quarta-feira, 23 de março de 2016

José Leonilson, verdade-ficção: o testemunho homossexual de um artista




“As coisas perdidas ou inalcançadas foram as únicas que possuí” (Maura Lopes Cançado)
“Meus trabalhos agora são tudo o que eu tenho mesmo: minha autobiografia, meu diário” (José Leonilson)
A capacidade de testemunhar e o ato do testemunho envolvem em si mesmos uma qualidade curativa e já pertencem, por caminhos obscuros, ao processo de cura(Shoshana Felman)
1.      INTRODUÇÃO
O que me impede, aqui e agora, de escrever sobre José Leonilson Bezerra Dias (1957-1993)? Há semanas estudo sua obra, há dias sonho com seu nome: sou perseguido diariamente por seu fantasma, mas algo aqui não me permite dizer, objetivamente, o que eu quero dizer sobre ele. O que me impede, aqui e agora? Quem sou eu, aqui e agora? José Leonilson seria quem? Eu seria José Leonilson? Guido, 1.60m, 50kg? El Puerto. Algo me falta e é essa falta que eu clamo preencher com a falta exibida por José Leonilson em seus trabalhos artísticos e nos filmes produzidos sobre ele: é essa dor sem nome, esse grito sem som, esse pedido por misericórdia de um Deus desconhecido que eu peço e que ele também sempre pediu. Ser homossexual e morrer de Aids. Contar a sua dor em seu trabalho artístico. “Truth/fiction”, já fez José Leonilson. Então, como posso começar a dizer algo claro e sem interferências da minha própria memória afetiva sobre alguém que em seu trabalho sempre lidou de forma titubeante entre as proposições cartesianas do sujeito, hoje já ultrapassadas? É o traço mnemônico histérico-traumático de José Leonilson Guido Arosa que aqui eu busco e que eu aqui encontro. 
            Quando, em janeiro de 1990, o artista plástico homossexual – é importante frisar “homossexual”, pois “homossexuais” nós somos e isso nos define: “somos” e não “estamos” homossexuais – cearense José Leonilson Bezerra Dias começou a gravar o seu dia a dia em fitas cassete, o objetivo era transformar aquele diário íntimo em um livro: “(Quando comprei o gravador) queria gravar vários pensamentos para chegar em um livro” (LEONILSON In NADER, 2014). No entanto, esta empreitada final nunca realizou-se e suas gravações foram armazenadas em São Paulo por meio do Projeto Leonilson, com apoio do Itaú Cultural. Já nos anos 1990, essas fitas foram utilizadas para a realização do curta-metragem “Com o oceano inteiro para nadar” (expressão retirada de uma fala de José Leonilson em suas fitas) e, mais recentemente, em 2014, o mesmo material serviu como base para a realização do longa metragem documento-experimental “A paixão de JL”, do diretor Carlos Nader, sob a mesma realização do Itaú Cultural em conjunto com o Projeto Leonilson, ganhando vários prêmios e sendo exibido nacional e internacionalmente: dentre os prêmios destaca-se o de melhor documentário no festival “É tudo verdade”, de 2015. Em cartaz, gratuitamente, no Espaço Itaú de Cinema, em várias cidades do país, desde fevereiro de 2016, “A paixão...” trouxe José Leonilson Bezerra Dias, José Leonilson, JL, José, Leo, nós, novamente à baila, para as novas gerações, principalmente aos nascidos entre os anos 1980 e 1990, que ainda não haviam tido a oportunidade de se familiarizar e se afetar pelo trabalho de Leo.
            Vou tentar, agora, ser o mais objetivo possível: tenho por intenção analisar, neste ensaio, a obra de José Leonilson e os trabalhos artísticos e acadêmicos realizados sobre ele, para entender a questão da subjetividade em sua obra, a separação entre real e ficcional e, principalmente, inseri-lo no contexto da arte testemunhal, aqui entendida, portanto, como a arte produzida a partir do trauma – de ser homossexual e de se ter Aids. Para isso, irei analisar, separadamente e com mais cuidado, ainda que não apenas: o filme “A paixão de JL” (indo junto “Com o oceano inteiro para nadar”) e a forma com que ele é conduzido, evidenciando as transformações na fala do artista para antes e depois da descoberta de sua soropositividade; os trabalhos do artista (em galerias ou em periódicos) realizados nos períodos anterior e posterior à descoberta de sua soropositividade; e, por fim, todo discurso produzido por ele com o intuito de se explicar, tendo como pano de fundo a produção de seus desenhos e bordados (e o que significariam estes produtos diante do contexto-Leonilson). Entender, principalmente, a forma com que este artista plástico peculiar utilizou-se da palavra escrita (seja em seus diários; seja em seus desenhos; seja em seus bordados; seja até mesmo a palavra não escrita, mas dita em suas fitas) em sua vida-obra, em sua truth-fiction, em sua autoficcção, em seu testemunho – real e traumático, mas libertário pelo ato de fala.
2.      EL PUERTO
Infelizmente, não sou capaz de continuar. É difícil demais. Preciso ser subjetivo. Sucumbi diante de minhas tentativas científicas de produção. Mantenho o início do trabalho exposto aqui não para ratificar uma total falta de sentido em meu artigo, mas para dizer: tentei fazer algo. José Leonilson me espanta demais, porque ele sou eu e todos nós somos José Leonilson em nossas desgraças cotidianas. Farei, agora, o que sei: contar como o conheci e o que ele representa para mim. Subjetivamente, eternamente.
Foi durante um festival de cinema homossexual no Rio de Janeiro, em julho de 2015, que tive a oportunidade de assistir “A paixão de JL”. Sem ter muita ideia do que poderia esperar, fui ao Cine Odeon, enorme e quase vazio, para conhecer o que até então para mim não havia passado de um trailer onde um rapaz com voz embargada contava um sonho seu. Fui com um amigo. Começou o filme. Logo de cara, era eu e um enorme “Truth/fiction” (trabalho de JL) diante de mim. Isto é o que eu também faço, percebi. Passou o documentário – apenas a voz de José Leonilson, sendo o pano de fundo ora um gravador, ora filmes e clipes musicais que o próprio artista menciona, como “Meu pé esquerdo” e Madonna – e eu impressionei-me, mas ainda conseguia conter minhas emoções na ordem do compreensível. O que eram aqueles pedidos de amor, de namoro, de compreensão, de vergonha, de família, de vida e de morte, que o artista suplicava em seu diário íntimo falado e em sua obra ali representada? Porém, como todo trauma, o baque forte demais a gente só sente depois. No caminho do ponto de ônibus, achei que o amigo que estava comigo ria. Mas não: chorava. Disse: que bobagem, para de chorar. O que vimos é triste, mas sigamos em frente. No entanto, ao manter um diálogo sobre o filme, já estando nós dois no ônibus, comecei eu a chorar enlouquecidamente. Era eu, frente a mim mesmo, a partir da sombra de um homossexual morto, após ter sido exibido a mim toda sua via crucis do corpo, homossexual e soropositivo. O filme mais triste que já vi em toda minha vida, eu tive certeza. Mas o que fazer com toda essa catarse? O que fazer com tanta informação amorosa sobre Leonilson? Estudá-lo.
