segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Felicidade faz toc toc na minha porta


Eu passei na UFRJ. Minha vida está, finalmente, andando.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Merda


Essa semana, estava dentro do ônibus 636, indo para Cascadura, quando teve início um tiroteio. Jogar-se no chão foi necessário e pedir para não morrer foi quase uma obrigação.


Essa semana, um conhecido meu teve seu celular roubado na Lapa.


Essa semana, uma amiga minha quase foi assaltada em um ponto de ônibus de Copacabana.


Essa semana, um tiroteio entre traficantes do Morro dos Macacos e São João matou 3 pessoas.


Essa semana, um prédio no Méier foi assaltado e 7 pessoas feitas reféns.


Que merda, não?!

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Para os xuxus (sim, pois os meus 'xuxus' são com x)


Sabe quando você sente que, realmente, há um horizonte?
Sabe quando você sente que, realmente, as coisas podem dar certo?
Dê uma chance a si mesmo.
Dê uma chance ao outro.
Sejam felizes, xuxus do meu Brasil.
Músida de hoje, de ontem e de sempre: http://br.youtube.com/watch?v=YApNirMC9gM&eurl=http://www.orkut.com.br/FavoriteVideos.aspx?rl=ls&uid=12643344621791438254 (Etta James - I'd rather go blind) Tira este funk que não te pertence, homem! Vá escutar um blues, jazz e o raio que o parta!
Livro de hoje, de ontem e de sempre: "Crime e castigo", de Fiódor Dostoiévski (Isso daqui é para depois você se dar conta que aquela merda que você achava que era literatura - leias-se Paulo Coelho - não é absolutamente nada)

