segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Sofra comigo em lições (36)

"Gostaria que houvesse alguma maneira de voltarmos ao passado para mudá-lo, mas não havia. Não havia nada que pudéssemos fazer. Por isso, fiquei em silêncio e tentei dizer-lhe, telepaticamente, o quanto eu estava arrependendido com tudo o que tinha acontecido. Quando eu penso em toda a dor, tristeza e sofrimento que existe no mundo, me dá vontade de fugir. Gostaria, com todo o meu coração, que pudéssemos deixar este mundo para trás, nós levantássemos como dois anjos no meio da noite e, como num passe de mágica, desaparecêssemos".

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Decálogo do contista", em "Contos de amor, de loucura e de morte" (Horácio Quiroga)

I) Creia em um mestre - Poe, Maupassant, Kipling, Tchekhov - como em Deus.

II) Creia que sua arte é uma montanha inacessível. Não sonhe dominá-la. Quando isso for possível, você saberá.

III) Resista o quanto for possível à imitação, mas imite se a tentação for muito forte. Mais que qualquer outra coisa, o desenvolvimento da personalidade exige paciência.

IV) Tenha fé cega não na sua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que você deseja esse triunfo. Ame a sua arte como a sua mulher, dando-lhe seu coração.

V) Não comece a escrever sem saber aonde ir. Em um bom conto, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as três últimas.

VI) Se você quiser expressar com exatidão esse fato - "Um vento frio soprova do rio" - não há, na linguagem humana, palavras mais precisas que essas. Seja dono de suas palavras, sem se preocupar com suas dissonâncias.

VII) Não adjetive sem necessidade. Inúteis serão as camadas de cor adicionais a um substantivo fraco. Se você fizer o que for preciso, ele terá, por si só, um colorido incomparável. Mas você terá de ir buscar esse colorido.

VIII) Pegue seus personagens pela mão e conduza-os firmemente até o final, sem deixar que nada o desvie do caminho traçado. Não abuse do leitor. Um conto é um romance depurado de resíduos. Tenha isso como verdade absoluta, mesmo que não seja.

IX) Não escreva sob emoção. Deixe-a morrer, e depois a evoque. Se você for capaz de revivê-la, terá chegado à metade do caminho.

X) Ao escrever, não pense em seus amigos, nem nas reações deles à sua história. Pense como se o seu relato só interessasse aos seus personagens, e você fosse um deles. Não se dá vida a um conto a não ser dessa maneira.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

On n’est pas serieux quand on a dix-sept ans

I
On n'est pas sérieux, quand on a dix-sept ans.
- Un beau soir, foin des bocks et de la limonade,
Des cafés tapageurs aux lustres éclatants !
- On va sous les tilleuls verts de la promenade.
Les tilleuls sentent bon dans les bons soirs de juin !
L'air est parfois si doux, qu'on ferme la paupière ;
Le vent chargé de bruits - la ville n'est pas loin -
A des parfums de vigne et des parfums de bière....
II
- Voilà qu'on aperçoit un tout petit chiffon
D'azur sombre, encadré d'une petite branche,
Piqué d'une mauvaise étoile, qui se fond
Avec de doux frissons, petite et toute blanche...
Nuit de juin ! Dix-sept ans ! - On se laisse griser.
La sève est du champagne et vous monte à la tête...
On divague ; on se sent aux lèvres un baiser
Qui palpite là, comme une petite bête....
III
Le coeur fou Robinsonne à travers les romans,
Lorsque, dans la clarté d'un pâle réverbère,
Passe une demoiselle aux petits airs charmants,
Sous l'ombre du faux col effrayant de son père...
Et, comme elle vous trouve immensément naïf,
Tout en faisant trotter ses petites bottines,
Elle se tourne, alerte et d'un mouvement vif....
- Sur vos lèvres alors meurent les cavatines...
IV
Vous êtes amoureux. Loué jusqu'au mois d'août.
Vous êtes amoureux. - Vos sonnets La font rire.
Tous vos amis s'en vont, vous êtes mauvais goût.
- Puis l'adorée, un soir, a daigné vous écrire...!
- Ce soir-là,... - vous rentrez aux cafés éclatants,
Vous demandez des bocks ou de la limonade..
- On n'est pas sérieux, quand on a dix-sept ans
Et qu'on a des tilleuls verts sur la promenade.

(Arthur Rimbaud)

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A alma e as formas



Das vezes em que me desesperar:
Me pisar.
Eu poderia cair
Para assim levantar
Mas agora, prefiro me boicotar
Para assim viver
De pena do que não foi vivido

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

domingo, 13 de outubro de 2013

Sofra comigo em lições (33)


O futuro é agora



Caso, um dia, tenha achado que me perderia
Hoje, tenho certeza
Não me achei, nunca mais
Ando, sempre, a olhar em volta
E não me encontrar no tempo
Estou flutuando

Eu sou a frustração
Do não feito
Do não pensado
Do não quisto
Do não

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

O esboço de um nada

O que vai ser de mim, que não tenho chão, não tenho canudo, não tenho amor, não tenho destino, não tenho futuro, não tenho a vida, não tenho corpo, não tenho beleza, não tenho talento, não tenho sorte, não tenho crença, não tenho o olhar, não tenho viço, não tenho a família, não tenho horizonte, não tenho a razão?