      Fevereiro de 2016 e, finalmente, o documentário entra em cartaz, gratuitamente, em apenas um horário por dia, no Espaço Itaú de Cinema. Retornei e revi três vezes aquele purgatório em vida, que se pretendia libertário, que foi a obra de JL. Sofri igual, mas então eu já estava na fala do paciente analisado pela psicanálise, que entende de forma hermenêutica seu problema: o meu problema, o problema de Leonilson, estava agora sendo por mim analisado a partir de um viés terapêutico-discursivo. O choro já havia ficado para trás. Mas como o trauma se configura por ser denegado ao longo dos anos e voltar depois com força total a partir de um evento catalisador, eu estava diante de um grande impasse: revi José Leonilson, quis estuda-lo, mas não conseguia escrever absolutamente nada de coerente sobre sua obra. Seria eu não conseguindo defrontar-me comigo mesmo? Lia, lia, lia, cada vez mais. E cada vez mais sonhava com ele. Entreva nas salas de cinema em sonho e pedia um ingresso para ver Leonilson. Diversas vezes esse sonho: diversas vezes um tormento. Nenhuma linha por mim escrita, em sonho mais e mais dia retornado, um livro diferente amanhã sobre ele portanto lido. Que piedade é essa que em Leonilson eu quero encontrar? Minha terapeuta me disse: “Você estuda intensamente a Aids para daqui a quarenta anos não morrer de Aids”. Morro simbolicamente dela todos os dias e todos os dias me reinvento a partir dela, seja em sua ausência ou presença. Eu busco incansavelmente, agora, compreender o que me amedronta.
Levanto a cortininha de “El Puerto”, onde lê-se “Leo, 35, 60, 1,79” e vejo um espelho. “São três os números de Leonilson” (PRATES e SANT’ANNA, 2007), dirá um livro para crianças sobre artistas brasileiros. Qual a cara da Aids? O esquálido, auschwitziano, homossexual? Ou eu, banal e cotidiano? Qualquer um? Gordinho, tal qual Herbert Daniel? O que significa meu medo da Aids, da doença? Eu posso morrer atropelado mês que vem, ou de câncer ano que vem, e morrer assim seria diferente do que morrer em consequência da Aids? Fala Leonilson: 
“É, minha idade, meu peso, minha altura. Ele chama ‘El Puerto’. Eu fiz teste de HIV e deu positivo há um ano atrás. E eu não senti nada. Você imagina? Eu já vi vários amigos em desespero, e eu não. Eu não senti ab-so-lu-ta-mente nada. Falei: ‘Mais um fato na minha vida’. Depois do teste, já fiquei desesperado, ainda fico deprimido. Mas o que eu sei é que minha qualidade de vida tem que ser a melhor possível. (...) Antigamente, eu passava meus limites. Hoje, se estou cansado, nem me levanto da cama. Também penso que me tornei muito mais receptivo. Não sei se eu tenho mais seis meses, dois anos ou vinte. Então, não por dó nem piedade, minha relação com as pessoas melhorou muito. (...) Nunca gostei muito de me olhar no espelho. Nem tinha espelho no meu quarto, evitava o espelho do banheiro. Para que se olhar no espelho? Não há nenhuma necessidade. Eu estava no centro da cidade e comprei este espelhinho. Quando cheguei em casa, pintei de laranja bem forte. Comprei um pano listrado... Usei a palavra ‘porto’ por causa da receptividade. O porto recebe. O Leo com 35 anos, 60 quilos e 1,79 metro é um porto que fica recebendo. Acho que hoje eu recebo muito mais do que dou, porque preciso canalizar minhas energias para minha intimidade. É isso, simplesmente. Precisava fazer um objeto com estas características para mim. (...) Aliás todos os trabalhos são objetos de desejo” (LEONILSON apud LAGNADO 1998, 98-100).
Portanto, “esse confronto todas as manhãs com a minha nudez no espelho era uma experiência fundamental” (GUIBERT apud BESSA, 2002, 206). Leonilson olhou-se por meio de sua obra e nos fez olharmo-nos diante de nós. Qualquer um se ver nesta obra em específico quer dizer que “nós não devemos cair na armadilha de traçar uma vida com o momento da morte... como alguém morre não diz nada como ele viveu” (WHITE apud REIS, 1998, 79). 
            Diário íntimo, com datas, para salvar os dias (Walmir Ayala): Leonilson grava seu dia a dia e diz sempre as datas: “Hoje, dia... bombardearam Bagdá”. No fim da vida, porém: “Não sei que dia é hoje. 14 de novembro, não é?” Não se sabe mais o dia certo, o passo fica incerto, o encerramento já está próximo. O filme assim vai chegando ao fim. Diário – desenho – bordado – palavra – poesia – lugar do amor e do desejo.