domingo, 11 de janeiro de 2009

As veias carcomidas de uma vida bandida - VI) O oprimido


Já era noite alta e Vokinhlóksar decidiu retirar-se de seu quarto e caminhar em direção ao Nada. Não possuía objetivo definido em sua mente naquele momento, apenas querendo sair daquela situação repressora e opulenta que ele tanto menosprezava. O local em que residia era fétido, pequeno e de paredes cheias de infiltrações. Vivia lá por causa dos estudos. Como era da região de Trás os Montes e lá não havia uma universidade ao alcance da intelectualidade de Vokinhlóksar, obrigado foi a se mudar para a região de Trafalgar, distante uns quinhentos quilômetros de sua cidade natal. Não possuía familiares fora de seu condado, então teve que sentar na calçada mais próxima do Porto de La Basura, estender suas mãos largas e calejadas, para conseguir obter alguns trocados que lhe permitissem alugar um buraco em qualquer pocilga que fosse não tão distante da Universidade de Estudos Antropológicos Internacionais. O jovem lá já morava há nove meses.
Ao virar a primeira rua à direita, encontrou um professor seu de História Contemporânea, chamado Senhor Doutor Fulaninho Castro de Alda. Vokinhlóksar repugnava a si mesmo quando esbarrava em alguém, quem quer que fosse, durante sua caminhada ao Nada, todas as noites. Isso acontecia, pois trazia para ele a incapacidade de andar por vias menos movimentadas e repetia: “Seu traste. Até para isso tu não serves? Meu inconsciente não quer falar com ninguém e minhas pernas não decodificam tal informação? Morra, peste!”. Sendo assim, fingiu que olhava para a calçada, para não ter que movimentar seus lábios e interpretar uma educação que, no momento, era inexistente. Quanto mais se aproximava do homem de meia-idade, mais seus membros corriam. Depois de ter saído do raio de alcance do professor, ele pensou ter escutado algum grunhido vindo por parte dele, mas não deu ouvidos para tais alucinações. Como um homem que ministrava aulas para mais de cento e cinqüenta alunos por semana se lembraria da existência de uma pessoa tão insignificante, diminuta, aleatória e que não fazia algo de produtivo para ninguém? “Ufa, tudo passou. Agora posso continuar só.”
Ao ir para o Nada, desejava retirar de seu coração o vazio que o assolava. O grande e aterrador vazio que amedronta as mentes e os corações dos homens mundanos. Pensava em fazer outra coisa além de ir para o Nada, mas diante de tal nervosismo da caminhada e do encontro de supetão com pessoa que poderia lhe falar, foi incapaz de raciocinar e lembrar-se de outra coisa para fazer. Começou a esfriar e Vokinhlóksar maldisse o dia em que saiu de sua casa para ir para tão longe. Arrependeu-se de ter abandonado mãe, pai, irmãos, cachorros e galinhas para aventurar-se no mundo do pensamento, dos questionamentos, da produção literária, das amizades curtas e das que duram. Por que tanto sacrifício, se no fim acabaria como agora, caminhando para o Nada? Enquanto caminhava, pensava apenas que deveria ter posto um casaco por sobre as costas. Tinha medo de ter um ataque epilético antes de chegar ao destino tão desejado. Era dessas coisas. Os ataques. O primeiro se fez presente em uma apresentação musical de um grupo vindo de tão, tão distante. Como havia muita gente grudada, Vokinhlóksar sentiu-se sufocado, sua claustrofobia manifestou-se em seus piores níveis e desejou que, se não conseguisse sair fisicamente da multidão ensandecida e suarenta, que pelo menos sua alma ascendesse aos céus, para ir de encontro a algum palácio metafísico.
Percebeu que ao longo da grande avenida, que se iniciava, não havia muitas pessoas, o que o felicitou grandemente. Primeiro obstáculo resolvido. Matutou em sua cabeça se haveria de ter esquecido a porta de seu cubículo destrancada. Poderiam roubar-lhe algo. Mas não. O que haveriam de retirar dele? Meia dúzia de papéis em que se discutiam as filosofias de Platão e Freud. Um ladrão, nem por mais perspicaz que fosse, jamais perderia seu tempo em furtar pertences de um homem que não dá ao respeito nem a si próprio. Reteve-se no meio da Avenida dos Santos Anjos e refletiu acerca de uma coisa. O si, o ele mesmo. Por que era uma pessoa que pensava tanto em si mesma, em si própria? As crianças que sofrem de falta de alimento e falta de atenção hospitalar não mereceriam alguma reflexão? Os flagelados da guerra entre Rússia e Geórgia não pediriam alguns segundos de atenção? Seus vizinhos, a família Vozamarak, que era atingida constantemente por tantos problemas, não almejava nem sequer uma visita de rapaz tão estimado por eles, o “pequeno Senhor Vok”, como sempre ressaltava a matriarca dos Vozamarak, em alusão a Vokinhlóksar. “Ah, bobagens e mais bobagens!”, o subconsciente gritou para o consciente de Vokinhlóksar Petri.
Cansou-se de andar sempre em linha reta e virou à esquerda. Logo em seguida, passou diante de uma banca de jornal. Por aquela região, os jornaleiros vendiam jornais e revistas dos mais diversos assuntos e das mais diversas localidades, sendo que a banca de jornal pela qual Vokinhlóksar acabara de passar possuía uma novidade: vendia, à mostra em plena calçada suja e desnivelada, livros. Diante de tal fato, ele congelou. Que homem de boa índole, haveria pensado, se antes não houvesse posto os olhos em um livro cujo título se lia “Mrs. Dalloway”. Quase que instantaneamente, voltou aos tempos infantis, quando foi com sua mãe e seu pai à Bienal do Livro. Uma lágrima saiu de seu olho direito, solitária. Mas logo depois seu olho esquerdo, muito solidário, projetou outra lágrima, fazendo com que as duas se encontrassem na ponta do nariz torto. Limpou o choro e retornou para o antes. Em tal Bienal, que naquele ano de 1753 acontecia na cidade de Trás os Montes, sua cidade querida, comprou um livro não muito fino nem muito grosso, com uma capa sem muitas cores contrastantes, em que se via apenas uma rosa bem rosada, diante de um fundo branco bem branco. O maior orgulho não era nem pelo livro em si, no fundo, e sim pelo preço com que conseguira obter tal mercadoria. Apenas dez contos. Quando Vokinhlóksar conseguia comprar livros e outros utilitários culturais e engrandecedores de espírito por preços tão em conta, era como se tivesse encontrado sem muitas dificuldades o caminha do Paraíso. Quando chegou à fazenda em que moravam, depois de muito tempo vislumbrando um arsenal literário, pôs um Virginia Woolf legítimo na estante reservada para os grandes clássicos. Em conseqüência de ainda estar lendo outro livro, conversou com Mrs. Dalloway: “Senhora, pode esperar algumas semanas? Juro que quando terminar com o Senhor Casmurro venho correndo para a senhora.” Mas isso nunca ocorreu de fato. A senhora foi perdida. A empregada que cuidava da limpeza da fazenda a deve ter levado para passeios em outras pradarias. Vokinhlóksar nada pôde fazer. Nem demitir a maléfica foi capaz. Sua mãe não acreditou na estória. Então, para acalentar a dor, vestiu-se de luto por uma semana completa, escreveu em uma papel os dizeres: “Mrs. Dalloway, Virginia Woolf, descansem em paz”, colocou-o em uma caixinha de vidro e foi em direção ao rio que havia se formado próximo de onde moravam. Pôs, com toda sutileza que fora capaz de empregar no material, o caixão fúnebre em águas. Ele foi-se caminhando em sua total plenitude. Virginia Woolf fora jogada por ele no rio e nunca mais fez o caminho de volta para ele. As duas senhoras foram definitivamente mortas. Como a uma santa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a caixa e as duas senhoras que dentro dela foram sepultadas, encontraram seu acalento dentro do líquido transparente e cheio de vida dentro. Diante da banca de jornal, naquela rua sem saída que tinha entrado, passou a acreditar na ressurreição e, por conseguinte, em Jesus Cristo. Isso pois, se até o livro havia ressuscitado, porque Jesus também não seria capaz de igual performance? Sua amada nunca lida havia voltado para ele. Tudo fazia um pouco mais de sentido no vazio existencial em que se perdia cotidianamente. Ajoelhou-se, encostou as mãos, que outrora pedira esmola e que agora apalpava ouro, no livro. Leu as letras que juntas formavam a frase, que juntas formavam o parágrafo, que juntos formavam o texto e que juntos formavam o livro, com tanta intensidade como a um garoto que perdia a virgindade com o mais belo semblante das redondezas. O mundo, naquela hora, o pertencia. Tudo era dele. O conhecimento era dele. Sua vida, que por anos acreditou que não possuía controle, passou a ser controlada por ele. A saliva escorria por seus lábios, como se houvesse a carne mais apetitosa diante de seus olhos castanhos escuros. Teve ali a exata dimensão do prazer que a leitura o proporcionava. “Através da percepção e da notação do que se passa em torno e dentro da personagem central – Clarissa Dalloway -, Virginia Woolf apresenta a história de uma crise.” Igual, idêntico. Assim mesmo leu há tantos anos atrás. Sublime. Por já ser hora avançada e o frio extremo, o senhor que cuidava da propriedade encontrava-se bem dentro dela e Vokinhlóksar não quis perder aquela oportunidade. Seus bolsos estavam inóspitos. Dinheiro era inexistente para efetuar a compra. Sentou-se ao chão e rasgou o plástico que envolvia de forma tão apertada a obra. Comeu o livro com seu próprio furor. Encontrou seus dilemas, mas caminhar para o Nada ainda se fazia necessário e essencial.
