quinta-feira, 21 de maio de 2015

Praia aterrada do passado


“Escrevo para dizer que não morri, só voltei para casa” (Donato/Wagner Moura - "Praia do Futuro", em 1h45mins41segs)

"A convergência semântica entre amor e herói, que já está presente em uma etimologia imaginária do 'Crátilo' platônico, no qual Sócrates, de maneira jocosa, deriva a palavra herói (ήρωας) de amor (αγάπη), 'porque os heróis são gerados por Eros'" (Giorgio Agamben - "Entre Narciso e Pigmaleão", em "Estâncias - A palavra e o fantasma na cultura ocidental", página 195, Editora UFMG, 2007)

“O que tu ia fazer se eu sumisse um dia aí nesse mar?”, pergunta Donato (Wagner Moura) para o irmão caçula Ayrton (Jesuíta Barbosa). “Tu é o Aquaman, cara. Como é que o Aquaman vai sumir no mar se ele já é do mar?”, retruca Ayrton. É para sumirmos e nos encontrarmos (ou nos encontrar para sumir/sumir para nos encontrar), então, que o diretor brasileiro Karin Aïnouz (“O abismo prateado”, “O céu de Suely”, “Madame Satã”) se lança no roteiro (junto com Felipe Bragança) e direção do filme “Praia do Futuro” (Brasil/Alemanha, 2014), que por meio da metáfora do super/anti-herói (as personagens são identificadas com Speed Racer, Aquaman e Motoqueiro Fantasma e a parte estética também conflui para isso) conta a trajetória não linear do salva-vidas Donato, de seu irmão Ayrton e do alemão Conrad (Clemens Schick), em três capítulos compactados em magníficas 1h45mins de duração: I – “O abraço do afogado”; II – “Um herói partido ao meio”; e III – “Um fantasma que fala alemão”. Afetos são postos em xeque em uma história poucas vezes contada com tamanha mestria, focada na produção de sentido não da forma como conseguimos imediatamente decodificar em filmes enlatados, mas daquela maneira dolorosa e complexa, permeada de caminhos escusos e armadilhas profundas, que só a grande autoanálise é capaz de provocar no ser humano – a que nos faz descobrir quem somos.

Donato é um bombeiro salva-vidas, morador de Fortaleza (Ceará) e atuante na Praia do Futuro – “(...) lá não tem prédio por causa da maresia, do salitre, que só perde para o do Mar Morto. Não dá para construir prédio lá, porque o sal é tão violento que entra por dentro do concreto para comer os ferros” (Donato). Conrad, motoqueiro e dono de uma loja de conserto de motos na Alemanha, está no Brasil junto a um amigo (casado e com filhos na Europa), com a intenção de passear, mas após ambos entrarem no mar da Praia do Futuro, o amigo morre afogado. Donato tenta salvá-lo (“O abraço do afogado”), mas não consegue e vai até o hospital, onde encontra-se Conrad, para dar a notícia. Inicia-se, então, uma relação amorosa entre os dois homens. Ayrton, ainda criança (o irmão mais velho é tido, até então, pelo jovem como herói eterno e imbatível), vai, no dia seguinte à cena do afogamento, encontrar Donato na praia, momento em que ambos encontram Conrad – “Tu (Donato) contou para ele (Conrad) que eu sou o Speed Racer? Ele parece um motoqueiro fantasma” (Ayrton). Passa-se o tempo e, sem perguntas e sem respostas – apenas ausências sentidas por meio de gestos, olhares, toques e, principalmente, silêncio –, Donato está com Conrad morando na Alemanha (“Um herói partido ao meio”). A distância entre os irmãos (“O fantasma que fala alemão”) está presente e é focando no tripé Donato, Ayrton e Conrad (Aquaman/Speed Racer/Motoqueiro Fantasma) que o filme desenvolve-se. 

Por que Donato vai e não volta? Qual a falta que o irmão fez durante os anos para Ayrton? Qual a história passada e presente de Conrad? O que da relação amorosa dos homens nós sabemos? São sempre perguntas – nem sempre respostas – que o filme nos dá. E é esta, então, toda a beleza estética e de conteúdo dramático que o filme têm para nos apresentar. “Praia do Futuro” é um grande ensaio das relações e, por ser ensaio, não começa com Adão e Eva e nem termina com o fim do problema, mas se inicia na onda das emoções e é cortado no ápice do conflito, evidenciando a força que só a vida real tem. Reclama-se da falta de ação do filme. De fato, se formos comparar a filmografia de Karin Aïnouz com a de qualquer filme “de ação” de Hollywood, não acontece nada mesmo com os de Karin. No entanto, se olharmos de forma atenta, se nos enxergarmos de forma verdadeira, vamos sim ver todas as leituras possíveis deste grande clássico não apenas do cinema brasileiro, mas da cinematografia mundial. O poder do simbólico em nossas relações interpessoais é determinante e o filme nada mais faz do que conseguir de forma total retratar essa subjetividade arenosa e invisível que nos assola. Filmes focados em muita movimentação interior são a marca registrada do diretor (mestre em cinema nos EUA e radicado na Europa).

