sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Por um socialismo do voto – e não mais uma ditadura, como tantas outras


Quinta, 27 de agosto de 2015, foi um dia legal, em que estive com minha bunda sentada de 13h às 19h na Concha Acústica da Uerj, aguardando a chegada do ex-presidente uruguaio Pepe Mujica. Diante de esforço tão hercúleo (mas muito pequeno em face à África de Sofrimentos do mundo), sinto-me na obrigação de escrever algumas coisas sobre minhas impressões do acontecimento. Em primeiro lugar: ele é mais alto do que imaginei, ainda que tão gordo como pensei.

Quando Pepe adentrou o recinto - com o anfiteatro, as sacadas da Uerj, o corredor que ligava o prédio à concha e o estacionamento lotados pelo público – sentou-se à mesa junto de dois homens e duas mulheres. O homem e a mulher mais velhos fizeram as apresentações de Mujica e do evento, enquanto a moça mais nova fazia a tradução do português para o espanhol das perguntas feitas pela plateia ao atual senador uruguaio. Mas ainda falta um homem nesta conta. Ele era um jovem – que as pessoas sentadas ao meu lado diziam conhecer e chamavam, se não me engano, de Fábio – e ele, na primeira meia hora ou quarenta minutos de fala de Mujica, fazia apenas uma coisa: chorava. Eu nunca vi alguém chorar tanto em uma palestra. O garoto soluçava e colocava a mão no rosto e assuava o nariz e abaixava a cabeça e diante de mais de 6 mil pessoas apenas chorava de emoção diante da fala de um homem. O rapaz que chora, na mesa, não disse nada, não traduziu nada, não fez nenhuma pergunta, mas apenas chorou diante de um discurso e fez uma vez um coraçãozinho para os amigos que sentados ao meu lado se emocionavam junto da emoção do rapaz.

Aos gritos de “Fora Cunha”, “Não vai ter golpe”, “América Latina Socialista”, “Quem não pula é tucano”, “Paguem os terceirizados”, “Legalize já” etc., o público assistia a tudo embasbacado e eufórico, a ponto de uma menina parar a fala de Mujica para dizer, constrangida: “Pepe, casa comigo”. No que ele respondeu que seu coração era há quarenta anos comprometido. A plateia já estava programada para se entusiasmar, sejamos honestos. Eles mal sabiam o que Pepe iria falar adiante, mas já aplaudiam e gritavam entusiasmados. Acredito também que foi uma surpresa para muitos quando ele começou a falar em espanhol, pois estes não estavam entendendo muito bem o que ele dizia. Guardadas as devidas – devidíssimas – proporções, um pop-star da América Latina, um Justin Bieber sul-americano.

Quando Freud escreveu “Psicologia do eu e análise das massas”, ele com certeza focava o comportamento do homem em grandes shows e eventos massivos do século XXI. Guerras nesta análise é pinto. Já estava há cinco horas sentado aguardando Mujica, quando precisei desesperadamente ir ao banheiro, que era na minha extrema direita. Eu teria que passar por pessoas e mochilas que ocupavam o corredor entre o banheiro e a arquibancada. Ir consegui, mas na volta, uma menina que estava no corredor e com sua mochila no chão, me gritou: “Você não vai passar”. Mas não era um, “acho que vai ser muito complicado você passar pela quantidade de pessoas aqui”, mas sim um categórico “você não vai passar porque eu estou aqui em pé e não sairei do lugar”. Foi então que eu precisei pular pela cabeça das pessoas e, de cadeira em cadeira, ir pelo alto até meu assento.

É interessante reparar também como os caras que estavam ao meu redor gritavam desesperadamente “Fidel” e “Stalin”. Quando perguntaram para o Mujica quais seus líderes intelectuais, um deles disse: “Se ele disser Stálin vai ser foda”. Aí me vieram muitas questões. Será que essas pessoas não se dão conta de que hoje vivemos em um país onde – mal e porcamente – conseguimos ter o direito ao voto e que uma sociedade igualitária não é sinônimo de partido único, vida sem eleições e repressão das individualidades? No que diz respeito aos homossexuais, a partir dos anos 1930 Stalin deportou milhares e Fidel mesmo criou os campos de trabalho onde jogou muitos deles. Isso para tentar ser breve, mas parece-me que muitos ditos comunistas hoje vivem mais de uma imagem que se construiu sobre alguns líderes do que em cima da realidade. Fidel e Stalin, para mim, não podem vir ao lado de Mujica, pois Mujica não está implicado em tudo o que os outros dois estiveram. Socialismo sim, tudo bem, mas um socialismo do século XXI, democrático – eleito pelo voto, pela justiça e pela luta – e não um socialismo que recai em uma ditadura, como tantas ditaduras de direta que o mundo conhece e que igualmente perseguiram e mataram seus cidadãos, sejam homossexuais ou de outras minorias. Com isso, não quero dizer que o mundo capitalista é bonito, pois não é: em Nova York, até 1969, era proibido vender álcool para gays; na Alemanha, o parágrafo 175, do século 19, que condenava a homossexualidade, só foi revogado totalmente em 1994 com a reunificação; na Espanha, os direitos gays só tiveram início praticamente com a morte de Franco, em 1975. A democracia é uma armadilha, tudo bem: Hitler foi eleito nos anos 1930 pelo voto. Mas a democracia está acima de capitalismo ou socialismo: a democracia é a democracia e deve-se como premissa o voto do povo, pelo povo e para o povo.

Por fim, gostaria de dizer que Mujica só recebeu uma pergunta sobre legalização das drogas; todas as outras se referiam ao comércio entre os países da América, às tentativas de golpe na América Latina, à redução da maioridade penal e às inspirações intelectuais do líder. Além disso, a maior parte dos gritos da plateia se referia à situação política no país hoje e não às drogas. No entanto, vejo em “O Globo” todas as linhas sobre o tema sendo ocupadas para afirmar que o encontro de Mujica foi para a discussão da legalização/regulação das drogas. Façam-me o favor. É reduzir diante das conveniências o debate.

O Uruguai é, de fato, um exemplo. Segundo Mujica: no começo do século XX, a bebida era produzida pelo Estado (diferente da proibição total do álcool pelos EUA); desde 1914, a prostituição é legal; já nos anos 1930 as mulheres podiam votar; elas também ganharam uma universidade exclusiva diante de uma sociedade machista que não queria que elas se instruíssem; em 1907, pasmem, o divórcio foi aprovado. Mujica lutou contra a ditadura e foi eleito presidente por meio do voto e mantém-se na política de seu país por meio do voto. Por um socialismo (e capitalismo) do voto (do povo, pelo povo e para o povo, pois apenas o povo é soberano e ninguém além) para o mundo. Se o povo elegeu, o eleito governou (viva Dilma). Fim.