O que vai ser de mim, que hoje sou apenas um esboço de nada?

O que vai ser de mim, que tenho apenas a depressão, apenas a comiseração, apenas a pena, apenas o horror, apenas o escuro, apenas o tapa na cara, apenas a rejeição, apenas o desamor, apenas o escárnio, apenas o desemprego, apenas o ensino superior incompleto, apenas obra nenhuma publicada, apenas um corpo a ser inutilizado, apenas o apenas?

domingo, 25 de agosto de 2013

Porquinho-da-Índia (Manuel Bandeira)

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.

Kids (1994) - Larry Clark

"Quando você é jovem, nada importa muito. Quando você encontra algo que você gosta, então isso é tudo o que você tem. Quando você vai dormir à noite, você sonha com buceta. Quando você acordo, é a mesma coisa. Está lá em seu rosto. Você não pode fugir dela. Às vezes, quando você é jovem, o úncio lugar para ir é no interior. É isso mesmo - porra, é o que eu amo. Tirar isso de mim, e eu realmente não terei nada".

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O dia amarelo claro



Hoje, o dia amanheceu com um amarelo mais claro, como se o sol estivesse cansado. As pessoas iam acordando devagar, olhando para o travesseiro mais que para o relógio, pensando: por que hoje eu preciso me levantar da cama?  Os passarinhos, de forma inédita, não piaram e nem voaram até as janelas das avozinhas, para comer a migalha do pão e tomar os mililitros de leite. O orvalho custou a secar, pesando as folhas até que elas murchassem. A vida das pessoas, naquela manhã, parecia não querer existir. O bairro estava se mumificando aos poucos, e ninguém saía para a rua, como se faz em dias de semana pela manhã. Não se estava pegando o ônibus para ir ao trabalho, os solteiros não estavam comendo pão com café nas padarias, os idosos não estavam fazendo a ginástica na praça, o jornaleiro não estava aberto, a mercearia tinha suas portas cerradas. O dia, que era dia, parecia noite. As pessoas, que dentro de casa acordaram, no interior das residências dormiram, como se as horas não tivessem passado e a rotina pulada. Esta era a sensação de se viver naquela alma do ser humano rejeitado. A vida, para ele, não era nada além que um cuspe na cara. Ele, ali, sozinho, deitado na cama, com os olhos semi-serrados, queria que toda a vizinhança estivesse que nem ele: prostrado. O que poderia fazer sentido em um dia que nasce com um sol amarelo claro? O chão de taco que ele pisava rangeria de modo mais agudo, a água que ele tomaria banho seria mais gelada, a pasta de dentes que ele usaria teria se petrificado, o pão que ele come já estaria mofado, o leite que ele toma já teria coalhado, o jornal que ele lê estaria molhado de chuva, os olhos que ele vê já estariam cegos, a janela pela qual ele se comunica com o mundo já estaria fechada, o amor que ele recebia já estaria finado, o que então ele poderia querer daquele dia, se nada para ele seria oferecido? 

Ele, esta noite, sonhara com sua cachorra. O animal dormia e ele, por um instante, pensara que havia morrido. No entanto, depois de um leve toque de mão nas costas do animal, ele se mexeu e então latiu e por isso estava vivo. De supetão, ele se alegrou e percebeu que a ressurreição era um mecanismo possível para proporcionar a alegria. O cão estava vivo de novo e ele estava aliviado. Chamou todas as pessoas da família para dizer: “Está viva!” Mas, sem saber o motivo, acordou do sonho.

“O dia poderia passar e eu ficar aqui, para sempre, nesta cama, até que outro dia surja, e eu permaneça aqui, nesta cama”, disse ele. Ao seu redor, o que havia? Uma porta de madeira com a maçaneta quebrada. Retratos da adolescência sobre a cama. Um armário onde já não cabiam mais roupas - tudo que dentro dele estava mofava. Uma escrivaninha abarrotada. Uma cadeira de balanço empoeirada. Um banheiro de água gelada. Um lustre preto. Ao seu redor, o que havia? As coisas inanimadas, que não saíam do lugar, que passaram os anos ali, paradas, caso ninguém as mudasse de posição. Ele ficaria no mesmo lugar, caso ninguém o mudasse de posição? 

