes se não houvesse a questão sexual na mente humana. Tal foi a brecha para a pergunta por parte do mais velho: “Quer saber como é a sensação? Não se preocupe (novamente a porra do ‘não se preocupe’), você gosta, e continuará, gostando de mulheres. Isso aqui é só para você sa-ber como é a sensação.”

Coagido e sem saber o que responder, o personagem recebeu o sexo em seu sexo e teve a sensação de como o mundo era mundo pela primeira vez, aos doze anos de idade, ao lado de um velhote repugnante e impotente de cinquenta e seis insuportáveis anos.

“Olhe, as pessoas não podem saber do que está acontecendo entre nós, porque elas não entenderiam. Nós não estamos fazendo absolutamente nada de errado, só estou te mostrando como é a sensação do orgasmo. Eu continuo gostando de mulher, assim como você. Não se preocupe.”

Sempre que o personagem saía pela porta da Rua Senador Soares, a pergunta corria para sua mente: “O que eu estou fazendo? Será que eu gosto mesmo de meninas? Mas fazer isso é legal, gosto da sensação.” Juntamente, vinha a sentimento de culpa: “Pecado. O que faço é pecado, está errado. Mas gosto da sensação. Tenho nojo dele, mas gosto do que me proporciona. Ter orgasmos é uma coisa legal.”

Não dava. Apesar de gostar do que sentia, depois de alguns minutos a culpa o assolava, o comia por dentro, o acabava. Nada era dito para ninguém fora do consultório sobre o que acontecia, assim como o havia aconselhado o Velhote. Nem com o próprio homem o rapaz conseguia conversar sobre. Envergonhava-o muito tudo aquilo. O pior era que seus colegas de colégio apenas estavam descobrindo o que era um pentelho, quando muito, ao passo que ele já estava naquela situação, naquele dilema, naquela cilada, naquele labirinto.

Concomitantemente, o personagem tomou para si um sentimento de ódio contido pelo analista e o analista tomou para si um sentimento de amor contido pelo personagem.

Chegou dia doze de outubro, e Suruape Jorge Garcia deu de presente, ao personagem, um livro: “Serraria Baixo-Astral”, quarto livro das “Desventuras em Série”, de Lemony Snicket. O burro nem para dar um presente certo. Como o personagem leria o quarto livro da série, se nem conhecia o primeiro? Pois bem. Ao abrir-se o livro, lia-se: “Rio, 11/10/2002 – Ao pequeno grande Homem. Personagem, foi muito bom conhecê-lo. Assinatura.” O sorriso falso de agradecimento foi colocado no rosto do personagem, mas o rancor estava bem guardado dentro dele. Pelo ódio, jurou que nunca leria uma linha sequer do livro. Culpa não era do pobre autor, coitado. Culpado era o facínora, o cavalo, o nefasto.

A situação chegou ao ponto insuportável quando o personagem parava o que estava dizendo e Suruape simplesmente ficava olhando para ele, contemplando-o. Diante disso, a criança não sabia o que fazer. Permanecia, assim, olhando para ele também. Queria acabar rapidamente com aquilo, pois sabia que quanto mais ficasse olhando para o outro, mais ele poderia ficar apaixonado. Isso seria demais. Isso poderia causar uma tragédia maior do que já havia causado.

Fim. Um fim tudo tinha que ter.

O personagem acordou bem cedo, em um domingo do começo ou fim de 2003, não lembrava, chamou o pai para conversar, e não lhe contou os fatos concretos, mas sim apenas que desejava sair de onde estava, pois tinha medo do que poderia acontecer. “Ele olha-me estranho, papai.” Pobre progenitor se soubesse o que o Velho havia feito. E também o personagem não queria expor-se de forma tão escancarada.

Solicitou para que sua mãe resolvesse tudo. Ela que rompeu com a corda que aos poucos enforcaria as entranhas do personagem, até ele se perceber desfalecido no meio da sala, com seus olhos abertos e sua dignidade defunta. O medo era tanto por parte do analista, que ele chegou a ligar para a casa do personagem para perguntá-lo se algo estava acontecendo. Não ousou tocar no assunto “sexo”, pois receava que o motivo da saída fosse o abuso causado. Preferiu desejar boa sorte na vida do personagem. Ao não tocar nessa questão, poderia estar fazendo com que o personagem também não tocasse mais nela, pondo um ponto final em tudo aquilo, toda aquela coisa que ele próprio criara. Mas será que tinha sido ele?