3.      FRAGMENTOS DE UM DISCURSO EXTREMAMENTE AMOROSO
Trechos de discursos que esclarecem a trajetória-Leonilson:
a)      “Única coisa que eu quero é trabalhar direito e encontrar alguém para dormir comigo” (José Leonilson, em “A paixão de JL”);
b)      “Eu tenho medo da Aids. Não estou a fim de morrer sofrendo, desgraçado. A praga está aí pronta para te pegar. Mas isso faz com que nossa consciência fique mais forte (...) Com o oceano inteirinho, pronto para eu nadar” (Ibidem);
c)      “Minha mãe me olha com olhos de quem sabe. Mas eu não teria coragem de contar que sou gay” (Ibidem);
d)     “Eu queria tanto ser um bom filho. Eu queria tanto não ser nenhum desgosto. Mas eu também queria tanto ser feliz. Ter alguém para namorar” – em seguida, exibição do desenho acompanhado da expressão “Always causing familiar drama” (Ibidem);
e)      “Chorei vendo o cara na novela. Só uma pessoa maluca chora vendo um cara na novela” (Ibidem);
f)       “Agora eu estou super carente. Fico afins de quem chega perto de mim. Eu namoraria ele, se ele quisesse” (Ibidem);
g)      “Eu não tenho medo. Na verdade, eu penso 24 horas no assunto. Mas penso mais em como vou contar para minha família, que gosta tanto de mim” (Ibidem);
h)      “Estou gostando tanto do Eitan. Eu já contei (...) Me disseram que eu tinha que ter esperança. Tenho medo de tomar AZT pelos efeitos tóxicos. Eu sei lá. Peço para Deus para ajudar, ficar comigo meu anjo da guarda” (Ibidem);
i)        “Talvez eu nunca mais possa ter nenhum namorado. Qual cara vai querer namorar um positivo?” (Ibidem);
j)        Diálogo entre a mãe e José Leonilson, citado pelo próprio: “Mãe: ‘Eu queria acordar e poder mudar o mundo’. Léo: ‘Eu queria acordar e estar morto’”. Depois de conversarem sobre Jesus Cristo ter morrido pelo bem dos homens, Leonilson diz: “Então não adiantou nada” (Ibidem);
k)      “Como vou pedir para Deus segurar minha barra se ele deixou chegar a esse ponto? (...) Como eu vou contar para minha família? Isso é que é o pior (...) É muita crueldade. Eu não fiz nada para merecer isso” (Ibidem);
l)        “Como vencer o medo? Enfrentando-o” (filme “As asas do desejo”, de Wim Wenders, exibido durante “A paixão de JL”);
m)    “É a ambiguidade. Minha vida é um diário. Toda minha atitude é esta. Eu também não entendo direito isso. Se eu entendesse, acho que eu faria outra coisa” (LEONILSON apud LAGNADO, 1998, 86);
n)      “Eu não extravaso com violência, nem com o uso do poder, mas acho que as coisas calminhas cutucam tanto quanto um tiro na testa. Uma poesia gay, para as pessoas, machuca muito” (Ibidem, 88);
o)      “É (a realidade da palavra é totalmente autobiográfica)” (Ibidem, 110);
p)      “A inclusão do fantasma e do desejo na linguagem é a condição essencial para que a poesia possa ser concebida como joi d’amour. A poesia é, em sentido próprio, joi d’amour, porque ela mesma é a stantia na qual se celebra a beatitude do amor” (AGAMBEN, 2007, 211);
q)      “(...) em um círculo no qual o fantasma gera o desejo, o desejo se traduz em palavras, e a palavra delimita um espaço onde se torna possível a apreensão daquilo que, do contrário, não poderia ser nem apropriado, nem gozado. É este círculo, em que fantasma, desejo e palavra se entrelaçam ‘como as línguas se entrelaçam no beijo’” (Ibidem, 212);
r)       “A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro” (BARTHES, 1981, 64);
s)       “O amor é mudo, diz Novalis; só a poesia o faz falar” (Ibidem, 68);

Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007;
BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1981;
BESSA, Marcelo Secron. Histórias positivas: a literatura (des)construindo a Aids. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997;
__________. Os perigosos: autobiografias e Aids. Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2002;
GANCIA, Barbara; MESQUITA, Ivo. Leonilson: use, é lindo, eu garanto. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2006;
LAGNADO, Lisette. Leonilson: são tantas as verdades. São Paulo: Projeto Leonilson / Sesi, 1998;
PRATES, Valquíria; SANT’ANNA, Renata. Leonilson: gigantes com flores. São Paulo: Editora Paulinas, 2007;
REIS, Paulo Roberto de Oliveira. A construção do desenho: sujeito, temporalidade e cartografia em Leonilson. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: Departamento de História, PUC-Rio, 1998.
Filmografia
HARLEY, Karen. Com o oceano inteiro para nadar. Rio de Janeiro: Sério Rio Arte Vídeo / Arte Contemporânea, 1997;
NADER, Carlos. A paixão de JL. São Paulo: Projeto Leonilson / Itaú Cultural: 2014.









domingo, 20 de março de 2016

Literatura de testemunho homossexual - retrabalhando os cânones americano e europeu (projeto de dissertação de mestrado - Ciência da Literatura da UFRJ)



1. INTRODUÇÃO E RELEVÂNCIA DO ESTUDO
A partir do final dos anos 1800, a homossexualidade deixa de ser considerada prática isolada (sodomia) e passa a ser vista como fator determinante na constituição do sujeito[1], sendo o homossexual inserido em um discurso médico, criminal e racialista, estando então dentro de uma rede patológica. Desta forma, o homossexual fica relegado, com respaldo científico, aos usos políticos e sociais dos atos de isolamento e aniquilação. É nesta perspectiva da comprovação científica da exclusão que o século XX pôde presenciar a prática sistemática da barbárie institucionalizada, independente de regime político ou econômico. Sendo assim, esta pesquisa tem por intenção analisar duas obras de testemunho homossexual, uma produzida pelo cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) e outra pelo francês Pierre Seel (1923-2005): respectivamente “Antes que anoiteça”[2] (lançado em 1992, na Espanha) e “Eu, Pierre Seel, deportado homossexual”[3] (lançado em 1994, na França).
Arenas descobre-se com Aids, nos Estados Unidos – para onde se refugiara no começo dos anos 1980, fugindo das torturas, prisão e exclusão social do governo de Fidel Castro – e é a partir de então, acreditando na certeza da morte (e diante do trauma que foge à compreensão em linguagem que foi a epidemia em seus anos iniciais para o cidadão homossexual), que o escritor começa a gravar fitas (assim como o fez o artista plástico homossexual brasileiro José Leonilson[4]) relatando os anos de clandestinidade em Cuba, quando foi proibido de escrever, por seus textos terem sido taxados de contrarrevolucionários e homossexuais. As gravações iniciais são realizadas durante suas primeiras internações para, em seguida, Arenas transcrevê-las. Além do relato de “luta e esperança” política e identitária que o escritor se propõe a realizar com seu livro-epitáfio, também pode-se ver no relato uma tentativa de contemplar o horror que foi, para ele, ser soropositivo. Como se irá detalhar com mais cuidado na segunda parte deste projeto – a que se reporta à questão do real traumático e da narrativa como forma de cura – encontramos a Aids, no texto de Arenas, na verdade onde ela naquele texto menos existe, mais faz falta, mais está no vazio, pois representa o trauma maior, o indizível, o horror impossível de se mensurar em palavras, já que abjeto em demasia: “Percebo que estou quase chegando ao fim deste apresentação, que na verdade é o meu fim, e não falei da Aids. Não posso fazer isso, pois não sei o que é. Ninguém sabe, com toda a certeza” (ARENAS, 2009, 15).