Depois de ter se fartado com o banquete, Vokinhlóksar precisou pensar no que era para ser feito. Manter o livro na prateleira em que anteriormente se encontrava, mesmo aberto, para que outras pessoas pudessem ter a oportunidade que ele teve de aumentar seu alto-conhecimento, ou levá-lo consigo, para assim poder desfrutar da felicidade eterna. Necessitou ficar parado, diante de um emaranhado de livros postos em ordem alfabética, contemplando-os, durante alguns longos instantes, para se ter certeza do que deveria ser realizado. Logo depois de se ver iniciada a grande questão, a cabeça de Vokinhlóksar começou a latejar de forma muito inapropriada. Seus ouvidos, tanto um quanto o outro, passaram a escutar algo. De início, quase nada, de tão baixo que se falava. Depois, gradativamente, o homem começou a entender o que estava sendo expresso dentro de sua mente. Percebeu que havia não apenas um monólogo em sua cabeça, mas sim um diálogo. Apesar de tudo, o próprio Vokinhlóksar Petri não era nem sequer o mediador do impasse. Não participava de absolutamente nada do que se passava. Estava ficando cada vez mais irritado.
O Vermelho disse para o Branco que já era hora de pararem de conversar apenas entre eles e colocar o hospedeiro no falatório. “Oh, Senhor Petri! Por favor, ajudai-nos!” Vokinhlóksar deu uma volta de trezentos e sessenta graus para tentar encontrar quem pedia ajuda. Não viu ninguém na rua em que se encontrava. Nem nela, nem em suas adjacências. O jornaleiro passara a dormir um sono profundo e, de tão denso, praticamente mortal. A rua, que sem saída fora feita, tinha mais ninguém além dele e o jornaleiro dorminhoco. Chegou a caminhar para olhar a Avenida dos Santos Anjos, de onde saíra, para entrar na rua em que estava agora, tentando ver algum ser humano suplicante. Ninguém. Vazio. Ausência completa. Voltou para onde estava, diante da banca de jornal, revistas e livros. Olhou para dentro dela e não viu o velhote que lá dentro desfalecia. Ficou, por frações de minutos, com medo. Mas tal sensação era reservada para os que não tinham medo de certas coisas. Pois, apenas os que não possuem temor de algo, podem saber o que é ter medo de outro algo, ao passo que seria uma sensação contrastante a outra. Tal é a dicotomia da vida. Por Vokinhlóksar só conhecer a sensação do temor – que, para ele, não possuía esse nome, ou sequer possuía nome –, ela era a reinante sempre, sem nunca tê-lo abandonado. Quando ia se encaminhando para o muro que encerrava a rua, o Branco gritou para Vokinhlóksar: “Pare! Somos nós! Seu subconsciente!” Obedeceu, fitou os tijolos velhos que formavam o muro e tentou enxergar seu cérebro. Ainda que não conseguisse de fato olhá-lo, pelo menos o escutaria melhor. Os três, juntos, formularam a tese da leitura do livro. Assim dizia o manifesto que o Vermelho e o Branco mandaram que Vokinhlóksar escrevesse:
“Um livro deve existir única e exclusivamente para perpetuar, difundir, disseminar uma ideologia. Jamais alguém pode partir do princípio do lucro para se iniciar uma abordagem contista de uma estória. Se assim o fizer, o âmago do livro perde seu valor, seu sentido, seu poder. Quando se preza pelo dinheiro, a forma entra em evidente decadência. Acaba-se o teor de experimento que se propõe a literatura como arte. A literatura entra no caráter comercial, mercantil, fabril. As editoras até encontram um acalento nesse quesito, sendo felizes com a resolução da ‘literatura comercial’, mas apenas em curto prazo isso se mostra palatável. Porque, se se pensar em um período mais longo, apenas os livros não comercias encontram a divindade.”
Deu o ponto final, foi em direção ao único estabelecimento da rua, colocou o papel com o “Manifesto da Literatura” em cima do balcão e desejou que alguém algum dia pudesse passar por ali e ler o que estava escrito em tão mal traçadas linhas. Realmente, cem anos depois, alguém passou por ali. Era um menino de dez anos de idade, que acabara de sair da escola. Encontrou um papel amarelado dentro de um quadrado de alumínio que havia pegado fogo alguns anos antes. Leu com certa dificuldade, pois aquela ortografia já não se mostrava mais vigente. Mas ainda conseguiu ler, ao passo que a língua ainda permanecia a portuguesa. Não concordou muito com o que ali estava escrito.
Ao sair da rua sem saída, Vokinhlóksar retornou a grande avenida que aparentemente não tinha fim. Precisava, ainda, chegar ao Nada. A avenida mudava de nome a cada cinco quarteirões. Vokinhlóksar lera dez nomes diferentes. Avenida dos Santos Anjos, Avenida Maria Evangelina, Avenida Ernesto Fidel, Avenida George Barack, Avenida Aretha Winehouse, Avenida Amy Franklin, Avenida Carlos Costa, Avenida García Borges Lorca, Avenida Direita e Avenida Brasileira.
Gritou. Jogou-se no chão e chorou como a um bebê faminto e sedento por leite materno. Não compreendia o que poderia estar acontecendo com ele. Passou a sentir falta de seu quarto quadrado, pequeno e opressor. Lá, pelo menos, estaria a salvo e com calefação eficiente. Maldisse o dia em que sua mãe pensou em ter um rebento. Qual o motivo para querer colocar no mundo uma pessoa que correria sérios riscos de ser que nem ele? Era triste pensar em como sua vida era limitada. Nunca alguém lhe disse que o amava, nem seus pais. Segundo eles, o filho era causador de grandes problemas e dizer “nós o amamos” seria algo como um consentimento das atrocidades cometidas por ele. Vokinhlóksar não entendia muito perfeitamente quais as acusações concretas que pendiam contra ele. Viveu sua vida da mesma forma. Sairia de casa muito cedo, aos dezessete anos. Estudar poderia ser uma solução para sua angústia interna.
O céu passou a ficar mais denso, com nuvens chegando carregadas de cidades vizinhas. Sem pedir licença, uma melodia foi ouvida pelo coitado estendido no chão a chorar. Definitivamente, estaria iniciando um processo de loucura sem remédios. Correu. Desesperadamente, quis sair de onde estava. Uma tentativa de preservar a suposta sanidade que ainda gostaria de deixar com ele. De olhos fechados, tentando conversar novamente com o Vermelho e o Branco, pensou em acabar com toda aquela situação. Não! Quis ser mais forte! O Nada ainda não se fazia presente.
Quanto mais se desesperava, mais a melodia se tornava clara em sua mente. A música se fazia entendível e a sandice caminhava para fora do corpo de Vokinhlóksar. Cambaleava delirante, mas determinado. O Nada não deveria estar longe. Tinha que chegar. “Tenho que chegar.”
Não havia mais rua. Não havia mais cidade. Não havia mais chão. Não havia mais jornaleiro. Não havia mais quarto. Não havia mais nada por ali. Apenas um grande breu se fazia presente diante dele. Finalmente! Que alívio. Deus, se existisse, teve piedade dele. Não agüentava mais ficar caminhando de forma desmedida e desenfreada. Chorou agora de alegria, não mais de tristeza. Tudo se fizera findo. As coisas passadas não tinham mais importância, as do presente estavam acontecendo ali e as do futuro não poderiam mais acontecer, porque o homem estava diante do Nada.
Abriu um sorriso na cara, pensou em como era lindo. O homem mais lindo do mundo. A pessoa mais feliz do mundo... Claro que se fosse antes, ele não estaria fazendo tais afirmações. Mas como estava diante do Nada, tudo era permitido e, como já dito, o passado não tinha mais importância. O mundo sempre o havia oprimido, sendo que agora o horizonte o enchia de esperanças. Colocou a mão em seu bolso direito e, surpreendentemente, encontrou algo volumoso nele. Retirou-o de lá e notou que era uma garrafa cheia de Vodka. Não sabia como aquilo havia parada ali, mas foda-se. Chegar ao Nada bêbado seria mais fácil. Agradeceu a quem poderia ter posto aquilo ali.
Voltar não voltaria. Seguir em frente era o que queria. “Vou ao teu encontro, Mrs. Dalloway. Vou ao teu abraço, Mrs. Woolf.” Entornou dentro do fígado toda aquela quantidade de bebida alcoólica. Queria cantar, como nunca o havia permitido. Sempre acreditou que quem cantasse, seus males espantasse. Mas os vizinhos e os parentes não compartilhavam do mesmo ditado popular. Gritavam com ele: “Pare, matraca!”
Embriagado já estava.
“If I was young, I’d flee this town. I’d bury my dreams underground. As did I, we drink to die, we drink tonight!”
Assim, bêbado e cantando, como sempre quis e nunca o deixaram, voou ao Nada, de encontro com Virginia Woolf, Mrs. Dalloway e Elefant Gun.
Saltou do precipício. Não caiu. Voou. Flutuou em direção ao Paraíso dos Oprimidos. Lá, de onde as pessoas vieram do pó, do pó passaram e ao pó retornaram. Se algum dia o quisessem retirar do Paraíso, simplesmente diria: “Se vocês querem me mandar para a reabilitação, eu digo não, não, não!”

