segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Bertold Brecht

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

domingo, 28 de setembro de 2014

Epifania

Cheguei ao bar, uma hora antes do combinado. Querendo entrar, a recepcionista perguntou-me se a mesa era apenas para mim. Eu respondi: "Preciso de uma para seis". Ela, então, afirmou que eu deveria esperar. Anotou meu nome, "Guido", e disse que telefonaria-me assim que os lugares vagassem. "Você pode, também, esperar no balcão, caso deseje", disse-me a senhorita. Então, fui até lá, sentei-me em um banco quase do meu tamanho, e fiquei lendo "Morangos mofados".

Os minutos passaram e mais gente chegou àquele que era um novo comércio no bairro gentrificado, moderno porém até outro dia considerado antiquado e de passagem. O garçom convidou-me a beber algo, mas eu disse que "agora não". Continuei lendo, com meus óculos, que faziam-me enxergar apenas as palavras com foco e não o mundo ao redor. Os minutos foram passando e eu comecei a incomodar-me.

As pessoas começaram a lotar o local, o barulho começou a nascer, eu comecei a ficar com raiva. Eu ali, lendo, comecei a sentir certo desconforto. O público tinha uma personalidade deveras frívola, eu estava querendo isolamento, meus amigos, que não vinham porque ainda não era hora, começaram a parecer-me desprezíveis. A raiva cresceu em mim como um tumor.

Quando os meus amigos chegaram, quinze minutos depois da hora marcada, eu já estava com ódio de todos, com a cara fechada, com nojo daquele espaço, como se eu estivesse sendo ofendido de morte. Eu, como se tivesse sido muito maltratado, estava reativo e com falta de esperanças nos outros. Estava com vontades de isolamento, sem querer trocar palavras com ninguém. Eu, porque sozinho, não queria mais passar a noite em torno dos meus companheiros. Queria, apenas, estar em casa, na minha cama, quem sabe ainda lendo algo. Eu já não queria ser de ninguém. A razão, eu não sei precisar, pois no dia seguinte entendi que não fez sentido algum tal mudança brusca de comportamento. Eu só estava com muita raiva, de muita gente.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Produção de presença

Eu estou parado, contemplando. Quando eu olho e não enxergo: apenas direciono minha visão. Eu, em estado de levitação. Sem saber para onde ir, o que fazer: apenas ficar. Eu acabei de ler um livro que me disse algo; acabei de ouvir uma música que me disse algo; acabei de ver um filme que me disse algo. A arte é isso: dizer algo. O que é a literatura, então, para mim: a arte por meio da qual eu descubro algo que até então não sabia; o processo pelo qual surge em mim uma grande epifania de existência. A beleza pela beleza: uma palavra linda ao lado de outra palavra linda, formando textos lindos, desenhados, dançados, é a grande produção de presença deste universo. Eu ouvi uma música em uma língua que eu não posso compreender, mas que foi tão presente que em mim produziu apenas amor, espanto, carinho. Eu, em estado puro de ser. O trabalho melancólico de ser. Só Clarice para começar com uma vírgula e terminar com dois pontos um livro. Só Raduan Nassar para escrever que estamos indo sempre para casa. Só Jean Genet para me dizer que a vida é poesia. Só a literatura e a arte que podem me dizer que Deus existe.

Existe um livro chamado "Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir" (Hans Ulrich Gumbrecht).

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

De quem morreu e ainda vive

Eu andei pela Rua Voluntários da Pátria e encontrei um mendigo deitado no chão, coberto por uma manta, lendo um livro, com o apoio de uma lanterna.

A seu lado, estavam outros livros ainda fechados, empilhados, esperando a leitura.

Era apenas ele ali, naquela via escura e desabitada, em plena noite de um dia de semana qualquer de final de inverno.

Aquele homem sem absolutamente nada, sem dinheiro, sem casa, sem roupa, sem visibilidade, sem chão, sem Deus, mas com absolutamente tudo, com a vida, com a língua, com a imaginação, com a possibilidade, com o cosmos, com a transformação, com a mudança, com a epifania, com outro mundo, com ele e mais ninguém, porque para nós ele não existe.

Ele, que não tinha comida, mas que comia.

Enquanto eu, que tudo tenho, sinto nada ter.

Eu penso não ter dignidade, penso não ter futuro, penso não ter condições financeiras, penso não ter destino, penso não ter passado, penso não ter ninguém, penso em morrer.

Enquanto aquele homem, já morto, vive.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Como não ser sendo

E se eu, amanhã, acordasse e resolvesse que nunca mais trabalharia com outra coisa que não fosse literatura?

É bem provável que eu fosse apoiado por alguns e criticado por outros, mas considerado louco de qualquer forma por todos. Os que não incentivariam me achariam aquele louco esquizofrênico. Já os que apoiariam me diriam que eu sou um louco artístico, aquele louco que faz bem ao mundo do belo.

Certo é que eu escolhendo viver de literatura, desde já, serei pobre por um bom tempo. O que significa ser pobre? Não ter dinheiro para comprar seu próprio pão, seu próprio espírito, sua própria autonomia, sua própria bem-aventurança.

Minha mãe me perguntaria a razão para eu não fazer um concurso público. Meu pai me perguntaria a razão para eu não querer fazer um curso no exterior. Minha avó me perguntaria a razão para eu não ter sido arquiteto. Minha tia me perguntaria a razão para eu não ter sido professor. Todos - ou pelo menos a maioria - me perguntariam a razão para eu não querer seguir uma profissão tradicional.

É fácil pensar em seguir outra vida. "Vou ser engenheiro", eu posso me dizer. Mas a verdade precisa ser dita: eu não ando como um engenheiro. Para entrar em uma sala de engenharia na Universidade, o andar é diferenciado.

Eu, agora, vivo de ser jornalista. Mas, então, não estou feliz em ser jornalista? A questão não é a felicidade, mas sim a felicidade.

Para um dia eu ser alguém como escritor, o trabalho precisa vir desde já, não? Acho que como jornalista eu serei eternamente um meia-boca. Como escritor eu também posso sê-lo, mas quem sabe? Alguma coisa como escritor eu já fiz, então já tenho algum currículo para chamar de meu. Isso não vale de nada, já que nunca ganhei dinheiro com a literatura. Posso dizer que meus seis anos como profissional de jornalismo me deram um milhão por cento a mais em valores monetários que a arte. A única vez que eu achei que ganharia alguma coisa com um conto meu foi quando me disseram que eu tinha direito a R$ 16,25. O dinheiro nunca foi para a minha conta - ou fui eu que nunca conferi direito meu saldo?

A vida é triste, eu sei. Mas por que ela não pode ser triste comigo fazendo algo que eu penso que gostarei mais de fazer?

Eu sei que eu não escrevo bem. Não sinto nem segurança com as regras dos "porquês". Sinto-me mais seguro escrevendo "pq", mas em literatura eu não posso escrever "pq". Nota mental: aprender e ter segurança nos porquês. Não consigo desenvolver uma história longa, acho que não consigo organizar bem minhas ideias, mas deve ser como disse Clarice Lispector: "Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir". Charles Bukowski já disse, também, em seu poema "Então você quer ser um escritor?", que "se você tem que se sentar por horas / olhando para a tela do computador / ou debruçado sobre a sua máquina de escrever / procurando as palavras, / não escreva". Em contrapartida, Graciliano Ramos nos diz que "Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício (...) Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer".

Agora eu vou embora, porque apesar de Guido significar aquele que guia, eu ainda não sei para onde vou.