“Antes que anoiteça” é, então, finalizado em agosto de 1990 e o autor suicida-se em dezembro, sendo o livro publicado, na Espanha, dois anos depois[5]. No entanto, como relata o escritor Caio Fernando Abreu (que o leu na Europa, em 1992) em texto para “O Estado de S. Paulo”, de 27 de novembro de 1994, a recepção da obra no Brasil foi difícil: “Voltando ao Brasil, quis traduzí-lo. Ninguém quis. Muito deprimente, diziam, pouco comercial” (ABREU, 2006, 129). A obra sai então, finalmente, em 1994, pela Editora Record. Apesar de tudo, na edição de 2009 do texto – após, portanto, alguns anos de imersão (ainda que reles), da obra do cubano no Brasil – a editora falha na diagramação e exclui a última frase do livro: “Cuba será libre. Yo ya lo soy”, presente ao fim da carta de despedida do escritor, na iminência de seu suicídio. O fato, unido a não reedição de suas poucas obras publicadas em português e na quase exclusão da maior parte de seus trabalhos no Brasil, mostra que ainda deve-se estudar muito sobre e a partir da obra de Arenas.
Já o francês Pierre Seel – que ao longo da vida buscou uma carapaça heteronormativa –, em 1941 foi deportado para um campo de concentração, após ser fichado pela polícia por frequentar um parque onde havia encontros gays, e no campo presenciou a morte de seu companheiro comido vivo por cães, dentre outras atrocidades. “Eu, Pierre Seel, deportado homossexual” é considerado o primeiro relato testemunhal em livro de uma vítima homossexual francesa da Segunda Guerra. O livro foi lançado no Brasil apenas em 2012, como parte do mestrado de Tiago Elídio, na Unicamp, defendido em 2010[6]. Tal como escritores que passaram pelo trauma de Auschwitz afirmam que provavelmente nunca teriam escrito caso não houvessem sido vítimas e testemunhas[7] de violência tão profunda, Seel expõe este seu texto. Transpassado pela questão do silêncio (“Sempre essa camuflagem, essas meias-verdades, essa obrigação do segredo”, 2012, p.95) e da vergonha (“Essa vergonha, feita de mil vergonhas”, Ibidem, p.131), o relato escrito existe por meio do relato oral do francês ao jornalista Jean Le Bitoux.
O objetivo, portanto, principal desta pesquisa, é demonstrar a possibilidade de se pensar os testemunhos provenientes do cubano Reinaldo Arenas – “testimonio”, inserido em um contexto de autoritarismo na América (seja autoritarismo comunista em Fidel Castro como também capitalista nos Estados Unidos, onde o escritor afinal de contas matou-se) – e do francês de origem alsaciana Pierre Seel – da “Shoah”[8], inserido no contexto do autoritarismo da Europa que culminou na Segunda Guerra Mundial – como na verdade inseridos em um contexto maior e sem fronteiras da consequência da experiência traumática, como pondera uma das notas de rodapé do livro de Pierre Seel:
Tony Lainé: “Os grandes traumas da história têm, de modo considerável, destinos idênticos àqueles que afetam um indivíduo. São enterrados, tapam-se as brechas, mas desde o momento em que a memória os afasta, permanecem inalterados, com a carga emocional que lhe é associada intacta” (Prefácio da obra de George Eisen, Les Enfants pendant l’holocauste, Calmann-Lévy, 1993, p.10). (SEEL, 2012, 160)
Sendo assim, quer-se articular no trabalho a forma como o sexo é interferido (e interditado) pela política e como a literatura alcança de forma distinta (mas semelhante) os autores Reinaldo Arenas e Pierre Seel. Quando, aqui, se afirma em alcançar de maneira distinta, pretende-se por destacar que Arenas durante toda a sua vida, em Cuba, foi um escritor que utilizou-se da palavra para contestar o regime que o oprimia e que entendia o ato de escrever como necessário e indispensável para a vida. O próprio título “Antes que anoiteça” é uma forma de dizer ao leitor que ele precisou contar sua vida, seu trauma, e escrever toda sua obra, enquanto ainda houvesse “luz” para que ele pudesse dizer, traduzir em palavras suas vivências. Quando anoitecesse não seria mais possível contar (este livro que ele iniciou a escrita nos anos 1970, enquanto se escondia da polícia dentro de um parque público e onde, portanto, ficaria impossibilitado de escrever quando escurecesse por conta da pouca luminosidade do local). Foi com um tipo de noite metafórica (a da perseguição política) que o relato se iniciou (e que ele retomou apenas quando descobriu-se com Aids) e que terminou com outro tipo de noite, a da noite/morte metafórica proveniente da doença sem nome, do trauma sem rosto e sem palavras. Foi a partir do momento em que Arenas não teve mais a possibilidade de escrever por estar debilitado e quando ele não pôde mais viver sua sexualidade plenamente (no livro ele afirma que viu-se morto quando, em um banheiro público, os jovens não olharam mais para ele em seus jogos sexuais) que escureceu para sempre. “É de noite” (ARENAS, 2009, 375), finaliza. Ele, então, morreu, para a escrita, para o sexo (“A vida é risco ou abstinência”[9]), para a vida, mas ainda não para contestar politicamente (pois ele morreu, mas proibiu que seus livros fossem publicados em Cuba até a morte de Fidel).
Por sua vez, no caso de Pierre Seel, vê-se um texto pontual, permeado pela voz do silêncio, que tentou ser quebrada oficialmente apenas uma vez, anos após o acontecimento traumático. O francês viveu o início de sua vida sexual tentando dar vazão ao seu desejo, mas foi a partir do constrangimento causado pela polícia/política que ele se afundou em um jogo pérfido de silenciamento e vergonha: após ter um relógio de família roubado quando estava em um parque público onde havia encontro de homossexuais, Seel aos 17 anos se encaminha à delegacia, mas é lá que ele descobre, tempos depois, ter sido fichado como “homossexual”. Após ser repreendido pelo policial por frequentar o referido parque, Seel destaca: “Entrei na delegacia como cidadão roubado, saí de lá como homossexual envergonhado” (SEEL, 2012, 30). Seu relato testemunhal, a partir daí, se apaga de encontros amorosos com outros homens e se recheia de vergonha. Ele, diferente de Arenas, deixa de viver sua homossexualidade e de seu relato a experiência homossexual é apagada, dando lugar apenas ao desejo de justiça, proveniente de seu desabafo, já idoso, a um intermediário jornalista. Enquanto Arenas sempre gritou (ainda que tenha encontrado o grande silêncio na Aids), Seel só no fim conseguiu exprimir seu grito (ainda que tenha sido um grito sussurrado, um grito recheado de silêncio). A tentativa de cura por meio da narração fez-se para ambos e o silêncio e a vergonha teve reverberação nas duas obras.