As veias carcomidas de uma vida bandida - V) Deus e o esquizofrênico


Estava de pés, diante da grande janela que abria seu quarto de dormir para o mundo. Naquele dia, acordara com um certo temor, estranho para sua pessoa, mas já conhecido através da literatura de Dostoiévski. Tinha anseios que faziam-lhe o coração palpitar de maneira extremamente acelerada e descompassada. Pensou em fechar a janela e deitar-se por mais alguns instantes, porém refutou a idéia, ao passo que sua coluna vertebral doía demasiadamente, em conseqüência de uma lordose obtida na infância distante e poeril. Estar como estava seria o melhor a ser feito, pensou. Logo desceria os degraus que separavam os andares da grande residência e tomaria um farto café da manhã. Infelizmente, o comeria só. Não se lembrava bem o porquê de estar ali, sem ninguém, em uma casa tão grande. A esquizofrenia afetava de modo permanente seu cérebro e impedia que possuísse raciocínios muito longos e complexos. Parou. Olhou para trás e vislumbrou o ódio que minutos antes havia sentido. Queria sofrer. Queria matar. Queria retirar de seu interior aquela angústia que o assolava e o imobilizava. Fez questão de retirar-se do quarto e encaminhar-se para o lavatório, onde jogaria em sua cara carcomida um bom punhado de água e tentaria sair de alma lavada para mais um dia. Ao chegar lá, mirou o espelho e foi em direção ao mesmo, sem hesitar nem sequer por um momento. Tinha certeza que a imagem que seria vista no espelho não lhe seria das mais agradáveis, mas ainda assim quis chegar até o final, como poucas coisas em sua vida conseguiram chegar. Sua intuição não falhou. Repugnou veementemente o espelho. Quebrou-o em seguida. Com as mãos ensangüentadas e inchadas, foi para a cozinha e as limpou. Por ser uma pessoa forte e de heranças ameríndia, as feridas cicatrizaram-se rapidamente, sem necessidade de curativos. Estava era com fome, bastante. Sentia ódio de si por comer tanto e não engordar. Ora, pois! Porque não era como os seres humanos normais? Qual a razão para não engordar ao ingerir tanto alimento como ingeria? Ódio passou a ter mais ainda. Quando saiu dos pensamentos conflitantes, sentou-se à mesa e notou que a lacaia havia posto tudo em seu devido local, para que agora pudesse desfrutar da hora supostamente tão feliz e fortuita. Começou. Sentiu gases. Isso irrita demais. Parou. Levantou. Saiu. Estava fora de casa, mas ainda não de sua propriedade. Contemplou a piscina, majestosa, por vezes tão azul e por outras tão verde. Recordou-se do filme mexicano “E sua mãe também”, em que Gael García Bernal nadava em uma piscina parecida, num hotel moribundo e chinfrim. Teve vontade de fazer igual. Em contrapartida, não possuía traje de banho, apropriado para o mergulho, o que fez com que não saísse de onde estava, pois seria inconcebível jogar-se dentro da água clorada de pijamas. Tal disparate sairia completamente da normalidade estabelecida pela sociedade. Por ter tido uma criação rígida e católica, não seria capaz de fazer uma loucura. Jogar-se dentro é uma loucura. Logo, em seguida, com praticamente nenhum intervalo, sentiu saudades da família que nunca teve. Da família grande e unida que nunca nem chegou aos pés de ter. Invejou os Buendía. Invejou Gabriel García Márquez por romance tão sublime. Sabia que o autor do romance realista fantástico deveria ter tido uma família semelhante, pois é impossível escrever o que se desconhece. Parou. Achou-se maluco. Como era capaz de sobrepor pensamentos e idéias tão díspares? Além do que nem possuía motivo para tê-las. Pensou em sentir pena de si. Não, logo depois. Isso seria triste demais da conta. Finalmente, tomou um bom banho, vestiu sua melhor roupa, perfumou-se com seu melhor perfume e saiu. Saiu para usufruir de tudo. Do mundo. De Deus. Mas Ele existe? Porque “Ele” e não “ele”? Porque o “porque” e não um “mas” da vida? Que doideira. Entrou no carro com cheiro de novo, comprado há poucas semanas, com um grande desconto, concedido em virtude da crise econômica que assolava a região. As concessionárias possuíam muito estoque e necessitavam colocá-los no mercado. Virou à direita, depois à esquerda, depois seguiu reto e depois deu uma curva. Começou a chover. De supetão, veio à sua mente o dia em que perguntou para sua prima uma coisa. Era dia de Natal e todos estavam na casa da avó. A prima, de apenas cinco anos de idade, estava quase chegando à varanda do apartamento quando lhe veio a afirmação, para logo vir a pergunta: “Júlia, está chovendo.” Ela olhou-o fixamente em seus olhos. Prosseguiu escutando. “Está chovendo muito!” Continuou impassível. “É Deus que está fazendo xixi”, prosseguiu. Pela primeira vez, então, a menina manifestou-se: “Deus?” Para que viesse a resposta: “Sim, Deus! Você não O conhece?” E, depois disso, nenhuma das duas pessoas conseguiu sair de onde estavam, nenhuma conseguiu parar de olhar uma para a outra, nenhuma conseguiu absolutamente nada. Afinal, quem é? A chuva não tardou a parar. Tanto a do passado, quanto a do presente.