Em casa, num outro bairro, Suruape lembrou-se de quando era criança. Seus vizinhos tinham uma galinha. Quando o maltrapilho garoto começou a sentir suas vergonhas salientarem-se, resolveu aliviar-se com o dito animal. Por essas aventuras, o dono da galinha, consequentemente seu vizinho, viu a cena que sempre se repetia toda manhã, quando o analista acreditava que os donos da casa haviam ido trabalhar. Diante daquilo, João – o nome do vizinho –, chamou Suruape para uma pequena conversinha. Depois daquele dia, o Velhote nunca mais aliviaria suas tensões na galinha. Seu João, como ele o chamava, poderia exercer tal função muito bem.

Ele, assim como o personagem, sentiu ódio do malfeitor.



O personagem alguma coisa fez. Como só se deu conta do crime cometido pelo analista alguns anos depois, quando o ato já era considerado nulo pela justiça, encontrou apenas uma solução.

No dia seis de janeiro, dia em que a Igreja celebra a festa da Epifania, o personagem subiu os degraus da escada de sua casa, entrou no quarto de seus pais, encami-nhou-se até o criado-mudo, localizado na parte esquerda da cama, onde seu pai dormia. Abriu a terceira gaveta do mesmo e pegou um revólver. Quem o havia posto lá fora seu tio, irmão de sua mãe, antes de sair de casa pela última vez, para encontrar a morte na entrada do túnel. Encheu a arma de munição e foi em direção à rua onde todos os crimes eram cometidos.

Com um fone de ouvido, contemplava “I wish I knew how it feel to be free”, e pensava no que faria com Suruape. O revólver finalmente teria uma utilidade. Assim como pensou Raskólhnikov, o mundo não poderia e não haveria de sentir falta nem pena de Lisavieta, a Velhota. Ela morreu, ele também morrerá. Velhote e Velhota irão encontrar-se no céu. Se ele existir, claro. Nesse instante, o personagem rezou para que o céu não existisse, pois assim o Velhote ficaria vagando pelo mundo, como alma penada, e elas simplesmente não conseguem descansar em paz. Uma pós-vida infernal seria o ideal para um homem tão banal.







O analista estava despedindo-se de seu último paciente. O personagem entrou sem nem pedir licença. Subiu e lá no consultório ficou. O analista correu em disparada até chegar onde o rapaz estava, encontrando-o deitado no divã, como nunca antes havia feito. O personagem disse: “Olá.” O analista viu o revólver na mão do personagem. O personagem perguntou: “O que foi?” O analista soltou um grunhido incompreensível. O personagem levantou-se. O analista afastou-se. O personagem divagou: “Conheces ‘Lolita’? Aposto que conheces... Vladimir Nabokov deveria ter escrito um final igual a esse que está prestes a acontecer. Bem diante de seus olhos. Velho de merda.”



!



O corpo foi retirado. O chão foi limpo. Tudo foi resolvido. Uma carta de despedida foi escrita pelo personagem, para que assim se aparentasse suicídio e casualidade da vida.

Antes de chegar em casa, o personagem deu uma volta e foi em direção à delegacia.

Melhor se entregar à polícia, com sua credibilidade, do que ver sua casa invadi-da, seu corpo tomado, e sua vida destruída. Deste modo, teve o destino que escolheu. Entregou-se, pois assim o desejou. Réu primário, endereço fixo. Sairia de lá logo.

Humbert, o pedófilo literário, e Suruape, o pedófilo real. Humbert matou Quilty, marido de Lolita. Suruape não matou ninguém. Ele é que estava morto agora. Acabado. Aniquilado.