Portanto, almeja-se a) demonstrar o modo como Reinaldo Arenas e Pierre Seel utilizaram-se da e viram a literatura como forma de expurgar o mal; b) entender a possibilidade de se pensar a teoria da literatura de testemunho homossexual independente da separação conceitual entre Shoah e testimonio; c) diferenciar teoricamente os conceitos que compõem a narrativa do eu, como a literatura de testemunho, a autobiografia e a autoficcção; d) estudar o trauma homossexual como relegado ainda a segundo nível das discussões teóricas da literatura de testemunho.
            Como destaca Blanchot: “O beijo dos amantes destrói a sociedade”[10]. É esta autenticidade de vida, de homossexualidade (seja de que forma for) que encontra resultado no grito, no testemunho, na representação literária destas vítimas, que estes dois relatos veem-se relevantes para o debate da emancipação do sujeito homossexual e da compreensão de como a sociedade o aniquilou ao longo dos anos.
2.      PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Estes dois autores vivenciaram, no contexto europeu e americano, experiências-limite[11] que desembocaram em seus relatos-gritos publicados nos anos 1990. O objetivo, então, em analisar ambas as obras comparativamente, é encontrar pontos de convergência, a partir da homossexualidade renegada pelo mundo e até mesmo pela própria economia simbólica da literatura de testemunho[12], que aproximem as teorias sobre o testemunho literário da Shoah (majoritariamente sobre os judeus na Segunda Guerra) – que prioriza a cisão do sujeito atingido pelo trauma e a questão da memória – e o testemunho da América Latina, conhecido por “testimonio”[13] (que relata de forma mais ampla a questão das camadas oprimidas campesinas e indígenas) – que por sua vez enfoca o relato histórico e jornalístico da testemunha diante das mazelas do subdesenvolvimento (geralmente o relato tendo um mediador jornalista ou antropólogo).
Com estas separações didáticas sobre os testemunhos do contexto do pós-Segunda Guerra Mundial e do autoritarismo da América Latina, quer-se entender também como que Arenas e Seel fogem a estes paradigmas teóricos, vide que o relato de Arenas é iniciado (dito) e finalizado (escrito) pelo próprio autor (sem intermediários superiores) e é permeado em grande parte pelas consequências do trauma (dizer/não dizer a Aids, contar para ultrapassar, dizer para manter-se vivo), enquanto que Seel “existe” a partir de seus depoimentos a um jornalista, que dá forma ao livro, ao passo que ao mesmo tempo o texto é recheado de notas de rodapé que tem por intenção dar uma historicidade relevante à fala do alsaciano deportado[14]. Deseja-se estudar também a forma como estes dois autores – que viveram e produziram diante de contextos e motivações diferentes, mas semelhantes em seus efeitos traumáticos – articularam em seus relatos da Shoah e da América Latina o sexo/sexualidade que define, a política (seja capitalista ou comunista) que condena e a produção literária (seja ela produtiva e constante ou cindida e pontual) que tem por intenção expurgar o mal.
É preciso estudar também com muito cuidado a crítica feita, por exemplo, por Sánchez (2012), de que a narrativa homossexual perpetua a homofobia do discurso heteronormativo.  O gay que se narra e narra sobre os seus está transpassado pelo discurso patológico e traumatizante e seria muito difícil para quem recebe este discurso como prioritário não ser atingido com vigor por ele. Deve-se, com isso, entender a narrativa gay não como perpetuadora do preconceito, mas como índice do que o preconceito é capaz de fazer no sujeito homossexual.
Desta forma, pretende-se trazer à luz: 1) a problemática da teoria da literatura de testemunho vide seu confronto em relação à autobiografia e à autoficção[15] e entre o autoritarismo da América Latina e a Shoah[16]; 2) a literatura de testemunho diante de sua abrangência que recai no literário, no psicanalítico e no histórico; 3) a literatura de testemunho que deve ser entendida diante de três perspectivas: em seu sentido jurídico e de testemunho histórico, no caráter de sobrevivência a um evento-limite e um atravessar a morte e, por fim, em um “teor testemunhal” que permeia grande parte da literatura do século XX (SELIGMANN-SILVA, 2003, 8); 4) a relação entre as extensas repressões aos homossexuais: desde os campos de concentração até a Aids; 5) a importante questão sobre a baixíssima divulgação e propagação editorial de testemunhos de vítimas homossexuais da barbárie seja no contexto da Shoah, seja no da América Latina; 6) os efeitos do trauma e as capacidades de lembrar e esquecer presentes nos relatos de testemunho homossexuais que permeiam a narração do eu cindido pela era dos choques e das catástrofes. Questionar, deste modo, a maneira como o indecifrável, mas investigável, foi apresentado por estes dois autores (que apesar de “traumatizados” em momentos históricos distintos, convergem em seus relatos testemunhais homossexuais a vergonha/silêncio provenientes do biopoder). Entender como eles transformaram em texto (terapia) o enigma inenarrável que foi a tortura forte demais contra o homossexual.
3.      METODOLOGIA
Deve-se entender a literatura de testemunho como a narrativa do real traumático e esta pesquisa pretende-se ter por foco a literatura do trauma homossexual, que crê-se não ter ainda recebido o devido enfoque. Sendo assim, pensar esta literatura do trauma é pôr-se diante de um paradoxo, posto que o trauma traz em si questões que envolvem esquecer e rememorar repetidamente; querer contar e não conseguir dizer (“double bind”). Ou seja, o trauma é algo inenarrável, pois não traduzido por meio da linguagem: é um evento tão extremo, que transcende a capacidade de explicação por meio do traumatizado. O trauma, o fora do tempo, é entendido como passado que sempre retorna como presente e, no sonho do traumatizado, como destaca Freud, não é a realização do desejo que se manifesta, mas a repetição da cena traumática (FREUD, 2010, 144). Entre certo distanciamento da cena traumática e a rememoração do trauma, como no caso de Pierre Seel, vê-se o trabalho, na escrita de Arenas, de dar conta do trauma que acontece ao mesmo tempo em que ele se dá. Diz-se isso tendo em vista a Aids e este não distanciamento entre o evento traumático. Sua elaboração como vivência é destacada, de certa forma, na afirmação de que o distanciamento entre tempo presente e ficção, na contemporaneidade, tornou-se impossível[17].
