sábado, 21 de agosto de 2010

XII) Os garotinhos

O garotinho branco começou a estudar na escola do bairro em que morava no ano de mil novecentos e noventa e cinco. Fora várias outras situações que sempre retornavam à sua mente, mesmo muitos anos após deixar de frequentar tal local de ensino, recordava-se de quando, pela primeira vez, por lá adentrou. Havia, logo após o portão principal e entre a piscina esportiva, do tamanho de uma bacia d’água, e a bandeira na-cional, uma leve rampa, que dava acesso às duas maiores salas de aula. Franzino que sempre foi, o garotinho branco surpreendeu-se com a imagem da jovem senhora loura de cabelos curtos, sempre com seu leque na mão direita, a olhá-lo subir o elevado, em direção à classe. Era, dona Vera, uma pessoa austera, porém acessível, sempre que conveniente e necessário. Construiu, por meio de uma vila, que existia no local, uma escola, onde ocupou o posto de dona e diretora pedagógica. Era uma escola bem bairrista, que chegava apenas até a quarta série do ensino fundamental e que não possuía mais que oito salas de aula. Mas como sempre fora um bom estudante, comportado, compenetrado e praticamente invisível diante de sua pequenez física e existencial, em detrimento da primeira impressão da mulher, nunca teve muitos problemas com a diretora jovem senhora, nem com qualquer outra pessoa na instituição possuidora de cargo hierarquicamente superior ao seu.

Em contrapartida, a vida, geralmente, não é sempre uniforme, e ele, uma pessoa que, por mais qualidades que possuísse, por vezes dizia coisas um tanto fora de auspicioso momento, teve seu dia de criminoso endiabrado, vil e sem escrúpulos pelo irmão próximo. Exerceu sua imoralidade diante de algo e em uma situação que apenas a inocência infantil é capaz de proporcionar.

Cursava, tendo como tia a professora Regilene, que tinha uma irmã chamada Regina, na mesma escola, levando as pessoas a acreditarem que os pais das duas tinham uma queda pelo “re”, a segunda série. Considerações inúteis reprimidas, as aulas eram ministradas sempre sem muitos contratempos. Todos chegavam à escola, tendo que pouco caminhar, o garotinho branco, até a ela chegar. Quando lá já se encontravam, todos os alunos de todas as séries reuniam-se no pátio, se é que podia-se chamar aquilo de um, haja visto seu diminuto tamanho em relação a um pátio de uma escola ginasial ou abarcadora de todas as séries do ensino brasileiro. Essa aglomeração ocorria em consequência do Hino Nacional. Uma fila era feita em ordem de tamanho, o que fazia o garotinho branco sempre ficar bem na frente de todos, concorrendo, vez ou outra, com o garotinho branco de número dois, que não disputava o lugar detrás, mas sim o da frente. Uma discussão burra, naturalmente, para os olhos mais trabalhados de uma sociedade mais etariamente avançada. No entanto, para o garotinho branco número um e para o garotinho branco número dois, era uma glória poder ser o primeiro da fila. Tirando as ideologias anárquicas e de esquerda, que provavelmente desprezariam tal momento, como ele sendo um resquício da ditadura militar que afligiu a nação durante muitos anos, há de se convir que aquela escola era um fruto de tal período, tendo sido inaugurada no ano de mil novecentos e sessenta e quatro e possuindo em sua grade profissional pessoas que compactuavam, sobremaneira, com tal época obscuro de um Brasil estranho. Para o garotinho branco, não o número dois, mero coadjuvante neste relato, mas sim o primeiríssimo, era um modo interessante de emocionar-se. Sem saber muito bem a razão, pois nunca saíra de sua própria cidade, não escutava a “Hora do Brasil”, não tinha ideia ainda do que era o “Jornal Nacional” e nem quem era Fernando Henrique Cardoso e o Plano Real, ele emocionava-se ao cantar as tão belas passagens do Hino desta nação. Ainda que não soubesse exatamente o que aquelas palavras significavam, era debulhante ver um símbolo ser ostentado em homenagem à pátria! Orgulha-se até hoje da professora que o obrigou a decorar o Hino Nacional, o Hino da Bandeira e tantos outros, pois hoje, se algum repórter de televisão o quiser abordar na rua, para uma pergunta: “Você sabe cantar o Hino Nacional?”, sim, ele diria: eu sei. Foi, então, no último ano do ensino fundamental, já que os únicos estudantes que tinham o direito de hastear a bandeira eram os melhores do último ano, chamado para tal. Um evento, considerou sua família. Para isso, teve que chegar mais cedo na escola, antes que todos, pegar a bandeira guardada e dobrada e hasteá-la, sim, para o céu!

Mas de nada isso adiantou, já que o garotinho branco havia cometido, alguns anos antes ao do único hasteamento de bandeira de sua vida, um dos maiores delitos que ele poderia vir a poder imaginar em seus sonhos, ou pesadelos, mais pérfidos e soturnos. O episódio gerou, anos depois, sua compulsiva vergonha alheia. Era incapaz de ver alguém passar por algum constrangimento, ou situação embaraçosa, sem que, com isso, sentisse internamente que aquilo acontecia, metafisicamente, com ele próprio e, se duvidar, sentia mais que a própria pessoa que estava sendo alvo de tal vergonha e humilhação, pública ou privada, física ou verbal. Tudo em razão da vergonha que ele sentiu de si mesmo naquele fatídico dia. Não se sabe o motivo, pois o seu subconsciente, de tão traumatizado, só o permite lembrar da situação a partir do instante em que o xingou. A razão para isso não era mais perceptível para o garotinho branco.