“Hoje, eu preciso me levantar”, disse ele. Tirou a cabeça de dentro do cobertor e olhou para o teto do quarto, que estava com uma infiltração. A água gotejando, paulatinamente, sobre o balde posicionado no seu lado direito. Ploft, ploft, ploft, fazia a água sobre o balde. Ele, ploft, ploft, ploft, fazia sua memória sobre sua cabeça. “Agora: um, dois, três”. Não levantou. “Ainda posso ficar mais alguns minutos”. O relógio tocou seis e quinze, depois seis e meia, depois sete, em seguida dez e, quando ele se deu conta, era meio dia. “Ninguém veio me chamar”. Todos de casa teriam saído para trabalhar? Mas o dia estava amarelo claro, não tem sentido ir fazer nada na rua em dias amarelo claro. Qual o objetivo daquele minuto? Levantar-se, ir até o banheiro, lavar o rosto, fazer xixi, sair do quarto, encarar o desprazer. 

No corredor estreito que ligava seu quarto à escada, encontrou seu pai, de pé. O pai, modorrento, olhou o rapaz, que saía de seu aposento, apenas com a roupa do corpo e sem nada no coração. Ao ver a vida ali, naquele beuzebú mirim, desperdiçada, pensou: “Deus Pai, por que fazes isso com um filho teu?” O filho, arrastando os pés, como se estivesse preso a algemas, caminhou, de cabeça baixa, em direção ao pai. Envergonhado de saber que o homem o fitava, o jovem natimorto soltou um grunhido, que lhe pareceu algo do tipo: “Sai da frente, por favor, que eu preciso descer as escadas”. O pai, então, olhando, ainda com pena, deu um passo para o lado. O passante agradeceu com a cabeça, sem sorrir, e com as mãos apoiadas na parede, prosseguiu. Ele olhava a parede branca e queria que ela fosse verde, porque branca não poderia ser. Olhou para baixo e quis que o chão de taco fosse de piso, porque de taco não poderia ser. Olhou para trás e desejou amar mais o pai, porque pouco amor não poderia ser.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Carta para longe - Florbela Espanca

O tempo vai um encanto,
A Primavera ’stá linda,
Voltaram as andorinhas…
E tu não voltaste ainda!…

Porque me fazes sofrer?
Porque te demoras tanto?
A Primavera ’stá linda…
O tempo vai um encanto…

Tu não sabes, meu amor,
Que, quem ’spera, desespera?
O tempo está um encanto…
E, vai linda a Primavera…

Há imensas andorinhas;
Cobrem a terra e o céu!
Elas voltaram aos ninhos…
Volta também para o teu!…

Adeus. Saudades do sol,
Da madressilva e da hera;
Respeitosos cumprimentos
Do tempo e da Primavera.

Mil beijos da tua q’rida,
Que é tua por toda a vida.

Vermelho amargo

"agora - mas desde sempre - não moro bem dentro do meu corpo. não sou o do espelho. sou sempre um outro morando em mim. certa estranheza me incomoda. ignoro a fronteira entre a lucidez e a loucura. o desconforto solicita-me liquidar o imóvel. é preciso muito bem esquecer para experimentar a alegria de novamente lembrar-se" (trecho da peça "vermelho amargo", de bartolomeu campos de queirós)
 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

quinta-feira, 6 de junho de 2013

quarta-feira, 29 de maio de 2013

nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim

"vivo sempre no presente. o futuro, não o conheço. o passado, já o não tenho. pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. não tenho esperanças nem saudades. conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. o meu passado é tudo quanto não consegui ser. nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto". (fernando pessoa - livro do desassossego)

segunda-feira, 4 de março de 2013

As pontes que se renovam é um Titanic que se afunda

Sempre ouvi falar muito do filme "Os amantes da Pont-Neuf". Sabia quem era a atriz Juliette Binoche por meio dele. Eu entendi que o filme era de amor mais pelo título que entregava do que por alguma resenha, texto que houvesse lido sobre ele. Sendo assim, era apenas um conhecedor passivo e muito tímido das qualidades tanto do filme, como da atriz e de seu surpreendente companheiro de cena, o mendigo apaixonado. Foi, então, com grande surpresa, que cheguei a uma sessão do Cinerama e descobri que, finalmente, poderia dizer que conheci o que significava o amor neurótico daqueles dois numa ponte que está em reforma.
  
Em uma análise menos sentimetal - consigo? - e mais acadêmica, não posso deixar de lado as metáforas que a obra conseguiu me passar. Aquele mulher quer deixar toda uma vida para trás e em sua cegueira progressiva é como se ela estivesse por enxergar toda uma realidade diferente. O rapaz em sua condição de homem apaixonado tentando de todas as formas prender sua amante e não deixá-la ir embora, quando e se voltasse a enxergar. É como se víssemos literalmente os perigos da ficar cego por amor. Doentiamente, ela se afasta da vida que teve. Ele, doentiamente, quer prender esta nova paixão na vida que pretender continuar tendo, mendigando na ponte.
  