Mas o fim do personagem, o abusado real, foi igual ao de Humbert, o pedófilo literário. Na prisão acabou, com seus anseios e sonhos aleijados. Tudo por causa do Velho de merda.*




_______________
*Que ódio sente o personagem pelo Velhote de merda.

IV) Sentimento póstumo

“Rio de Janeiro, 06 do 06 de 06

Eu escrevo tais palavras para que sejam lidas depois que eu morra. De preferência, durante o meu funeral. Se vistas fossem antes disso, não teria mais coragem de caminhar pelas calçadas tortuosas da cidade. A vergonha seria tanta, que sobreviver se tornaria, apenas, mero processo mecânico respiratório. Quedar-me-ia em casa, para nunca mais sair. Por isso, quem estiver passando os olhos por tais linhas tortuosas, antes de minha ascensão aos céus, que pare de imediato.

Conheci o amor de minha vida em algum dia, de algum mês, de algum ano. De susto, tudo se anuviou diante de mim, e vi que a pura e simples existência, que antes era tão clara, no momento se fazia escura. Perdi os sentidos e não agi mais por conta própria. Fui sendo levado pelos fatos e circunstâncias e impulsionado a venerar o ser idolatrado cada vez mais e mais.

Pode parecer estranho para o leitor inexperiente nas questões dos corações sofridos e calejados, mas é preciso que fique bem claro na mente de cada um de vocês: quem já amou sabe a dor e a delícia de gozar, no céu, e sofrer, no inferno. Apesar de tudo, creio que o texto só se fará claro, por completo, para a pessoa que eu amei. Aliás, para a pessoa que eu, infelizmente e felizmente, ainda amo.

O breu do seu quarto acalentava a alma dos dois corpos que ali sempre padeciam. A música exortava sensações excitantes e declarativas. A junção dos dois permitia a união. Ao menos de uma das partes do casal. Ou seja, ao menos de mim. Porque, pelo ser amado, nada posso responder. Só acerca da minha pessoa tenho a capacidade de tecer julgamentos e declarações. Dele, não sei nada. Só sei que viveu para estar ao meu lado durante a minha passagem por este lugar, nem que o “ao lado” seja somente nos meus sonhos noturnos e perfeitos.

Ficamos juntos, de início, por três semanas e quatro dias. Duas semanas e três dias após o término do caso, tivemos uma recaída. Acabou-se por aí. Eu era muito carente. Eu era muito subjugado. Eu pedia muitas desculpas. Eu, simplesmente, deixei que as coisas dessem errado. Eu era um completo e repleto asno. Eu me envolvi. O ser amado não. Eu me fodi. Creio que ele não. Eu sofri. Ele sofreu? Provavelmente. Mas não de amor. E sim de sufocamento. Eu o matei aos poucos.

Todos me diziam: o tempo resolve tudo. Depois de alguns meses, até resolveu. Tentei me refugiar em outros braços e lugares. Acostumei-me com a ausência. Lembrava-me dele muito esparsamente. Pensei que havia conseguido exorcizar o passado. Quando um relacionamento poderia dar certo, cultivava. Ele sempre acabava. Ou porque a pessoa ao me lado não me queria mais e me descartava. Ou eu que não me interessava mais na pessoa e a queria esquecer por conveniência da comodidade. Ou a pessoa morria. Sofria mais no segundo caso. Qual o motivo para não embarcar em um romance que a outra pessoa está interessada em iniciar? A parte mais difícil estava resolvida e eu simplesmente não estava satisfeito. Porque, no amor, quando você o ama, é fazê-lo te amar também. Enfim... Um dia houve uma morte. Ele simplesmente morreu. Se foi-se pro outro lado da vida. Mas até que as coisas, no decorrer do ano, estavam caminhando toleravelmente bem. Eu nem pensava mais tanto no amado inicial.

Mas meu aniversário chegou e ele ligou. Encontramo-nos, mas ele recusou. Desisti. Não o vi mais durante o ano.

Sendo que existiu o ano seguinte e ele me viu. Mais perto do que nunca. O que fazer?

Eu, a personagem, percebi que apenas com ele os sinos tocavam.

Apenas com ele os anjos cantavam. Somente com ele.

Para os ultra-românticos, a poesia preenche o vazio.

Para os bons de ouvido, uma música preenche o vazio.

Para os leitores, um livro preenche o vazio.

Para mim, nada está preenchendo o vazio.