As veias carcomidas de uma vida bandida - IV) Os fracassados


I
Esmeraldina estava sozinha no lugar. Não desejou mover-se, receosa de perder as recordações que acabara de ter. Era dessas coisas. Como mulher burra, não se dava ao luxo de permitir que o pensamento lhe fugisse de dentro.
Recordou-se dos tempos de menina. Ainda não trabalhava na cozinha fedida à gordura, nem balofa sua barriga tinha o disparate de ser. Mas no momento isso não tinha valor algum. O que adianta pensar no passado melancólico, se absolutamente nada de eficiente pode ser feito para alterá-lo?
Acabou com tudo aquilo em dois tempos. Aprendeu com a mãe a ser forte e não se deixar cair em sentimentalismos baratos. Sabia que morreria dentro de instantes e ninguém deveria nem poderia alterar nada. Se Deus não quis que vivesse, Esmeraldina era ninguém para querer fugir do próprio destino com os próprios pés.
Olhou para o que tinha diante dos olhos grandes e azulados, marejados pela lágrima. O caldeirão estava ali, como sempre. Foi nele que alimentou milhares de moribundos esfomeados e a partir dele que recebeu seu pão para repartir com o filho. Esse, pobre coitado, era ciente de sua pequenez diante do mundo, de sua insignificância perante as grandes questões humanitárias, que tanto lhe afligiam.
Felizmente, pela primeira vez, em sessenta e nove anos de vida, constatou e aceitou o fato de que deveria largar o cacoete vil. Viver, para ela, se fazia mais difícil do que se ver uma cadela nortista retirante de um romance regionalista.
Viu seu próprio retrato no caldo situado no interior do panelão. Como era pequena, esforçou-se desmedidamente para subir. Finalmente, conseguiu. Estava na borda. Na linha. Na sacada de um mundo, um mundo novo, um vasto mundo.
Jogou-se.
Acabou-se.
Chorou-se?
Não. Pela estúpida, nem falta sentiram.

II
Acharam-na, não porque alguém a quis achar, mas apenas pela simples coincidência de terem entrado na cozinha do colégio a procura de um esfregão, que seria utilizado na limpeza da doença de uma criança exposta no meio de uma sala de aula.

III
No enterro, se houvesse o coveiro e Esmeraldino, o filho da morta, era muito.
Os dois estavam, de certo modo, felizes. O filho por se livrar do fardo de cuidar e fingir amores por uma mulher que não enxergava como mãe. O coveiro por estar ganhando, graças a Deus, seu bom dinheirinho.
O Caju estava lotado. Esmeraldina escolheu o Dia de Mortos para sucumbir. Quem olhasse de fora, até poderia pensar que comemoravam o falecimento da cozinheira, mas não. Para ela, um filho e um funcionário, para auxiliar nos trâmites legais da ascensão aos céus, e só. O resto era para todos os outros.

IV
Tempos depois, Esmê, como era conhecido o rapaz pela vizinhança, achou um envelope em baixo da cama que era de sua progenitora.
Em outras épocas, não se daria ao trabalho de ver o que se tinha por dentro dele. Apesar de tudo, naquele dia estava com uma certa felicidade estranha. Achou que fosse o amor. Não... Homens (poderiam chamá-lo assim?) limitados como ele são carrancudos o suficiente para recusarem o sentimento.
Até a palavra soava-lhe estranha. Enfim...
Leu a carta. Surpreendeu-se. Conseguiu ler alguma coisa! As nove semanas que estudou até que lhe serviram de algo. Mesmo tendo visto nomes nunca dantes vislumbrados, nem entendido muitas palavras complexas, até que o âmago da leitura foi depreendido com perfeição.
Esmeraldina matou-se, mas por causa de terceiros. Chantagearam-na.
“Forças ocultas querem tirar-me de ação!”, a primeira linha gritava.
A trabalhadora burra e velha escrevendo isso? Esmê parou para pensar que tinha algo fora do lugar. A resposta estava no fim da dissertação: alguém escreveu a carta para ela. O homem lembrou-se que a mulher passava muito por dentro da Central do Brasil. Lá, como já haviam lhe dito, ficavam sentados homens e senhoras querendo escrever cartas de outros para outros. Estava entendido. Afinal, cozinheiras cozinham, não escrevem, muito menos lêem.
Minutos adiante, notou que o texto possuía continuação. A questão é que a continuação não estava presente. Algo ele não deveria saber. Mas a mãe não merecia tanto esforço e perigo. Deixou para depois.

V
Esmeraldino, ou Esmê, ou Zé-Ninguém, ou filho da cozinheira, morreu dois meses após ter deixado a carta de Esmeraldina esquecida na recepção da escola que, igualmente à mãe, labutava.
Suicidaram-no.
E agora? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu.
Se havia algum segredo para ser descoberto, ninguém descobriu. Se havia alguma declaração para ser feita, ninguém fez.
Para aqueles desgraçados pela vida, a estrada acabou. Afinal, não existe razão aparente para continuar vivendo.
No céu, Esmeraldina e Esmeraldino encontraram-se. Constataram que não importava o porquê, não importava o por quem, não importava nada sobre a morte deles. A morte dos fracassados pelo Diabo simplesmente não importa.

As veias carcomidas de uma vida bandida - III) Sentimento póstumo


“Rio de Janeiro, 06 do 06 de 06

Eu escrevo tais palavras para que sejam lidas depois que eu morra. De preferência, durante o meu funeral. Se vistas fossem antes disso, não teria mais coragem de caminhar pelas calçadas tortuosas da cidade. A vergonha seria tanta que sobreviver se tornaria, apenas, mero processo mecânico respiratório. Quedar-me-ia em casa, para nunca mais sair. Por isso, quem estiver passando os olhos por tais linhas tortuosas, antes de minha ascensão aos céus, que pare de imediato.
Conheci o amor de minha vida em algum dia, de algum mês, de algum ano. De supetão, tudo se anuviou diante de mim e vi que a pura e simples existência, que antes era tão clara, no momento se fazia escura. Perdi os sentidos e não agi mais por conta própria. Fui sendo levado pelos fatos e circunstâncias e impulsionado a venerar o ser idolatrado cada vez mais e mais. Pode parecer estranho para o leitor inexperiente nas questões dos corações sofridos e calejados. Mas é preciso que fique bem claro na mente de cada um de vocês: quem já amou sabe a dor e a delícia de gozar no céu e sofrer no inferno. Apesar de tudo, creio que o texto só se fará claro, por completo, para a pessoa que eu amei. Aliás, para a pessoa que eu, infelizmente e felizmente, ainda amo.
O breu do seu quarto acalentava a alma dos dois corpos que ali sempre padeciam. A música exortava sensações excitantes e declarativas. A junção dos dois permitia a união. Ao menos de uma das partes do casal. Ou seja, ao menos de mim. Porque, pelo ser amado, nada posso responder. Só acerca da minha pessoa tenho a capacidade de tecer julgamentos e declarações. Dele, não sei nada. Só sei que viveu para estar ao meu lado durante a minha passagem por este lugar. Nem que o “ao lado” seja somente nos meus sonhos noturnos e perfeitos.
Ficamos juntos, de início, por três semanas e quatro dias. Duas semanas e três dias após o término do caso, tivemos uma recaída. Acabou-se por aí. Eu era muito carente. Eu era muito subjugado. Eu pedia muitas desculpas. Eu, simplesmente, deixei que as coisas dessem errado. Eu era um completo e repleto asno. Eu me envolvi. O ser amado não. Eu me fodi. Creio que ele não. Eu sofri. Ele sofreu? Provavelmente. Mas não de amor. E sim de sufocação. Eu o matei aos poucos.
Todos me diziam: o tempo resolve tudo. Depois de alguns meses, até resolveu. Tentei me refugiar em outros braços e lugares. Acostumei-me com a ausência. Lembrava-me dele muito esparsamente. Pensei que havia conseguido exorcizar o passado. Quando um relacionamento poderia dar certo, cultivava. Ele sempre acabava. Ou porque a pessoa ao me lado não me queria mais e me descartava. Ou eu que não me interessava mais na pessoa e a queria esquecer por conveniência da comodidade. Ou a pessoa morria. Sofria mais no segundo caso. Qual o motivo para não embarcar em um romance que a outra pessoa está interessada em iniciar? A parte mais difícil estava resolvida e eu simplesmente não estava satisfeito. Porque, no amor, quando você o ama, é fazê-lo te amar também. Enfim... Um dia houve uma morte. Ele simplesmente morreu. Se foi-se pro outro lado da vida. Mas até que as coisas, no decorrer do ano, estavam caminhando toleravelmente bem. Eu nem pensava mais nele com tanta freqüência.
Mas meu aniversário chegou e ele ligou. Encontramo-nos, mas ele recusou. Desisti. Não o vi mais durante o ano.
Sendo que existiu o ano seguinte e ele me viu. Mais perto do que nunca. O que fazer?
Eu, a personagem, percebi que apenas com ele os sinos tocavam.
Apenas com ele os anjos cantavam. Somente com ele.
Para os ultra-românticos, a poesia preenche o vazio.
Para os bons de ouvido, uma música preenche o vazio.
Para os leitores, um livro preenche o vazio.
Para mim, nada está preenchendo o vazio.
Lutar ou desistir? Agora que vocês lêem isto aqui, já sabem do meu destino. Já sabem se valeu mesmo à pena lutar ou não. Mas eu, por enquanto, ainda não sei. Espero que não morra de morte doída. Espero que, por ele, eu não morra. Quando eu já estiver morto, vocês me digam. Ao pé do ouvido, como ele fazia. Ele me abraçava e conversava comigo. Ele fazia. Ia, Ia. Ia. Ia. Passado. Sempre passado. Nunca presente. Inferno.
Ao descerem com o caixão pelas ruelas do Cemitério do Caju, declamem, para mim, por mim, o ‘Soneto da separação’, por favor. Se o meu amor estiver perto de vocês na hora, não o incomodem. Ele deverá estar sofrendo. Digam apenas uma coisa: “O morto pede desculpas por morrer sem, ainda, ter você.
Grato, eu mesmo.”