O que é uma ponte? Algo que liga um ponto fixo a outro ponto fixo, de forma aparentemente segura, sobre uma superfície perigosa. O que é uma reforma? O que significa reformar a ponte mais antiga de Paris, que atravessa o rio Sena? Reformar seria reorganizar, voltar à beleza do período de criação, tirar o que está danificando as estruturas e por tudo em seu devido lugar. É neste contexto que podemos transferir todos esses conceitos para a lógica do romance dos protagonistas. O que nos leva a querer cometer suicídio, como a protagonista, e decidir abdicar de uma vida passada para viver em estado de mendicância? Apenas uma reforma. O que nos leva a quer permanecer em uma condição insalubre, como o protagonista? Ele se reformou, no entanto. Ele se reformou por meio do amor pela mulher.
  
A grande transformação do filme se dá quando eles caem da ponte. É quando eles saem do suporte fixo, que já era meio vacilante, que o conflito maior se dá e eles finalizam o filme em união. Mas uma união que não sabemos quanto tempo irá durar. Em suas vidas instáveis, a estabilidade de um sentimento amoroso não teria lugar. Eles terminam o filme abraçados na ponta do navio, igual aquela cena que conhecemos tanto do "Titanic". A questão é que Titanics afundam, depois de sofrerem um impacto muito grande. Nós também. Depois de sofrermos um impacto muito grande, como eles, nós afundamos. Ela sofreu um impacto muito grande parar ir ser mendiga na Pont-Neuf. Ele sofreu um impacto muito grande para ir ser mendigo na Pont-Neuf.
  
É como diz Clarice Lispector, única referência bibilográfica deste texto. Em entrevista à TV Cultura, em 1977 (ela morreu meses depois), ela disse algo verdadeiro. Entrevistador: "A partir de que momento, de acordo com a escritora, o ser humano vai se transformando em triste e solitário?" Clarice: "Isso é segredo. Desculpe, não vou responder. (...) A qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado e isso acontece. Mas eu não sou solitária não, tenho muitos amigos. E eu só estou triste hoje porque estou cansada, porque em geral eu sou alegre."

O que é a crise?

Hoje, estou em crise. Tenho medo de ser engolido por meu medo de ser engolido. Espero que chova sete dias e sete noites para que esta lixeira seja esvaziada. Eu poderia jogar minha mochila pela janela de dentro de um ônibus em movimento; em um carro, gostaria que ele se chocasse em um muro; como seria ficar perto de uma sacada do décimo andar e me jogar de lá de cima? Morrer já estando morto. Se eu procurar na folhinha do plano de saúde, posso encontrar um bom analista. Ele resolveria meus problemas ou apenas meus problemas seriam potencializados. Eu diria apenas: "Sou uma prostituta do mundo e estou doente de seus homens". Diante de um espelho, olho-me, mas não é meu rosto que eu vejo. Fico diante do meu sexo, podre e vil, atordoado e esquizofrênio. Estar diante do incompreensível, da mão penosa de Deus. Hoje, estou em crise. O que significa a crise? A crise é quando seus olhos ficam mais de um terço do dia semicerrados.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Os ombros suportam o mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


(Carlos Drummond de Andrade)

sábado, 19 de janeiro de 2013

"A mão suja"

Minha mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não adianta lavar.
A água está podre.
Nem ensaboar.
O sabão é ruim.
A mão está suja,
suja há muitos anos.

A princípio oculta
no bolso da calça,
quem o saberia?
Gente me chamava
na ponta do gesto.
Eu seguia, duro.
A mão escondida
no corpo espalhava
seu escuro rastro.
E vi que era igual
usá-la ou guardá-la.
O nojo era um só.

Ai, quantas noites
no fundo da casa
lavei essa mão,
poli-a, escovei-a.
Cristal ou diamante,
por maior contraste,
quisera torná-la,
ou mesmo, por fim,
uma simples mão branca,
mão limpa de homem,
que se pode pegar
e levar à boca
ou prender à nossa
num desses momentos
em que dois se confessam
sem dizer palavra...
A mão incurável
abre dedos sujos.

E era um sujo vil,
não sujo de terra,
sujo de carvão,
casca de ferida,
suor na camisa
de quem trabalhou.
Era um triste sujo
feito de doença
e de mortal desgosto
na pele enfarada.
Não era sujo preto
– o preto tão puro
numa coisa branca.
Era sujo pardo,
pardo, tardo, cardo.

Inútil, reter
a ignóbil mão suja
posta sobre a mesa.
Depressa, cortá-la,
fazê-la em pedaços
e jogá-la ao mar!

Com o tempo, a esperança
e seus maquinismos,
outra mão virá
pura – transparente –
colar-se a meu braço.
(Carlos Drummond de Andrade)