Lutar ou desistir? Agora que vocês leem isto aqui, já sabem do meu destino. Já sabem se valeu mesmo à pena lutar ou não. Mas eu, por enquanto, ainda não sei. Espero que não morra de morte doída. Espero que, por ele, eu não morra. Quando eu já estiver morto, vocês me digam. Ao pé do ouvido, como ele fazia. Ele me abraçava e conversava comigo. Ele fazia. Ia. Ia. Ia. Ia. Passado. Sempre passado. Nunca presente. Inferno.

Ao descerem com o caixão pelas ruelas do Cemitério do Caju, declamem, para mim, por mim, o ‘Soneto da separação’, por favor. Se o meu amor estiver perto de vocês na hora, não o incomodem. Ele deverá estar sofrendo. Digam apenas uma coisa: ‘O morto pede desculpas por morrer sem, ainda, ter você’.

Grato, eu mesmo.”

V) Os fracassados

I

Esmeraldina estava sozinha no lugar. Não desejou mover-se, receosa de perder as recordações que acabara de ter. Era dessas coisas. Como mulher burra, não se dava ao luxo de permitir que o pensamento lhe fugisse de dentro.

Recordou-se dos tempos de menina. Ainda não trabalhava na cozinha fedida à gordura, nem balofa sua barriga tinha o disparate de ser. Mas no momento isso não tinha valor algum. O que adianta pensar no passado melancólico, se absolutamente nada de eficiente pode ser feito para alterá-lo?

Acabou com tudo aquilo em dois tempos. Aprendeu com a mãe a ser forte e não se deixar cair em sentimentalismos baratos. Sabia que morreria dentro de instantes e ninguém deveria, nem poderia, alterar nada. Se Deus não quis que vivesse, Esmeraldina era ninguém para querer fugir do próprio destino, com os próprios pés.

Olhou para o que tinha diante dos olhos grandes e azulados, marejados pela lágrima. O caldeirão estava ali, como sempre. Foi nele que alimentou milhares de moribundos esfomeados e a partir dele que recebeu seu pão para repartir com o filho. Esse, pobre coitado, era ciente de sua pequenez diante do mundo, de sua insignificância perante as grandes questões humanitárias, que tanto lhe afligiam.

Felizmente, pela primeira vez, em sessenta e nove anos de vida, constatou e aceitou o fato de que deveria largar o cacoete vil. Viver, para ela, se fazia mais difícil do que se ver uma cadela nortista retirante de um romance regionalista.

Viu seu próprio retrato no caldo situado no interior do panelão. Como era pequena, esforçou-se desmedidamente para subir. Finalmente, conseguiu. Estava na borda. Na linha. Na sacada de um mundo, um mundo novo, um vasto mundo.

Jogou-se.

Acabou-se.

Chorou-se?

Não. Pela estúpida, nem falta sentiram.

II

Acharam-na, não porque alguém a quis achar, mas apenas pela simples coincidência de terem entrado na cozinha do colégio a procura de um esfregão, que seria utilizado na limpeza da doença de uma criança exposta no meio de uma sala de aula.

III

No enterro, se houvesse o coveiro e Esmeraldino, o filho da morta, era muito.

Os dois estavam, de certo modo, felizes. O filho por se livrar do fardo de cuidar e fingir amores por uma mulher que não enxergava como mãe. O coveiro por estar ganhando, graças a Deus, seu bom dinheirinho.

O Caju estava lotado. Esmeraldina escolheu o Dia de Mortos para sucumbir. Quem olhasse de fora, até poderia pensar que comemoravam o falecimento da cozinheira, mas não. Para ela, um filho e um funcionário, para auxiliar nos trâmites legais da ascensão aos céus, e só. O resto era para todos os outros.

IV

Tempos depois, Esmê, como era conhecido o rapaz pela vizinhança, achou um envelope em baixo da cama que era de sua progenitora.

Em outras épocas, não se daria ao trabalho de ver o que se tinha por dentro dele. Apesar de tudo, naquele dia, estava com uma certa felicidade estranha. Achou que fosse o amor. Não... Homens (poderiam chamá-lo assim?) limitados como ele são carrancudos o suficiente para conseguirem recusar o sentimento. Até a palavra soava-lhe estranha. Enfim...

Leu a carta. Surpreendeu-se. Conseguiu ler alguma coisa! As nove semanas que estudou, até que lhe serviram de algo. Mesmo tendo visto nomes nunca dantes vislumbrados, nem entendido muitas palavras complexas, até que o âmago da leitura foi depreendido com perfeição.