As veias carcomidas de uma vida bandida - II) O analista


O personagem estava deitado no banco detrás do carro de sua mãe, olhando para o teto e lembrando-se da época em que era pequeno o suficiente para estar grudado à janela da mala do Gol de sua avó materna, enquanto voltava da escola para casa. Era trinta e um de agosto de dois mil e dois e eles estavam indo para o primeiro dia de análise do personagem. Como ele tinha boa memória, sabia que esse era o dia da morte de seu tio, dois anos antes. Seus familiares não sabiam se ele havia morrido exatamente naquela data, pois ficara quatro dias sumido, até que sua madrasta e seu cunhado o encontraram no Instituto Médico Legal. Então, para se ter um dia oficial de luto, os próximos a ele escolheram a data de seu desaparecimento. Morreu atropelado em frente ao Túnel Rebouças, na madrugada. Como sempre se vestia de preto, o motorista não notou sua presença. O personagem lembrava-se de tais acontecimentos, juntamente com o fato de no mesmo trinta e um se comemorar o dia da nutricionista, profissão de sua mãe, ao mesmo tempo em que o automóvel se locomovia em direção a Rua Senador Soares, número onze, em Vila Isabel. Era uma quarta-feira e o personagem sempre odiou as quartas-feiras, porque elas representavam aulas de matemática e física na escola.
Não era a primeira vez que seus pais o levavam para psicólogas e afins. A primeira que teve foi em Niterói, bem próxima ao estádio de futebol da cidade. Sempre ia até lá comendo Fofy pelo caminho e falando a tabuada para sua progenitora. A mulher que o atendia era alta, magra, loura, aparentando uns quarenta e cinco anos de idade. Como era muito novo, não via muita confidência e cumplicidade em cima daquela relação (na verdade, o personagem nunca teve uma completa relação com suas duas psicólogas e seu psicanalista, ao passo que nunca contava toda a verdade de sua vida para eles, sendo essa uma forma de cuspir na cara dos retrógrados que o oprimiam e o torturavam com sessões semanais e anuais de terapia). Enxergava apenas uma pessoa a mais para brincar e se divertir. Apesar de saber dos detalhes de anos atrás, não sabia a razão para terem saído dela. Possuía, então, uns oito de idade e, no momento em que divagava sobre seu próprio histórico familiar, doze.
A casa em que teria sua primeira consulta com este novo profissional ficava na rua de uma escola pública, a mesma em que estudou a pessoa que fazia o transporte do personagem para onde estudava, todos os dias. Um bar de encontro de motoqueiros enfeitava a esquina oposta da rua. Finalmente chegaram. Era uma bela residência. Muro baixo, fachada de tijolos aparecendo e com janelas envoltas de uma tinta branca. Um pequeno, mas belo e cheio jardim. A campainha ficava escondida por entre o murinho e as plantas, tendo que ser feito um pequeno malabarismo para tocá-la. O personagem não via a hora de ir embora para casa, pois sabia que essa era mais uma das exigências de seus pais para que ele se enfurnasse dentro de um quarto fechado e escuro em que ficaria conversando sobre sua vida e para ver se alguém descobria se ele tinha algum problema. Porque o personagem só poderia ter algum problema. Sempre brigando dentro do lar e com um jeito muito suspeito de ser. Nisso, um homem gordo, de estatura média, moreno, de nariz muito avantajado e com veias azuis saindo de dentro de suas narinas, com testa cumprida e cabelos ralos, abriu a porta branca e de ferro. Ele saiu de lá. Era Suruape Jorge Garcia, o analista.
O homem tinha cinquenta e seis de idade, era casado há alguns anos, com um casal de filhos já de certa maturidade e morava com a sogra de setenta e dois. Esses fatos, claro, o personagem só viria a saber no decorrer dos quase dois anos que passou com ele. Sendo assim, no momento da abertura da porta e da visão do grotesco, o personagem sabia apenas do nome do indivíduo. Quem o indicou para sua mãe foi uma amiga dela, que teve o filho tratado também por ele. Ao entrar, fizeram as condolências necessárias e o personagem subiu apenas com o analista para dentro da sala em que as sessões se fazem presentes. Era uma escada de madeira, não muito larga e nem muito íngreme, situada do lado esquerdo da sala de recepção e com uma curva, bem no seu meio. Lá, em cima do maior degrau, havia uma foto, em preto e branco, de Sigmund Freud, que podia ser vista logo que se colocasse a cabeça para fora do pseudo confessionário.
O analista entrou por último, como manda a educação, e trancou a porta. Ofereceu o sofá para o personagem sentar, e o mesmo obedeceu ao pedido. Pensou em deitar-se, mas refutou a idéia, com medo de tender ao ridículo perante um desconhecido. As perguntas começaram. Depois de responder a praticamente uma ficha médica, o conteúdo mental, de fato, começou a ser pesquisado. O personagem lembrava-se sob os mínimos detalhes do que disse na primeira sessão. O cômodo estava com pouca luz, sendo a única provinda de um abajur situado bem atrás e à esquerda da poltrona nababesca do homem, em cima da mesa em que apoiava uma maleta e certos outros pertences inúteis. Começou a verborragia.
O personagem falou de anseios, pretensões, desejos! Não ousou tocar em decepções, desilusões, catástrofes. Bem provavelmente, deve ter omitido ou mentido acerca de alguma informação, como já manda o protocolo dos Pacientes Analisados Brasileiros (PAB).
Com o passar das semanas – suas sessões eram todas as quartas-feiras, sendo depois alteradas para os sábados – a relação passou a ficar mais íntima. O analisado já tinha conhecimento de muitos fatos da vida do analista. Soube que morava com a sogra e a esposa, possuía dois filhos. Quando o personagem chegava a casa, perguntava-se se o analista merecia saber do modo que estava sabendo sobre a vida do analisado. Ele contava apenas o que lhe convinha e até mesmo o que acreditava ser mais interessante para Jung e Freud analisarem, ainda que não fosse de todo verídico.
Suruape, como apenas o personagem o chamava, sendo o restante da população nomeando-o de Jorge, comentou, em um dia qualquer com ele, sobre a possibilidade de um novo método de trabalho, muito eficiente em outros pacientes. O tratamento consistia na passagem de óleos aromatizantes pelo corpo ou, como preferia dizer Suruape, passagem de óleos pelos “chakras”, que são, segundo a filosofia ioga, canais dentro do corpo humano por onde circula a energia vital que nutre órgãos e sistemas. Por esses canais se enveredarem por vias bem internas, haveria a necessidade de o paciente permanecer apenas de cuecas ou calcinha e sutiã, no caso de uma mulher, obviamente. Logo após o convite ser aceito - afinal de contas, o paciente acreditava piamente, até o momento, na credibilidade da profissão e do profissional -, Suruape alertou-o: “Não se preocupe, pois é normal haver certa excitação por parte de quem está aí deitado. Relaxe, isso não irá significar nada.”
De fato, por algumas ocasiões das massagens, o personagem excitou-se, mas era praticamente impossível ficar impassível diante da situação, ao passo que um dos chakras localiza-se praticamente nos fundilhos.
As sessões de massagem eram irregulares. Vez ou outra aconteciam. No restante do tempo, ficavam a conversar.
Em uma dessas conversas, o personagem, pré-adolescente, perguntou para Suruape algo relacionado a sexo. Evidente surgirem perguntas assim, porque se trata da dupla psicanalista-psicanalisado, sendo Freud e toda sua corja inexistentes se não houvesse a questão sexual na mente humana. Tal foi a brecha para a pergunta por parte do mais velho: “Quer saber como é a sensação? Não se preocupe (novamente a porra do não se preocupe), você gosta e continuará gostando de mulheres. Isso aqui é só para você saber como é a sensação.”
Coagido e sem saber o que responder, o personagem recebeu o sexo em seu sexo e teve a sensação de como o mundo era mundo pela primeira vez, aos doze anos de idade, juntamente com um velhote repugnante e impotente de cinquenta e seis insuportáveis anos.
“Olhe, as pessoas não podem saber do que está acontecendo entre nós, porque elas não entenderiam. Nós não estamos fazendo absolutamente nada de errado, só estou te mostrando como é a sensação do orgasmo. Eu continuo gostando de mulher, assim como você. Não se preocupe.”
Sempre que o personagem saia pela porta da Rua Senador Soares, a pergunta corria para sua mente: “O que eu estou fazendo? Será que eu gosto mesmo de meninas? Mas fazer isso é legal, gosto da sensação.” Juntamente, vinha a sentimento de culpa. “Pecado. O que faço é pecado, está errado. Mas gosto da sensação. Tenho nojo dele, mas gosto do que me proporciona. Ter orgasmos é uma coisa legal.”
Não dava. Apesar de gostar do que sentia depois de alguns minutos, a culpa o assolava, o comia por dentro, o acabava. Nada era dito para ninguém fora do consultório sobre o que acontecia, assim como o havia aconselhado o Velhote. Nem com o próprio homem o rapaz conseguia conversar sobre. Envergonhava-o muito tudo aquilo. O pior era que seus colegas de colégio apenas estavam descobrindo o que era um pentelho, quando muito, ao passo que ele já estava naquela situação, naquele dilema, naquela cilada, naquele labirinto.
Concomitantemente, o personagem tomou para si um sentimento de ódio contido pelo analista e o analista tomou para si um sentimento de amor contido pelo personagem.
Chegou dia doze de outubro, e Suruape Jorge Garcia deu de presente ao personagem um livro. “Serraria Baixo-Astral”, quarto livro das “Desventuras em Série”, de Lemony Snicket. O burro nem para dar um presente certo. Como o personagem leria o quarto livro da série se nem conhecia o primeiro? Enfim. Ao abrir-se o livro, lia-se: “Rio, 11/10/2002 – Ao pequeno grande Homem. Personagem, foi muito bom conhecê-lo. Assinatura.” O sorriso falso de agradecimento foi colocado no rosto do personagem, mas o rancor estava bem guardado dentro dele. Pelo ódio, jurou que nunca leria uma linha sequer do livro. Culpa não era do pobre autor, coitado. Culpado era o facínora, o cavalo, o nefasto.
A situação chegou ao ponto insuportável quando o personagem parava o que estava conversando e Suruape simplesmente ficava olhando para ele, contemplando-o. Diante disso, a criança não sabia o que fazer. Permanecia, assim, olhando para ele também. Queria acabar rapidamente com aquilo, pois sabia que quanto mais ficasse olhando para o outro, mais ele poderia ficar apaixonado. Isso seria demais. Isso poderia causar uma tragédia maior do que já havia causado.
Fim. Um fim isso tinha que ter.
O personagem acordou bem cedo em um domingo do começo ou fim de 2003, não lembrava, chamou o pai para conversar e não lhe contou os fatos concretos, mas sim apenas que desejava sair de onde estava, pois tinha medo do que poderia acontecer. “Ele olha-me estranho, papai.” Pobre progenitor se soubesse do que o Velho havia feito. E também o personagem não queria expor-se de forma tão escancarada.
Solicitou para que sua mãe resolvesse tudo. Ela que rompeu com a corda que aos poucos enforcaria as entranhas do personagem, até ele se perceber desfalecido no meio da sala, com seus olhos abertos e sua dignidade defunta. O medo era tanto por parte do analista, que ele chegou a ligar para a casa do personagem para perguntá-lo se algo estava acontecendo. Não ousou tocar no assunto “sexo”, pois receava que o motivo da saída fosse o abuso causado. Preferiu desejar boa sorte na vida do personagem. Ao não tocar nessa questão, poderia estar fazendo com que o personagem também não tocasse mais nela, pondo um ponto final em tudo aquilo, toda aquela coisa que ele próprio criara. Mas será que tinha sido ele?
Em casa, num outro bairro, Suruape lembrou-se de quando era criança. Seus vizinhos tinham uma galinha. Quando o maltrapilho garoto começou a sentir suas vergonhas se salientarem, resolveu aliviar-se com o dito animal. Por essas aventuras, o dono da galinha, consequentemente seu vizinho, viu a cena que sempre se repetia toda manhã, quando o analista acreditava que os donos da casa haviam ido trabalhar. Diante daquilo, José – o nome do vizinho -, chamou Suruape para uma pequena conversinha. Depois daquele dia, o Velhote nunca mais aliviaria suas tensões na galinha. Seu José, como ele o chamava, poderia exercer tal função muito bem.
Ele, assim como o personagem, sentiu ódio do malfeitor.