No entanto, a narrativa da experiência – ainda que difícil, ainda que limítrofe, ainda que cindida – proporciona certa cura: “a capacidade de testemunhar e o ato do testemunho envolvem em si mesmos uma qualidade curativa e já pertencem, por caminhos obscuros, ao processo de cura”[18]. Forma esta de entender-se o contar como terapia também explicitada por Arenas – “Mas era um consolo contar tudo” (ARENAS, 2009, 213)[19] –, e por Seel, em um contexto usual no testemunho, o de fazer-se justiça – “E quanto a mim, depois de décadas de silêncio, decidi falar, testemunhar, acusar” (SEEL, 2012, 58). Esta narrativa também é necessária como um “atravessar a morte”, para suplantá-la. A linguagem é capaz de não curar a ferida que aberta ainda jorra sangue (vide o suicídio de Reinaldo Arenas e o provável suicídio de Primo Levi), mas ela proporciona uma válvula de escape ao grito.
Refletir sobre esta incapacidade de dizer (não conseguir dizer o trauma chamado Aids, por Arenas, e manter-se no silêncio e adentrar uma vida heteronormativa pela obrigação de corroer-se no segredo, por Seel) e sobre a necessidade de contar, é retomar questões muito importantes para a literatura do século XX, produzida por meio do real traumático. Como destaca Benjamin, “já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis e não mais ricos” (BENJAMIN, 1996, 115). Este fato nos revela que a experiência traumática que o século XX nos lega é permeada pela incapacidade de ser posta em linguagem, de ser retransmitida, pois assustadora e abjeta (conceitos freudianos de Schreck e Unheimlich). Ainda segundo Benjamin (retomando Freud), o estímulo que se dá por traumático é aquele não registrado pelo consciente. O choque, desta forma, quanto mais constante, mais irá requerer o consciente “no interesse em proteger contra os estímulos” (BENJAMIN, 1997, 109). Esta “racionalização”, de acordo com o autor, seria o desempenho máximo da reflexão que faria do incidente uma vivência. “Se não houvesse reflexão, o sobressalto agradável ou (na maioria das vezes) desagradável produzir-se-ia invariavelmente, sobressalto que, segundo Freud, sanciona a falha de resistência ao choque” (Ibidem, 111). Benjamin articula, então, na figura de Baudelaire, a capacidade de ter assimilado o choque e sua tentativa de depreendê-lo “na imagem crua de um duelo, em que o artista, antes de ser vencido, lança um grito de susto” (Ibidem, Idem). É esta batalha contra a falha de resistência ao choque que, aqui, entende-se como a capacidade de curar que a narrativa proporciona.
A consequente racionalização de uma poética proveniente do trauma é a causa, aqui articulada, da famosa consideração de Adorno, ética e estética, que retém-se em Auschwitz mas que pode ser ampliada aos genocídios que macularam a humanidade de uma forma geral: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas” (ADORNO, 2002, 61). No entanto, em texto posterior, Adorno faz uma ressalva, a de que “a dor perene tem tanto direito à expressão, como o torturado ao grito; por isso pode ter sido errado afirmar que não se pode escrever mais nenhum poema após Auschwitz” (ADORNO, 2009, 300). Este grito seria, então, o susto de Baudelaire, Arenas e Seel.
            Compreendida, desta maneira, a questão de uma literatura do século XX permeada pelo trauma, pretende-se agora frisar, na tentativa de esclarecer as intenções metodológicas deste projeto, o viés da realidade traumática. Ou seja, de uma realidade possível de emergir, proveniente de um texto que pretende-se real mas que atravessado pela subjetividade e pelas complicações referentes à experiência traumática, intraduzível e traduzível ao mesmo tempo. Aqui, entende-se o trauma generalizado como o trauma de ser homossexual. Com isso pretende-se afirmar não que ser homossexual seja trauma, mas que como a sociedade vê o homossexual como desvio, o cidadão homossexual recebe esta informação e a trabalha em sua vida como trauma. Desta forma, em um texto literário que não mais é o de afastamento – o de um texto (obra) independente, que aparentemente não recebe interferência de seu contexto (autor) – mas sim de aproximação – um texto que está sempre e em todo momento referindo-se ao seu contexto – temos uma afirmação lapidar que destaca essa capacidade de a literatura ser vida e de a vida ser literatura: “Da escrita à vida e da vida à escrita, a via é certamente de mão dupla, ou, mais do que isso, de encruzilhada, havendo tanto as muitas intensidades do vivido na escrita quanto as da escrita no vivido”[20].
Sendo assim, busca-se, portanto, nestes testemunhos literários, encontrar o teor real, o resto, a sobra de vida que existe em um testemunho[21] onde a testemunha está morta, pressuposto da lógica do carrasco (destruir a vítima até o ponto em que ela acredita-se como o próprio algoz)[22]. O narrar é, portanto, o sopro de vida, a atitude que faz da testemunha reafirmar-se como vítima e pedir por justiça. A intenção de trabalhar aqui a questão do real traumático é necessária para desviar os discursos negacionistas que conferem à narrativa testemunhal e autobiográfica um teor tão subjetivo que impossível de se mensurar na esfera da realidade. Como afirmou-se aqui sobre o indizível da Aids, do campo de concentração, do cárcere e da homossexualidade em si, destaca-se: “O testemunho, portanto, é muito mais lacuna que propriamente moldura, muito mais índice do que símbolo?” (SELIGMANN-SILVA, 2003, 20) e “O testemunho não se interessa por fatos (...), mas pela lacuna que subsiste entre os fatos e sua verdade experiencial” (PENNA, 2013, 71). Este índice, essa literatura que revela mais ao vermos as pegadas e não o pé que pisa, é a literatura de um “homem sem qualidades”, deste “homem inumano”, de alguém que na escrita pretende vagamente encontrar-se.
Este é o sujeito testemunhal: ele é potência, ele não é essência (Ibidem, 78). Pensar a realidade do testemunho, da experiência-limite – já que não há realidade fora de Auschwitz (e seus correspondentes); não há realidade fora da Aids; não há realidade fora do baque forte demais – é pensar na “metarrealidade que a destruição da realidade é”[23], absolutamente, como pretendem nos fazer ver os relatos de Arenas e Seel. É, então, no lastro de verdade, nesta outra realidade existente a partir da morte da realidade que deve-se pensar o testemunho: “O testemunho será assim, em outras palavras, compreendido não como uma modalidade de enunciado sobre mas como uma modalidade de acesso àquela verdade”[24].