Esmeraldina matou-se, mas por causa de terceiros. Chantagearam-na.

“Forças ocultas querem tirar-me de ação!”, a primeira linha gritava.

A trabalhadora burra e velha escrevendo isso? Esmê parou para pensar que tinha algo fora do lugar. A resposta estava no fim da dissertação: alguém escreveu a carta para ela. O homem lembrou-se que a mulher passava muito por dentro da Central do Brasil. Lá, como já haviam lhe dito, ficavam sentados homens e senhoras querendo escrever cartas de outros para outros. Estava entendido. Afinal, cozinheiras cozinham, não escrevem, muito menos leem.

Minutos adiante, notou que o texto possuía continuação. A questão é que a continuação não estava presente. Algo ele não deveria saber. Mas a mãe não merecia tanto esforço e perigo. Deixou para depois.

V

Esmeraldino, ou Esmê, ou Zé-Ninguém, ou filho da cozinheira, morreu dois meses após ter deixado a carta de Esmeraldina esquecida na recepção da escola que, igualmente à mãe, labutava.

Suicidaram-no.

E agora? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu.

Se havia algum segredo para ser descoberto, ninguém descobriu. Se havia alguma declaração para ser feita, ninguém fez.

Para aqueles desgraçados pela vida, a estrada acabou. Afinal, não existe razão aparente para continuar vivendo.

No céu, Esmeraldina e Esmeraldino encontraram-se. Constataram que não importava o porquê, não importava o por quem, não importava nada sobre a morte deles. A morte dos fracassados pelo Diabo simplesmente não importa.

VI) Morando com vovó

Ela chegou aqui em casa como quem nada queria. Trabalho não deu, na rotina se acomodou, comida nunca solicitou, feliz – supostamente – aqui ficou. A vovó era mãe de mamãe e deveria ter em torno de sessenta anos de idade. Ganhando a vida como professorinha primária, aposentou-se relativamente jovem para os dias de hoje. Ela, assim como o marido, não eram muito chegados na labuta. Mas mesmo assim, apesar deste desvio mínimo de caráter, não era possível não gostar de vovó mãe de mamãe. Baixinha, gordinha, cabelos quase todos brancos. Quando aqui em casa ainda não morava, adorava comer a fruta do conde e beber café. Aparentemente, para os outros, era a única coisa que ingeria durante todo o dia, todos os dias, em consequência de ninguém a ver comendo nada além. Era apenas uma fruta do conde e uma xícara de café preto, em vinte e quatro horas.

Vovó não pediu para ficar onde a colocaram. Não é que ela tenha odiado onde foi posta, apenas não fez menção em querer estar em outro cômodo da casa. Naquela região da residência, pouca gente passava, então, conseguia passar tranquilamente e sem sobressaltos seus belos e longos dias, noites e madrugadas e tardes. Momento de inquietação ela apenas teve um. Ou teriam sido dois? Lá, pelos idos anos, eu trouxe alguns coleguinhas pré-adolescentes para em minha morada passarem um belo cair do sol. Nunca havia antes, em tempo algum, chamado ninguém que não fosse do meu sangue para aqui estar. Então, para impressionar, quis mostrar vovó. Afinal, é feio não apresentar os parentes para as visitas. Ainda mais os velhos, que podem se sentir rejeitados pela sociedade. Tudo estava escuro, por causa de um filme que era visto na televisão. Maldita mania de querer reproduzir, dentro da sala de estar, uma sala de projeção cinematográfica. Divagações momentâneas à parte, abri a porta do quartinho de vovó e a fui buscar. De supetão, a televisão um berro deu e eu quase vovó derrubei, de encontro ao chão. Mas não. Pouco o foi. Ela ainda estava lá, em meus braços. Por causa do incidente, resolvi deixar vovó onde estava, para que, com isso, eu preservasse sua integridade física e moral.