Estavam todos em sala de aula, antes da hora do intervalo. As cadeiras, de madeira velha e riscada, eram agrupadas em três, formando-se, com isso, apenas uma, compartilhada por três crianças moribundas, dispostas, ou não, a aprender a ler, escrever e a contar. Fazia muito calor naquele dia, e todos sentiam a falta da menina que sentava na última carteira. Na semana anterior, ela brincava de balanço na mesma, independente da aula que estava sendo dada diante de seus olhos sempre tão verdes. Escutou-se um barulho e quando os alunos deram-se por si, a secretária já a punha nos braços para leva-la ao pronto-socorro. A impressão que se tinha era de que ela havia perdido a ponta do dedo, que nem Luiz Inácio. Ficando fora uma semana, a ponta do dedo, que contava-se e acreditava-se, havia fugido, encontrava-se agora branca, com uma espécie de esparadrapo. A coitada, como se a desgraçada doída não fosse pequena, apareceu com um tampão no olho esquerdo, restringindo sua beleza, sendo que ela nunca deu muitas explicações para aquilo, mas o fato é que ela nunca mais foi odiada pelos meninos da classe, sentimento compatível, àquela idade, ao amor que os adolescentes sentem pelas senhoras que sentam-se ao seu lado, tanto na escola, quanto no ônibus, quanto em qualquer lugar. Então, a menina não viu o que aconteceu. Pelo menos, menos uma pessoa para testemunhar o julgamento em praça pública.

Wilson, era seu nome, ou ainda é, pois o garotinho branco acha que ele ainda não está morto. Não sentava-se muito recorrentemente ao lado do garotinho branco, mas naquele dia fazia companhia a ele. De memória, lembra-se que Wilson era uma criança difícil, não muito aplicada aos estudos e que sempre chorava antes de entrar na escola. Mas era, supostamente, seu amigo, e isso não entrava no mérito de suas capacidades intelectuais para poder o ser, ou não.

– Cuidado, você vai pegar febre de macaco! – berrou o garotinho branco, ao perceber que o outro colega que sentava-se ao lado esquerdo de Wilson o iria tocar.

Porque dizer isso? O que o levou a fazê-lo? Era uma brincadeira? Se o foi, deve ter sido muito desentendido. Nunca desejou tanto que alguém, depois das consequências do fato, não o tivesse escutado, pois, de repente, a professora, do alto de sua altivez e poder, bradou:

– O quê?!

É impressionante como as professoras perdem completamente sua suposta autoridade perante os alunos depois que eles passam a chamá-las de “professora”, ao invés de “tia”. As professoras primárias, pelo menos na época do garotinho branco, eram tão autoritárias e respeitadas, que os alunos chegavam a ter medo delas como se tinha medo de uma mãe e elas tinham uma pseudo autoridade de castigá-los, assim como se faz uma mãe, sendo que o medo do alunado perante elas era tanto, quando elas brigavam e chegavam perto, que era como se elas fossem espancá-los.

Wilson deve ter olhado fixamente para ele, pois se realmente olhou o garotinho branco não se lembrou. Só sabe que foi levado, pela tia Regilene, até a cozinha da escola, onde encontravam-se as duas serventes que auxiliavam na organização do colégio. Lá, apenas uma veio discursar. A professora disse:

– Ele chamou o outro de macaco.

A servente também era negra.

– Meu filho, eu criei dez crianças na minha vida e com muita dignidade.

Foi isso que ela disse, ou pelo menos só isso que o garotinho branco lembra-se da conversa. Com isso, ele crê, ela deve ter querido dizer que ela foi, “mesmo” negra, bem capaz de cuidar de outras vidas e que sim, ela serviu para algo e que não era inferior a ninguém.

O garotinho branco sentiu, depois, em casa, e mesmo no futuro, tanta vergonha do que fez, tanto constrangimento pelo ato e pela notoriedade pública e explícita do mesmo, que a vontade que tinha era de atirar-se em um poço e, de dentro dele, nunca mais sair, para tentar purificar-se do pecado que encontrava-se alojado dentro de sua boca, mas que tinha certeza, não dentro de seu espírito, pois na verdade nunca teve preconceito com pessoas de cor. Ou supostamente não teve, porque não lembra-se de como era sua vida em relação a essa questão antes do que aconteceu, mas só sabe que, depois disso, nunca mais xingou ninguém por sua cor de pele, situação financeira, nem outra discriminação minoritária.

Achando que tudo ficara bem, aparentemente, que seja, Wilson convidou o garotinho branco para seu aniversário. Que lindo.

No dia da infeliz tragédia, a professora não deixou ninguém sair para o recreio, “por causa dele!”. O único que saiu foi Wilson, sozinho. Todos juntos ficaram presos, de crime e castigo, confinados na sala de aula, enquanto Wilson encontrou sua liberdade de meia hora no pátio, ao lado dos brinquedos. Foi, então, a caminho de sua alegria instantânea, ainda que sozinho.

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