Portanto, ao definir como objetivo desta pesquisa a hipótese do elo que permite dizer que há uma “universalidade” na representação do trauma homossexual, e trabalhar de certa forma como secundária a separação entre Shoah e testimonio, vê-se como imprescindível analisar estas lacunas presentes nos textos de Arenas e Seel, pois estas lacunas são o que definem – totalmente – seus testemunhos: é a partir da Aids que Arenas trabalha seu livro/sua vida, ainda que ele tenha dito que “o livro acabou e disse pouco sobre a Aids”. Vê-se a condenação e o ressentimento a seu sexo em todo canto do texto, e isso é assim por conta da Aids, a maldita, a não-dita: “mas o fato é que o prazer sexual se paga quase sempre muito caro; mais cedo ou mais tarde, por cada minuto de prazer que vivemos, passamos depois anos de sofrimento” (ARENAS, 2009, 236)[25]. Seel, por sua vez, faz do silêncio que permeou sua vida e que fez com que seu relato demorasse tantos anos para ser dito (silêncio imposto tanto pelo governo autoritário nazista como pelo democrático francês), a marca registrada de seu trauma, e é no silêncio que após o campo de concentração ele faz de sua homossexualidade – em sua vida adulta não há referência a um novo amor homossexual para Seel (ele apenas rememora seu namorado assassinado) – que o livro se estrutura[26]: “Eu havia decidido apagar a minha homossexualidade da minha vida. Mas é possível impedir a si mesmo de pensar?” (SEEL, 2012, 120). O livro reproduz o diálogo entre Seel e um jornalista que o estimula a contar seu relato e é na fala do jornalista que se lê: “É necessário testemunhar (...). O essencial é dizer” (Ibidem, 134), enquanto Seel destaca surpreso: “eu surpreendi-me por poder falar” (Ibidem, 135).
Portanto, ao analisar comparativamente, no nível do discurso, ambas as obras finais-iniciais de Arenas e Seel, pretende-se defender a hipótese da não distinção entre as narrativas testemunhais; o objeto de estudo é, principalmente, o resto e a falta que surgem nos relatos aqui estudados; e a teoria até aqui analisada nesta seção visa abarcar estas intenções, fazendo desta correlação textual entre teóricos que convergem questões da representação literária no fato histórico e psicanalítico a meta a ser alcançada.
4.      CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como espera-se ter ficado claro, este estudo tem por intenção articular duas obras de testemunho, tendo como foco principal possibilitar uma análise da literatura do trauma homossexual independente de separação entre a Shoah e o testimonio. A partir da leitura comparativa entre as obras, vislumbrar todo arcabouço teórico que requer a questão da representação literária, da história e da psicanálise que possam auxiliar esta empreitada. Quer-se, com isso, preencher as lacunas que ambos os textos tentam fazer emergir, para que possa-se compreender o resto de um grito abafado que dois homossexuais, vítimas do sistema-mundo, tentaram fazer ser ouvido.
Da mesma forma, almeja-se dar chance a um campo do testemunho ainda pouco explorado e viável editorialmente: o do texto homossexual. Inseridos em um contexto dos Estudos Culturais e da propagação dos direitos civis gays, analisar estes autores é igualmente dar voz a uma minoria (pode o subalterno falar?) ainda com pouca voz: é tentar dar mais uma chance de inserir na história os que foram barbaramente repelidos dela. Frisar também que o discurso de “repulsa ao próprio sexo” empreendido pelo homossexual traumatizado (e encontrado em Arenas e Seel) não pode ser visto como reverberação de homofobia internalizada, como parece sugerir Sánchez (2012), mas sim entender o homossexual que se nega querendo, na verdade, que alguém o estenda a mão para afirmá-lo[27]. O estudo da representação literária do testemunho aqui empreendido visa tentar compreender o que os autores aqui analisados disseram ser incompreensível: “Para quem não passou por isso, não é possível compreender o que significa” (ARENAS, 2009, 164). O testemunho, ato ético e estético, portanto, contra a barbárie. O homossexual, ainda receoso de testemunhar, encontra em Arenas e Seel uma possibilidade e é esta chance que o estudo aqui empreendido deseja dar voz.
5.      REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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[1] “O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida” (FOUCAULT, 1980, 43);
[2] ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Tradução: Irène Cubric. Rio de Janeiro: Editora BestBolso, 2009;
[3] SEEL, Pierre. Eu, Pierre Seel, deportado homossexual. Tradução: Tiago Elídio. Rio de Janeiro: Editora Cassará, 2012;
[4] Depoimentos sobre o percurso do homossexual com Aids gravados em fita cassete que serviram de base para o documentário brasileiro “A paixão de JL” (2014), do diretor Carlos Nader;
[5] A partir principalmente de iniciativa do casal de artistas cubanos Jorge e Margarita Camacho, refugiados na Espanha, que foram os responsáveis pela publicação de Arenas no exterior enquanto o cubano ainda sofria perseguições em seu país de origem;
[6] ELÍDIO, Tiago. A perseguição nazista aos homossexuais: o testemunho de um dos esquecidos da memória. Dissertação de mestrado. Campinas, SP: IEL-Unicamp, 2010;
[7] A questão do testemunho é ainda mais complexa e desejosa de análise mediante o fato de que quem testemunha é vítima e testemunha ao mesmo tempo, como destaca João Camillo Penna: “É o duplo status de vítima e testemunha, o fato de a autoridade da verdade se confundir com a da experiência, a indissolubilidade entre parte interessada e parte desinteressada, entre experiência da objetivação e enunciação subjetivante de fatos objetivos, que confere a especificidade do testemunho” (PENNA, 2013, 91);
[8] Principalmente os teóricos europeus não utilizam mais o termo “Holocausto”, de origem grega, por significar “sacrifício pelo fogo” (como se os judeus, homossexuais, ciganos etc. houvessem optado por um sacrifício indo em direção à morte durante a guerra). O termo mais utilizado, agora, portanto, é “Shoah”, palavra de origem hebraica que quer dizer “catástrofe”;
[9] OLIVARES, Jorge. Becoming Reinaldo Arenas. Durhan and London: Duke University Press. 2013, 1;
[10] BLANCHOT, Maurice. A comunidade inconfessável. Brasília: Editora UNB, 2013, 42;
[11] “A experiência-limite é a experiência daquilo que existe fora de tudo, quando o tudo exclui todo o exterior, daquilo que falta alcançar, quando tudo está alcançado, e que falta conhecer, quando tudo é conhecido: o próprio inacessível, o próprio desconhecido” (BLANCHOT, 2007, 187);