Anos se passavam e ela continuava morando conosco. Eu nem percebi quando ela aqui chegou, sabendo apenas que muitos anos ela cá pernoitou. De todos os moradores da mansãozinha fajuta do Grajaú, ela era a mais estática. Não a levando para outro cômodo da casa, ela não se locomovia. Assim o desejando, ela acatava nossas exigências. Alguns vizinhos até nos perguntavam: “Por que vocês não a levam para o ‘asilo’? É perto de vocês! Apenas três casinhas daqui.” Negativo. Família é família e é aqui que deve estar: ao lado da família.

Em contrapartida ao grande interesse de não tirá-la de perto de nós, havia momentos em que a esquecíamos. Com o passar dos anos, esse esquecimento ia apenas agravando-se: Quantas vezes fomos à praia e não a levamos? Quantas vezes fomos ao Jardim Botânico e não a levamos? Quantas vezes fui à Reserva Florestal do Grajaú e não a levei? Coitadinha. Definitivamente, a coitadinha estava se tornando um simples adereço, como qualquer criado-mudo ou abajur. Para agravar a situação, o aniversário dela passou a ser renegado. Isso, pois eu conheci uma mulher, que em pouco tempo tornou-se grande amiga, que aniversariava no mesmo dia de vovó. Como essa amiga era mais jovem, ainda comemorava seus dias festivos. Sendo assado, o amor por vovó foi renegado.

Ela, como toda a família, nasceu no Grajaú. De pai comerciante do Rio de Janeiro e mãe do lar do Rio Grande do Sul, casou-se com um homem de sete anos mais no ano de mil novecentos e sessenta e dois. Três filhos teve, sendo dois homens e uma mulher e com todos paridos dentro de uma mesma década. Tais informações foram adquiridas através de terceiros, posto que as pessoas conversavam com vovó até antes de ela vir aqui para casa. Depois, a sociedade passou a encará-la como cidadã muda, haja visto que em nada se intrometia, não se dispunha, nada vivia. Das conversas que tive com ela, não me lembra nenhuma. Era criança quando assim fazia e, agora, mais velho, é impossível recordar de certas coisas que aconteceram no passado e no passado ficaram.

Um dia, lá pelo começo de novembro, acho que o segundo dia dele, pensei em vovó. Creio que o fiz depois de uns seis meses sem dar nem “oi” para ela. Qual o motivo para não tirá-la aqui de casa? Eu acho que ela seria mais feliz em outro lugar. Um em que as pessoas a ouviriam falar, a ouviriam reclamar, a ouviriam cantar, a ouviriam sorrir, a ouviriam chorar. Mas ninguém aqui em casa deu-me ouvidos e tenho medo de falar muito de vovó com eles, pois não quero ofender e ferir os sentimentos de ninguém.

Indo para a padaria comprar pão, passei pela Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Entrei por razões que ainda desconheço. Nunca fui muito do chegado nessas coisas de religião. Sempre digo e repito: “Deus é apenas uma criação do homem para uma satisfação pessoal acerca da questão de nossa origem. Nosso cérebro já nasceu programado para acreditar n’Ele e Ele existe pelo fato de que é mais fácil explicar nossa existência pela mão divina de um, em sete dias, do que pela ciência de reações no espaço em milhões de anos.” Acreditava, entretanto, apenas na fé, no pensamento positivo e, por eles, até poderia chegar ao ponto de dar uma rezadinha básica.

O templo estava vazio e era iluminado apenas pela luz do dia pouca que adentrava pela porta escancarada. Indo pela lateral direita, sentei-me em um dos bancos de madeira. O pão me esperava, tinha que ir. Mas ali acabei permanecendo por alguns instantes. Deve ter sido a pintura belíssima – o agregado de Dom Casmurro iria agradecer-me por tais superlativos – da igreja e seus vitrais esplêndidos. Sim, eles que levaram-me até ali. Depois de cansar de olhar para tudo aquilo, voltei à rotina. Deus, definitivamente, nada me disse.

Já era noite alta. Todos dormiam. Meus pais no quarto deles, meu irmão no seu, meu tio no dele, minha cachorra em seu cantinho, vovó no primeiro andar, e eu no meu quarto. Dormir até que o fiz por meia hora, mas a maldita da insônia era mais forte que eu. Seguindo conselhos, peguei um livro para ler. O mais bonito que encontrei na estante foi um chamado “Ulisses”, de um homem cujo nome era James Joyce. Começando a ler, nada foi muito bem compreendido e assimilado. Só passei a ver a literatura com mais clareza e fidelidade no primeiro capítulo da segunda parte do livro, quando Leopold Bloom estava cagando no trono, lendo uma revista qualquer. Isto foi compreendido.