“O abismo prateado” é nada mais, nada menos, que um único dia na vida de uma mulher (Alessandra Negrini) que é abandonada sem motivo aparente pelo marido – em “O abismo...” e “Praia...” há cenas em que as personagens principais dançam sozinhas em uma danceteria, como forma extrema de encontro com suas individualidades e intenção de exorcizar seus demônios. Já “O céu de Suely” conta, em um registro avassalador do Nordeste, a vida de uma mulher que quer cuidar do filho e lidar com as circunstâncias nem sempre dignificantes da vida. Em “O abismo prateado” o marido fujão reencontra a mulher para viverem felizes para sempre? Em “O céu de Suely” a personagem-título encontra seu príncipe encantado para com ele viver em um castelo? Em “Praia do Futuro” teremos, mesmo, uma solução fechada para a problemática que é viver, conviver e se traumatizar? Não se vê razão para isso. São histórias comuns, de pessoas, de gente que não são o herói da literatura romântica dos séculos passados, mas sim o herói errante, o homem sem dom, que vemos em “A metamorfose” (Franz Kafka), “O homem sem qualidades” (Robert Musil) e “Diário de um ladrão” (Jean Genet), por exemplo. “Praia...” é um clássico (Ítalo Calvino), já que conseguimos (pelo menos eu consigo) ver sempre um filme novo a cada vez que o encontramos, um novo viés a cada sessão, a ele uma resposta diferente a cada encontro. Como em uma análise de terapia psicanalítica, é de extrema importância relacionar as cenas de ontem e de hoje, do passado e do presente, para conseguir fazer um retrato do filme. Essa é a chave.

Sempre que confrontado pelos motivos, Donato responde com silêncios. Sua infelicidade no Brasil não é necessariamente solucionada na Alemanha – “Deixe de tristeza, brasileiro. No futuro, tudo vai ficar bem. Ouvi dizer que no Brasil todo mundo é feliz” (uma mulher que trabalha no bar de uma boate, dizendo para Donato, em alemão). Sua paz de espírito em relação com a própria sexualidade não é também respondida em traços claros no filme – Ayrton, entredentes, chama-o de “baitola” e acusa: “Tu é um viado egoísta, que gosta de dar o cu escondido na porra desse Polo Norte”. Sendo visto como super-herói, é fracassando que Donato está inteiramente dentro de seu papel – “E se falhasse meu poder?”, pergunta Donato para Ayrton. Seu não-lugar, deslocamento e infelicidade o definem e o transformam ao longo do filme, fazendo com que o roteiro seja primordial para a compreensão da obra. Apesar de muito utilizadas neste texto, o filme possui poucas falas. Elas são de extrema importância para a compreensão da obra e, por isso, utilizo muito os diálogos para justificar minhas teses. A linguagem do corpo tem igual importância para a composição, e é nesta junção de linguagens que, como Freud entende, é que se consegue expurgar o mal – “Não tinha acabado já esse inverno? Está parecendo mais frio ainda” (Donato).

Lidando com a sexualidade à flor da pele – o corpo masculino é trabalhado de forma provocante para demonstrar o fogo e paixão (brega mesmo, porque o brega tem sua força) que representa a relação entre Donato e Conrad – o diretor Karin Aïnouz, para saber se o elenco teria uma boa química em cena, convidou Wagner Moura e Clemen Schick para um jantar, antes de saberem que seriam escalados para o filme. Foi lá que o diretor percebeu que havia entrosamento entre ambos e foi então que eles foram escalados para o papel. As cenas variam do sexo forte, com total entrega dos atores ao nu, ao beijo e à paixão, até o olhar desafiador, do dominante para com seu dominado, que ameaça e não compreende. A potência simbólica desta paixão é a cena em que ambos dançam “Aline”, que diz “Eu desenhei sobre a areia seu suave rosto que me sorria. Depois choveu sobre essa praia. Nessa tempestade, ele despareceu (...). Eu a procurei sem mais acreditar e sem esperanças para me guiar”, mas Donato está dançando com um retrato colado ao seu rosto, de uma menina, que estava pendurado na parede do apartamento de Conrad. Não se sabe quem é a menina.

P.S.: "De Aquaman para Speed Racer: escrevo para dizer que eu não morri, eu só voltei para casa. Aqui, nessa cidade subaquática, tudo para mim faz mais sentido. Eu não preciso me esconder no mar para me sentir em paz, nem preciso mergulhar para me sentir livre. E sempre que me perguntam como era aí, do lado de fora, eu conto de um menino que acha que não tem coragem, mas é o cabra mais corajoso que eu já vi: magricela quando todo mundo é forte, voz fina quando todo mundo é macho, pés pequenos quando todo mundo é firme. Conto do menino e digo que ele é meu irmão, que ele sou eu no dia em que eu tive que aceitar o quanto que eu tenho medo das coisas. Porque tem dois tipos de medo e de coragem, Speed: o meu é de quem finge que nada é perigoso; o seu é de quem sabe que tudo é perigoso nesse mar imenso". 

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