[12] Quando se afirma aqui sobre uma “indiferença” da economia simbólica das edições de textos testemunhais para com o homossexual, expõe-se com isso o fato de, por exemplo, relatos de judeus perseguidos já serem publicados logo após a Segunda Guerra Mundial, como os textos mais conhecidos – “Diário de Anne Frank” (1947) e “É isto um homem?” (1947) – ao passo que o homossexual passa a narrar-se apenas a partir dos anos 1970 (com a disseminação dos Estudos Culturais e os movimentos minoritários) e principalmente nos anos 1980, 1990 (a partir da epidemia de Aids que dizimou milhares de homossexuais), vide o surgimento do movimento New Queer Cinema e os relatos dos próprios autores aqui estudados, de 1992 e 1994. Este cenário de “atraso” no direto ao grito homossexual (percebido principalmente no silêncio durante toda a vida de Pierre Seel) dá-se por conta da ainda vigência de leis contra os homossexuais na Europa e na América mesmo após a criação da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos;
[13] Literatura de “testimonio” considerada pelo cânone como “fundada” pela Casa de las Américas da Cuba pós-Revolução de 1959 (SELIGMANN-SILVA, 2003, 32 e PENNA, 2013, 96). No entanto, vale lembrar que é este mesmo país e esta mesma Casa de las Américas que proporcionou o “apagamento” de Reinaldo Arenas e impediu o próprio relato testemunhal dele, já que nos anos 1970 o autor não figurava da lista oficial de escritores de seu país (ARENAS, 2009) e, quando preso pelo regime, seu nome também não constava em nenhuma prisão (Ibidem, 249). É esta parcialidade do testemunho que deseja-se aqui frisar como mote para um estudo crítico da questão;
[14] Esta relação entre o intelectual e o oprimido que deseja exprimir seu grito e encontra um canal a partir do jornalista/historiador/antropólogo é analisada por Penna, dentro ainda de um contexto de testimonio (onde geralmente esta relação ocorre), frisando o desejo de que a voz do oprimido se sobressaia a do intelectual: “O que é ocultado aqui é exatamente o olhar do intelectual que constrói seu objeto como objeto estético, para que ele brilhe solitariamente, pleno em si mesmo, como voz grupal, objeto abjeto (...) desejável da prática solidária” (PENNA, 2013, 128);
[15] “O testemunho não deve ser confundido nem com o gênero autobiográfico nem com a historiografia – ele apresenta uma outra voz, um ‘canto (ou lamento) paralelo’” (SELIGMANN-SILVA, 2005, 79);
[16] Uma aproximação e problematização da separação entre as teorias literárias sobre o testemunho da América Latina e da Europa é apresentada a seguir: “No meu entender, esta acepção do conceito de literatura de testemunho, por considerar uma grande flexibilidade quanto à forma do texto associada a uma natureza de experiências de aberto embate ideológico, abre a possibilidade de analisar uma tendência da produção literária latinoamericana do século XX em um contexto mais amplo, que ultrapassa os limites geográficos do continente e aproxima-a à geografia mundial da barbárie, impondo a necessidade de examinar as relações entre violência, representação e formas literárias” (MARCO, 2006, 51);
[17] SELIGMANN-SILVA, Márcio. “O esplendor das coisas”: O diário como a memória do presente na Moscou de Walter Benjamin. In: Escritos da violência: o testemunho, volume 1. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2012, 266;
[18] FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino. In: Catástrofe e representação. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 17;
[19] O primeiro livro-testemunho do brasileiro homossexual Herbert Daniel também explicita esta mesma capacidade curativa e consolativa da narração: “Se estou, passo a me escrever. Velha técnica que, se não alivia, consola” (DANIEL, Herbert. Passagem para o próximo sonho. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982, p.12);
[20] PUCHEU, Alberto. Kafka poeta. Rio de Janeiro: Azougue/Faperj, 2015, 23;
[21] “Quando tudo foi dito, resta por dizer o desastre, ruína da palavra, desabamento pela escrita, murmúrio que sussurra, o que resta sem resto” (BLANCHOT apud VECCHI, (Re)citando o extremo: o olhar da Medusa, o finito e o infinito do horror. In: Escritas da violência: o testemunho, volume 1. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, 239);
[22] NICHANIAN, Marc. A morte da testemunha. Por uma poética do “resto” (reliquat). Ibidem, p. 43-44;
[23] Expressão retomada por Nichanian a partir de Lyotard. (Ibidem, 34);
[24] FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino. In: Catástrofe e representação. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 27;
[25] Esta interdição de se compreender a Aids e de dizê-la é percebida também na troca de correspondências entre Arenas, nos Estados Unidos, e sua mãe, ainda vivendo em Cuba. Em nenhum momento o filho dirige-se diretamente à mãe afirmando ser portador de tal vírus, no máximo dizendo “estar muito doente”. Já a mãe, em nenhum momento também encara no filho o fato de ele ser aidético, referindo-se ao vírus ao mostrar-se preocupada com um cunhado seu, que está infectado e dizendo ao filho para cuidar-se muito e se precaver dos perigos. Ambos sabiam da Aids, mas ambos não conseguiam dar nome a esse horror e a seus medos (OLIVARES, Jorge. Becoming Reinaldo Arenas. Durham and London: 2013, 114-147);
[26] Este não falar mais nas relações amorosas enquanto Seel foi casado e após sua separação da mulher, mas a sua eterna rememoração do namorado de adolescência assassinado, faz pensar se na verdade o francês está é não revelando ter se relacionado com homens enquanto foi casado com uma mulher ou se ele de fato não saiu mesmo com eles. Este não dizer encontra reverberação no memorialista Pedro Nava, que em nenhum de seus livros comenta suas relações homoafetivas, mas que matou-se, na faixa dos 80 anos, em plena rua no bairro carioca da Glória, por conta de chantagens de um garoto de programa. O que não está dito pode estar dito entrelinhas e ser definidor;
[27] Neste sentido, é a mesma lógica empreendida por Penna, retomada de Arendt: a de que, por mais que exista a vítima que adentrou em terrenos eticamente arenosos para manter-se viva no campo de concentração nazista (podendo então ser comparada ao carrasco, algoz), esta vítima tinha a possibilidade real de morrer, enquanto o carrasco/algoz nunca teve essa possibilidade, definidora (PENNA, 2013, 86).