O personagem alguma coisa fez. Como só se deu conta do crime cometido pelo analista alguns anos depois, quando o ato já era considerado nulo pela justiça, encontrou apenas uma solução.
No dia seis de janeiro, dia em que a Igreja celebra a festa da Epifania, o personagem subiu os degraus da escada de sua casa, entrou no quarto de seus pais, encaminhou-se até o criado mudo localizado na parte esquerda da cama, onde seu pai dormia. Abriu a terceira gaveta do mesmo e pegou um revólver. Quem o havia posto lá fora seu tio, irmão de sua mãe, antes de sair de casa pela última vez, para encontrar a morte na entrada do túnel. Encheu a arma de munição e foi em direção à rua onde todos os crimes eram cometidos.
Com um fone de ouvido, contemplava “Rockferry” e pensava no que faria com Suruape. O revólver finalmente teria uma utilidade. Assim como pensou Raskólhnikov, o mundo não poderia e não haveria de sentir falta nem pena de Lisavieta, a Velhota. Ela morreu, ele também morrerá. Velhote e Velhota irão se encontrar no céu. Se ele existir, claro. Nesse instante, o personagem rezou para que o céu não existisse, pois assim o Velhote ficaria vagando pelo mundo, como alma penada, e elas simplesmente não conseguem descansar em paz. Uma pós-vida infernal seria o ideal para um homem tão banal.





O analista estava despedindo-se de seu último paciente. O personagem entrou sem nem pedir licença. Subiu e lá no consultório ficou. O analista correu em disparada até chegar onde o rapaz estava, até encontrá-lo deitado no divã, como nunca antes havia feito. O personagem disse: “Olá.” O analista viu o revólver na mão do personagem. O personagem perguntou para ele: “O que foi?” O analista soltou um grunhido incompreensível. O personagem levantou-se. O analista afastou-se. O personagem divagou: “Conheces ‘Lolita’? Aposto que conheces... Vladimir Nabokov deveria ter escrito um final igual a esse que está prestes a acontecer. Bem diante de seus olhos. Velho de merda”
!
O corpo foi retirado. O chão foi limpo. Tudo foi resolvido. Uma carta de despedida foi escrita pelo personagem, para que assim se aparentasse suicídio e casualidade da vida.
Antes de chegar a casa, o personagem deu uma volta e foi em direção à delegacia.
Melhor se entregar à polícia, com sua dignidade, do que ver sua casa invadida, seu corpo tomado, e sua vida destruída. Deste modo, teve o destino que escolheu. Entregou-se, pois assim o desejou. Réu primário, endereço fixo. Sairia de lá rapidamente.
Humbert, o pedófilo literário, e Suruape, o pedófilo real. Humbert matou Quilty, marido de Lolita. Suruape não matou ninguém. Ele é que estava morto agora. Acabado. Aniquilado.
Mas o fim do personagem, o abusado real, foi igual ao de Humbert, o pedófilo literário. Na prisão acabou, com seus anseios e sonhos aleijados. Tudo por causa do Velho de merda.













Que ódio sente o personagem pelo Velhote de merda.

