segunda-feira, 25 de maio de 2015

Hoje, Clarice vai me telefonar



Estou indo agora dormir e bateu uma nostalgia muito grande, porque lembrei-me de Clarice Lispector. Mas como eu posso lembrar-me de alguém que eu nunca conheci? Claro que conheci, oras, fui íntimo até: li seus livros e, por isso, não a decifrei, porém – quase – me decifrei. Maior escritora não dos brasileiros, mas de cada um de nós, Clarice poderia me ajudar, hoje, em minha iniciante carreira de escritor. 

É conhecida sua fama de oráculo de novos autores: o poeta Manoel Bandeira chegou a mandar seus poemas para ela, mas infelizmente não obteve resposta; o crítico e escritor José Castello mandou-lhe um conto de sua autoria, cuja resposta veio apenas tempos depois: “Liguei para dizer que recebi seu conto. Só tenho uma coisa para lhe dizer: você é um homem muito medroso e com medo ninguém escreve. Boa tarde”; e a favelada Carolina Maria de Jesus, que na verdade nunca endereçou ao Leme seus textos para serem analisados, mas como quase iletrada, recebeu o grande incentivo de sua vida por meio de Clarice: “Você escreve a verdade”. E eu, pobre coitado de 25 anos e 1.60m de altura, receberei de quem o incentivo para saber se escrevo bem ou mal? 

Acho que nunca entendi Clarice como queriam que eu a entendesse. Conheci-a por meio de seu último livro, “A hora da estrela”, aquele em que ela tentou ser mais “escritora”, com uma escrita mais “narrativa”, contando de verdade uma “estória”. Era prova de escola e, por mais que eu tivesse me apaixonado perdidamente, sem eira nem beira, num poço sem fundo, por palavras que me caíram como um soco no meio do coração, por aquela “Hora...”, a professora não concordou com quase nada do que eu disse sobre o livro. Fazer o que? Ou eu não a decifrei, ou ela me decifrou, ou eu a decifrei de um modo que a professora não decifrou, ou ninguém decifrou-se, restando a ninguém entender ninguém, apenas aceitar essa grande dor que é viver. 

Ela estaria hoje, se viva fisicamente fosse, morando naquele canto entre Botafogo e Copacabana, em um apartamento que pegou fogo porque ela dormiu com o cigarro aceso, mas que hoje é habitado pela atriz Zezé Mota. E se eu encontrasse Zezé e levasse ao apartamento meus contos? O apartamento conseguiria ler-me? Soube que devem construir uma estátua de Clarice na praia do Leme, tipo aquela que fizeram de Carlos Drummond de Andrade na praia de Copacabana. Disseram-me certa vez que Drummond foi o brasileiro que mais perto chegou de ganhar o Nobel de Literatura. Clarice teria chegado perto assim? Caso eu perguntasse para sua estátua: “Eu sou bom?”, receberia alguma resposta? Eu, tal qual Pigmaleão, apaixonaria-me pela estátua e estaria amarrado a ela para sempre, assim como o estou pela palavra que chega a mim de Clarice. Mas aquelas letras não são Clarice, são apenas letras. Mas aquilo tudo é Clarice/Guido. 

Vou dormir e vou sonhar que ela me telefona e me diz: “A partir de que momento o escritor passa a ser uma pessoa triste?”, mas então eu lhe responderia: “Clarice, fizeram essa pergunta para você, na verdade”, no que ela me responderia: “Mas eu quero saber o que você teria a dizer sobre isso”. Eu, então, quem sabe, sonhando, diria, que nem ela, “basta qualquer baque mais forte”? Acho que responderia que escrevo porque viver não é suficiente para dar conta, mas nem a linguagem consegue dar conta da experiência, então o que eu posso dizer? “Escrevo por não ter nada a fazer no mundo”, ela disse, e ela disse também: “Vocação é diferente de talento: você pode ser chamado e não saber como ir”. Pronto, se eu escrever mal, direi isso mesmo, dando os créditos para Clarice: tenho vocação, mas não talento. E pior que eu me chamo Guido, aquele que guia. Clarice, me liga hoje, por favor.

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