Escuto uns latidos fracos. Era ela, a cachorra, também velha, mas mais amada que vovó. Ela olhou para mim e saiu em disparada pela casa. Descendo os degraus da escada, que unia os dois andares do casebre, o bicho aparentava incorporado pela besta-fera. Comecei a correr atrás dela, para entender o que estava acontecendo. Tudo escuro e tinha medo de cair da escada, na primeira pisada em falso. Consegui não esmorecer e permaneci na corrida, para sossegar a cadela ou, no máximo, captar a mensagem que ela desejava passar-me. De nada adiantava. Eu não a alcançava e muito menos entendia o que queria. Até que, para chegar à porta que dava para a rua, a cachorra foi obrigada a passar por onde vovó relaxava. Paft!

Vovó havia, definitivamente, caído no chão. Pobrezinha. E agora? Uma vez caída, quem a tiraria de lá? Ela? Eu? A cachorra? Era tarde e não quis atrever-me a ir chamar meus pais ou meu tio para resolver a questão. Percebendo que vovó nada faria, dei uma olhada na cachorra. Apenas para afetar-me, ela nada fez. Ai, cachorra chata.

O animal já estava, realmente, velho. Quatorze anos não são para qualquer um. Seus olhos já não emitiam cor; eram apenas opacos. Por muitas vezes senti muito pela tadinha. Deve ser muito triste não conseguir mais enxergar direito as coisas da vida. Dizem que os cães enxergam em preto e branco. Não sei se isso é verdade. Nunca fui um cachorro para saber. Mas até que tal ensinamento me é pertinente. Vai ver é por isso que ela é tão racista. Ao ver um negro desconhecido andando pela calçada próxima da casa, tem início o ensurdecedor latido. Antigamente, mais vigoroso que os de hoje. Ela, bem provavelmente, deve ver um vulto, ou algo do tipo. Pode assustá-la. O racismo possui uma explicação e um entendimento.

Vovó ali permanecia. Estatelada, não disse nada. Boa senhora, pensei. Mesmo no estado em que se encontrava, ficava na reserva de seus princípios. Veio a pena. Veio a minha pena para com ela. Conheces aquela pena das pessoas velhas com caras de coitadas, que nos remete à paixão não dada e ao amor que devemos dar para conseguir um lugar ao céu? Eu deveria fazer alguma coisa por ela. Mas a vira-lata não cala a boca e não permite o término de qualquer raciocínio lógico. Deveria pensar rápido. E, o que fosse decidido, fosse o que fosse, apenas eu o faria. Todos estavam ausentes. Então, era apenas eu ali. Espero que ninguém brigue comigo. Eu devo estar fazendo alguma coisa digna. Vovó tem o direito de possuir um pingo de condolência.

Para sossegar a cadela que se esperneava, fui até a cozinha. Peguei sua coleira, pus em seu pescoço e a tranquei dentro da área, próxima à máquina de lavar. Apenas o fato de saber da possibilidade de passear já acalenta a alma de qualquer bicho. Foi então que voltei para vovó. Agora era eu e ela, apenas. Uma vez na vida eu daria atenção exclusiva a ela. Será que era uma atenção merecida? Bem, deveria ser. Todos os velhos, por piores que tenham sido no passado, recebem, seja lá de quem for, a redenção. Acho que ela tem que sair daqui. Assim, tudo ficará melhor. Ela vai encontrar sossego e nós também o encontraremos. Ou será que ele será presente até o próximo da família se tornar um velho, como ela e tantos outros de tantas outras famílias? Faz parte.