As veias carcomidas de uma vida bandida - I) A vida da morte

Arcádia Gonzáles pariu Vovó em um dia chuvoso de abril. Não era muito comum tal fenômeno meteorológico em tal mês. Naquela cidade esquecida por Deus e pelo Diabo, se chove é por sorte, muita sorte. A população acreditava piamente que se o rebento nascesse em dia de sol, teria sua saliência para fora e, se nascesse em dia de águas, teria sua saliência voltada para dentro. É por isso que existiam tantos machos em um espaço tão restrito. Difícil perceber que aquilo era uma cidade. Se fosse constituída de quatro avenidas principais, oito ruas de menor importância e umas duas praças, era muito. Mas já bastavam para encher de satisfação e alegria os moribundos semi-analfabetos e completamente desprovidos de senso crítico. O lazer se constituía em escutar ao rádio sintonizado na Estação Central todos os dias santos e não santos, às vinte horas. Cinema ninguém sabia que tinham inventado. As missas de domingo eram obrigatórias para todos, sendo que as viúvas se enfurnavam cotidianamente no local escurecido e repleto de imagens divinas trazidas pelos Zulus em séculos passados. Elas oravam por seus maridos ou amantes, esperando que não os castigassem pelos pecados cometidos em vida. Como poucos sabiam ler, poucos livros eram lidos por esses poucos. Vila Boa, definitivamente, era uma aldeia feita por fanáticos religiosos, por pessoas que perceberam que os ventos uivantes vindos do sul enlouqueciam os que por muitos já eram considerados birutas e, por fim, por homens mal cheirosos que gostavam mais do laboro do que de casa, de mulheres reprimidas que só sabiam dar à luz, rezar e lavar a louça, de crianças que brincavam com as vacas e os porcos e por adolescentes cheios de tesão retido.
Ninguém desejou boa hora para Arcádia Gonzáles. Santa Gorete fizera chover e, em conseqüência do fato, todos estavam assentados em seus respectivos quintais observando o milagre espetaculoso. Além de fazer crescer mais rapidamente as árvores, esse acontecimento faz com que as abelhas amarelas acendam seus traseiros com mais força, sendo as estradas melhor iluminadas e não deixando que os viajantes se percam pelos tortuosos caminhos que levam até a Capela de San Martin de Allegros. Um dos que estavam estarrecidos diante do dilúvio era o progenitor de Vovó. Benito Prestes nem se deu conta dos berros doloridos de sua esposa que, notando a ausência do bem amado, aceitou a idéia de ter que ter a filha sem ter ao seu lado quem sempre quis. Andou cambaleante até sua cama de jacarandá comprada em sua lua-de-mel e trazida até sua casa pelos escravos bicentenários que um dia foram pertences de seus bisavós maternos. O tempo como seu inimigo, não se preocupou com alguns detalhes que jamais passariam despercebidos por gestantes mais atenciosas. Abriu as pernas e pediu para que continuasse viva depois daqueles minutos intermináveis. Saiu. Se chorou, Jesus a calou. As duas, tanto uma quanto outra. Pois eram fortes. Todas as mulheres daquela família o eram. Fortes por fora e, por vezes, nem tanto por dentro. Mas isso não vem, não vinha e nunca virá ao caso. O que importava mesmo é que as moças daquela prole conseguiram passar por tudo nessa vida cuspida por algum ingrato.
Benito Prestes sempre freqüentou os bailes promovidos no Quartel General de Figueiroa. Arcádia Gonzáles nunca foi muito adepta aos festejos. Ele aprendeu com os amigos o real significado da diversão. Ela foi ensinada pelas freiras ortodoxas da Igreja Católica que ler a cartilha sempre antes de todas as refeições e antes de dormir era fundamental. O dia em que se conheceram era de comemoração. E as comemorações na cidade eram concebidas na Igreja de Nossa Senhora dos Lamentos ou no Quartel General de Figueiroa. As espirituais na primeira e as carnais no segundo. Como bailes não são muito bem vistos por padres nem freiras, eram realizados sempre aos sábados no Quartel. No baile em que se conheceram, seria eleita a pessoa que viveria por mais anos dentre todos os presentes. Dádiva única dada para a mulher, preferencialmente, mais bela dentre todas. A premiação se realizava em um espaço em média de cento e vinte anos, pois é a expectativa de vida das mulheres anteriormente condecoradas. E uma senhora só pode colocar a Coroa da Centenária quando a antiga dona sucumbir. Para se chegar ao Quartel era difícil. Isso por causa da densa Floresta de Eucaliptos, que mata sem piedade os desejos de plantio de qualquer outra forma vegetal e também pelas montanhas desproporcionais ao tamanho dos habitantes daquela delimitação territorial. Altas e cobertas de gelo durante metade do ano. Nasceram muito depois da construção de uma das melhores rodovias do país. Chamar-se-ia Rodovia Calcaso, mas o terremoto que assolou o estado durante três dias consecutivos, fez com que surgisse, bem no meio desta, uma das maiores montanhas vistas pelos homens de então. Esses dois fatores citados anteriormente se transformavam em empecilho para a passagem de indivíduos para o local das festividades carnais. Benito Prestes, com seu espírito aventureiro e a falta de moedas de ouro no bolso, juntamente com seu grande companheiro Pepe Legrel, percorreram de pés dez quilômetros, até chegarem, depois de algum esforço, ao Quartel. Já Arcádia Gonzáles decidiu-se a não sair de casa. Preferia muito mais praticar a rotina rotineira do que arriscar-se por entre matas e pedras grandes para chegar a uma bobagem de entrega da Coroa de Não Sei O Quê. Depois de tudo, nunca se achou bela, então, não via coerência em ficar deslumbrando a beleza alheia, em decadência da própria. Mas, por insistência das dez irmãs que possuía, cedeu.
Benito Prestes chega com Pepe Legrel a “Festa da Premiação da Centenária”. Chegaram bem antes de todos. Para o ócio não tomar conta de seus corpos e mentes, resolveram caminhar por entre os soldados que lá estavam de serviço, para espairecer um pouco. Como não tinham relógio nem sabiam muito bem os números, noção nenhuma havia da parte deles do horário de início da grande premiação. Sabiam apenas do dia em que seria realizada. Ainda do outro lado de Vila Boa, Arcádia Gonzáles e outras dez Gonzáles iam de carroça, puxada por quatro jegues cor de mel, acabados e com as patas calejadas de tanto caminhar. Quando conseguiram chegar, viram todas aquelas pessoas que sempre viam. Todas aquelas pessoas que sempre souberam o nome. Todas aquelas pessoas que sempre... sempre era a mesma coisa. Arcádia Gonzáles, repentinamente, sem nenhum aviso prévio, sentiu-se estafada da vida. Cansou-se daquela vida que vivia tão igualitariamente há dezessete anos. Parou, deixou as irmãs continuarem o caminho para o centro da multidão de meia dúzia de quatro e respirou fundo. Dar um escândalo, não daria, porque isso não é coisa que se faz. Simplesmente olhou para trás e quis que sua vida fosse um pouquinho oposta do que era. Refletiu. Flutuou até a barraca em que se vendia água benta e pediu um copo. Lá se vendia e se comprava de tudo. A vendedora charlatã, dona da birosca, quando se viu desempregada, foi até o lavabo de sua residência e abriu a torneira. Pegou uma garrafa de plástico e colocou toda a água dentro. E com uma caneta escreveu em letras ruins: “Água benta do Rio Jordão”. Nunca mais precisou pedir dinheiro emprestado para terceiros. Depois de comprar a suposta água benta, Arcádia Gonzáles foi até o banheiro público, que fica afastado do meio do povo. Segurando o copo com toda a força que possuía em suas grossas mãos, tomou. Beber a água seria mais eficaz do que jogá-la na testa. Assim, a súplica subiria mais veloz ao céu e chegaria com mais nitidez aos ouvidos do Senhor. Engoliu tudo. Pediu outra vida. Pediu mais amor. Pediu mais beleza. Pediu mais furor. Pediu mais, mais, mais, cada vez mais.
Benito Prestes não imaginava que se lembraria daquele dia como o último em que veria os oficiais do exército com bons olhos. Ele e seu amigo cansaram-se de tanto nadar por aquele mar de uniformizados e resolveram voltar para onde já deveriam estar concentradas as pessoas. Logo que se aproximaram, os indivíduos começaram a berrar como se fossem leões famintos, sedentos por carne fresca. Pepe Legrel disse para Benito Prestes que os portões haviam sido abertos e que os comes e bebes começariam logo. Pois, como sempre se foi de costume, comia-se e bebia-se muito, apesar da miséria de grande parte das famílias. E sempre há motivos para se comemorar e comer, não necessariamente nessa ordem. A ordem seria esta: comer e beber, depois iriam todos aos seus respectivos assentos, para desfrutarem da semi-sesta. E, por último, depois de meia hora de descanso, assistiriam ao desfile das pré-candidatas, escolhidas a dedo pelo locutor da Estação Central. No fim das contas, resumindo-se os acontecimentos, Herundina Gonzáles, irmã mais velha de Arcádia Gonzáles, ganhou o grande troféu. Seria destinada a viver por, no mínimo, mais cem anos, em razão de que já tinha vinte e seis de idade. Depois que todos se retiraram do Salão, seguiram para fora. Várias eram as atrações no pátio. Barracas de beijo por duas moedinhas, maçãs adocicadas, gordas mulheres barbadas, elefantes amigos de ratos. Para se divertir tinha que se gastar, mas Pepe Legrel era primo de sexto grau de uma alta patente do Exército Vermelho. Então, nem Pepe Legrel nem Benito Prestes teriam que se incomodar. Era a última barraca da última fileira de barracas. Vendiam-se fogos de artifício que se mirados corretamente para a pessoa amada, essa se apaixonaria perdidamente. Benito Prestes correu por muitas mulheres durante seus parcos dezoito anos. Nenhuma o interessou por mais que duas horas. Pepe Legrel nem isso. Virgem sempre foi e amar não estava ao seu alcance, segundo ele mesmo sempre frisou. Como era tudo regalia, Benito Prestes quis aproveitar tudo até a última gota.
Os fogos foram comprados e lançados o mais rapidamente possível. Afastaram todas as pessoas que se encontravam por perto e esperaram sorte para que o objeto alcançasse certamente a mulher que sempre olhou, mas nunca se aproximou. Arcádia González foi a imagem mais lúdica e sexualmente atraente que já chegou a seus olhos. Mas nunca foi mais que isso, nunca chegou mais perto, nunca se declarou de fato. Não via como possível amar uma pessoa que apenas havia olhado. Apesar de tudo, isso foi há tempos atrás. Agora, vendo a oportunidade que sempre sonhara, não a deixou ultrapassar seus dedos. Em menos de duas horas, Arcádia Gonzáles tornou-se Arcádia Gonzáles Prestes. Casaram-se longe dali. Isso porque o pai de Arcádia Gonzáles não poderia saber, pelo menos por enquanto, do matrimônio. Ele achava a filha muito nova para casar, queria que ela se enrolasse com uma pessoa que ele mesmo escolhesse e era homem não entrável na casa da família de Benito Prestes. Se unir a alguém foi uma forma de resposta para a água benta tomada por Arcádia Gonzáles. Porque se unindo àquele homem que um dia olhou e se apaixonou, poderia ser livre das irmãs e do pai que tanto a oprimia. Para Benito Prestes, casar significaria usufruir do atributo que Deus dá para toda homem quando nasce: sustentar uma mulher e, posteriormente, um filho.
Na festa ficaram a irmã de Arcádia Gonzáles, escolhida para viver praticamente para sempre, e Pepe Legrel. Ninguém consegue explicar ao certo porque ela se chegou a ele nem porque ele se chegou a ela. O fato é que os dois resolveram ficar juntos. Ela sabia que ele tinha tuberculose, doença adquirida quando foi retirar leite de uma vaca possuidora da mesma doença, e que não viveria por mais do que dez, quinze anos. Ou seja, ficaria viúva por muito tempo. Foram morar ao lado do rio Serpa. Quando Arcádia Gonzáles e Benito Prestes regressaram da lua-de-mel, foram dormir em um quartinho perto da cozinha de Pepe Legrel e Herundina Gonzáles. O pai das duas morreu pouco tempo depois da “Festa da Premiação da Centenária”, então nem brigou muito com o casal por causa da união. De passageira, a estada do casal se fez permanente na casa alheia. E isso não foi problema para os donos da residência. Casa cheia, festa sempre. A casa passou a ser de todos os quatro.
Herundina Gonzáles Legrel se viu incapacitada de pegar barriga. Tinha um problema com os ovários, causado pela grande e contínua exposição ao frio da região em que moravam. Para sua revolta e inveja, sua irmã era mais fértil que cadela no cio. A primeira gravidez foi de Vovó Prestes Gonzáles.
O tempo foi passando e Vovó ficou mais e mais bela e sedutora. Os homens, os meninos e até as meninas e mulheres não conseguiam não olhá-la. Era um torpor. Quando de seu aniversário de quinze anos, o Exército Vermelho resolveu fincar pés próximo ao rio Serpa, local estratégico para a luta armada entre o Exército Vermelho e o Exército Amarelo, respectivamente de esquerda e de direta politicamente. Tal conflito foi causado por causa de uma questão familiar muito pouco esclarecida pelos periódicos do país e alcançou proporções nunca antes previstas. Uma guerra civil se fez presente e teimava em estar a complicar a vida e rotina das pessoas. A idade mínima para se entrar no serviço militar era de dezesseis anos e a máxima de vinte e quatro. Então, os varões que lá trabalhavam eram os dos mais bem apessoados para as vistas femininas. Lá havia um homem conhecido com Asdrúbal Trombone. Ele, no momento em que se retirara do local de trabalho e fora à feira de peixes comprar mantimentos para a alimentação da tropa, vira Vovó sair de sua casa. No momento, viu borboletas chegarem perto dele e o levantarem até o céu. Sensação semelhante, tinha certeza, nunca mais haveria de sentir igual. Era por aquela jovem, então, que lutaria e ganharia a guerra. Não tardou para começarem a trocar correspondências. Nelas, ele não se envergonhava em expor o motivo pelo qual guerreava: ela. Iria até as últimas consequências, apenas por ela. Vovó criou também um sentimento por ele, e se martirizava cotidianamente por ser a causa de tanto cansaço em um pobre rapaz.
A Guerra Civil Latinera durou quinze anos. Acabou logo um dia após a morte de Pepe Legrel, tubérculo convicto. Asdrúbal Trombone ainda não tinha dado um beijo em Vovó Prestes Gonzáles. Apenas as letras unia-os. Demóstenes Josino, comandante-em-chefe do Exército Vermelho, deu a triste notícia para Vovó, e apenas para ela, pois ninguém da estirpe, em quinze anos, soube da troca de confidências amorosas entres os dois seres humanos. Asdrúbal Trombone morrera em batalha, não um dia antes de a guerra terminar, como Pepe Legrel, mas sim no antepenúltimo dia. Ela aprendera com a tia e a mãe a ser uma mulher forte, pois assim eram todas as mulheres Gonzalesas. E, por isso mesmo, viu-se obrigada ao suicídio. Por ser tão determinada e teimosa, definiu em sua mente que se não conseguira trocar um beijo entre Asdrúbal Trombone em vida, que fosse, então, na morte. Pegou o cadarço do sapato mais novo, o amarrou no lustre e pronto. Antes deixou uma carta para os pais. Foi aí que se teve início o ódio de Benito Prestes pelo Exército. Com a morte da filha e a vitória do Exército Vermelho, viu-se tomado de ódio por todo o corpo. Decidiu-se a tomar uma atitude. Sozinho, se encaminhou para a sede do Exército e declarou nova guerra. Ao contrário da outra, que durou por volta de quinze anos, esta durou quinze minutos. Sucumbiu em dois tempos. Um sargento desavisado se incomodou com a berraria ministrada pelo homem, que atrapalhava seu almoço. Um tiro de fuzil e pronto. O serviço estava feito.
Herundina Gonzáles e Arcádia Gonzáles estavam sós. Arcádia Gonzáles não durou muito. Tomada por uma depressão profunda, ascendeu aos céus por inanição. Para não se ver completamente sem companhia por pelo menos mais noventa anos, Herundina Gonzáles deixou o corpo da irmã ali, bem ao seu lado na mesa de jantar, para que com isso pudesse ter alguém com quem conversar. As suas outras irmãs a abandonaram depois de ter ganhado a vida longa, tempos atrás, por causa do ódio e inveja. Elas não conseguiram digerir a altivez que assolou Herundina Gonzáles. Apenas Arcádia Gonzáles conseguiu conviver com a irmã, por causa da boa vida gerada pela água benta, insuficiente para suportar a perda do marido e da filha.
A mulher chegou aos cento e vinte anos de idade. Durou exatamente o que previa. Morreu literalmente sozinha. Todos os outros da cidade não existiam mais. Viu de perto a solidão dos dias. Achou um alento morrer. Arrependera-se das coisas do passado e via um futuro promissor no reino de Deus Todo Poderoso. Sua vida não fizera muito sentido e não possui muita linearidade. Não lera livros, nunca fora ao cinema, rádio escutou pouco. Mas morreu como todos os outros. E foi para o mesmo lugar. Pelo menos fora o que esperava. Ao primeiro minuto de morta, não viu nada semelhante a um céu azul, com nuvens, nem seus familiares mortos. Estava em um lugar preto. Preto e sem ninguém por perto.
Escutou, ao longe, apenas uma voz: “A morte é assim. Conforme-se. Vivemos sozinhos e continuamos, ao morrer, sozinhos.”

Quer saber?

Vou colocar aqui o que eu escrevo sim... Ninguém vai ler mesmo... Não vai fazer diferença colocar ou não...

:p

Apenas isso

Putz, há séculos que eu não escrevo de forma decente neste blog. Mas sabe o que é que acontece? Qual a razão de eu continuar divagando por estes cantos sem praticamente ninguém para ler? E, além de tudo, sem ninguém para me pagar?

Colocando o que eu escreveria aqui em um livro, faz com que um dia eu possa ganhar uns trocadinhos. Nem que seja apenas R$ 15,00!

xD

sábado, 10 de janeiro de 2009

As veias carcomidas de uma vida bandida

VIII) Itabaina, 253

O nome do livro não é mais "Só", e sim "As veias carcomidas de uma vida bandida". E tenho dito.