Abri a porta que separava a cozinha da área. Peguei a cachorra e a levei para o outro lado da casa. Com vovó por um braço, fomos juntos caminhando pelas ruas do Grajaú. Este, por sua vez, é um bairro um tanto pitoresco. Fundado, pelo pouco que sei, em mil novecentos e quatorze, a partir de uma igreja situada na rua que leva o nome do lugarejo. Mais conhecido pela maioria da população do município do Rio de Janeiro como o bairro dos velhos e retrógrados, bem provavelmente pela grande presença de pessoas idosas e remanescentes de guerras e períodos militares. Pelo que me disseram, fica na Zona Norte. Mas os grajauenses não gostam de serem chamados de suburbanos. Igualmente pelo pouco de geografia que sei, subúrbio são os bairros seguidos pela linha do trem. Se não me esconderam isso durante anos, o Grajaú não é seguido por nenhum trem. Outra questão é que nós não somos da Zona Norte. Aliás, ninguém que mora na Tijuca também é da Zona Norte. Todos somos da Grande Tijuca, assim como o povo do Andaraí e Vila Isabel. Devemos ter o rei na barriga e não é despropositadamente que as más línguas dizem que quem mora e está enchendo a Barra da Tijuca são os tijucanos emergentes. E, por fim, ninguém sabe onde começa ou termina Grajaú, Tijuca, Vila Isabel ou Andaraí. Tudo é uma coisa só. Eu só sei que eu moro no Grajaú. Ele só sabe que mora na Tijuca. O outro só sabe que mora em Vila Isabel. E fulaninho também só tem conhecimento de morar no Andaraí.

Caminhar pelas ruas do Grajaú é uma atividade das mais excitantes. Não há uma pessoa que respire pelas vielas de calçamento antigo e casarões centenários. Domingo, então... É pedir para ver um bolinho de poeira rolar pelo chão. O badalar dos sinos da igreja fazem qualquer pessoa se assustar, se esta no meio da rua estiver. Apesar de tudo, tinha que fazer isso. Mais por mim e minha família, que por vovó. O cansaço estava chegando e a pontada nas costas, cada vez mais, piorando. Espero que essas dores não se agravem quando eu mais velho ficar. Peguei a rua Comendador Martinelli, que ia até uma ladeira quase interminável. Se eu acreditasse em cadeirudos ou lobisomens ou vampiros, eles, com certeza, escolheriam aquele momento para atacar-me. Uma vez, cedinho, indo fazer um piquenique ali perto, um cachorro de rua de um condomínio de casas ali perto quase atacou-me. Desgramado de uma figa. Naquela hora, ali, ninguém para atrapalhar. A cachorra não me atrapalhava mais. Vovó estava calma e serena. Caminhando por mais alguns metros, cheguei à porta da Reserva Florestal do Grajaú, uma extensão da Floresta da Tijuca, mata Atlântica. Adentrei tudo. Ninguém estava a postos para impedir-me.

Um anfiteatro havia sido construído há muito pouco tempo bem no centro da floresta. Uma árvore bem grande, gorda e frondosa ficava em sua direção. Se tivesse sol naquele cenário, bem que tudo aquilo seria de chorar.

Tirando dos braços vovó, olhei-a. Acho que ela olhou-me também. Lembrei-me dos tempos antigos. Merda. Sentimentalismos bestas agora não, por gentileza e obséquio. Eu ia sempre para a casa dela, tomar banho e almoçar, para depois ir para a escola. Ela arrumava-me bonitinho. Fazia um topete em mim de invejar a qualquer um. Ela era baixinha e gordinha, como já foi dito. Um brotinho. Sempre fez para mim, quan-do eu da escola chegava, batatas fritas bem fritas e gordurosas. As servia em um daque-les potes de sorvete de plástico. Elas eram fininhas. Devorava-as assistindo Cocoricó ou Fantasia. Lembranças.





Abri a caixa. Não quis dizer adeus. Coloquei-a ao lado da árvore. Um dia ela deve nascer outra coisa, mais feliz do que o que foi nesta vida. Vovó agora era apenas cinzas. Jogada na terra foi para encontrar um caminho, uma direção. O pó encontrou o chão e os dois seriam companheiros. Da porra viemos e à merda retornaremos, foi o que alguém disse para alguém que disse para mim.

Descendo a rua de paralelepípedos, percebi que a cachorrinha só queria fazer necessidades. Ela deve morrer em pouco tempo, provavelmente. Virará cinzas, assim como vovó e assim como eu.

Em casa, dormi. Todos, no dia seguinte, acordaram. Ninguém falou de vovó. Eu não toquei no nome dela. Nunca mais se falou de vovó. Mas vovó ainda falava em meu pensamento.