terça-feira, 8 de novembro de 2011

O funk e a mídia: uma lógica míope


O funk, no contexto atual, está quase que completamente inserido dentro dos veículos de comunicação. Ou seja, para que a música funk (feita majoritariamente por pessoas oriundas de favelas e regiões menos favorecidas da cidade do Rio de Janeiro cantando sua realidade) consiga entrar nos grandes canais de televisão e nas emissoras de rádio, deve se esvaziar de sentido original e abandonar suas letras recheadas de referências a sexo, violência e pobreza. Em cenário que vem se consolidando desde a segunda metade dos anos 1990 e que já está assimilado tanto pela mídia quanto pelo mercado consumidor, o estilo musical “funk melody” é constituído por letras mais leves, que se distanciam ou falam de maneira mais enviesada sobre sexualidade, fugindo de referências explícitas a comandos e facções criminosas, mas reforçando o conteúdo do sentimento amoroso, principalmente.

Esta vertente do funk vai de encontro ao que se conhece por funk “proibidão”. Como o nome já sugere, é uma música que fala sem rodeios sobre um cotidiano de drogas, violência, facções criminosas, recheado de palavrões e linguagem sexual. O funk dos anos 2000 é, portanto, dividido majoritariamente entre estes dois grandes grupos, sendo a funk melody chamada de “brega” por quem consome e dá mais credibilidade ao “proibidão”. Sob uma lógica da indústria do mercado cultural, o principal objetivo de certos grupos musicais de funk é cantar em programas de auditório dominicais de emissoras de televisão aberta, como Rede Record, SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) e, mais que as outras, Rede Globo. No entanto, é difícil emplacar uma música que utiliza letras com palavrões e outras “indignidades” em programas do Faustão, Luciano Huck, Eliana e Rodrigo Faro. Portanto, elas são adaptadas e adquirem um teor mais suave, leve, voltado para as crianças e os idosos do Brasil que estão assistindo de casa. O teor socialmente contestador da música funk, portanto, é perdido neste momento. Músicas fortes o ligam mais às camadas pobres e oriundas da exclusão, reais a eles. Já a música suave os incorpora à classe média e os esvazia de contestação social. Mas atualmente, o mercado tendo percebido a capacidade de adesão da juventude classe média e alta de bolsões como Grande Tijuca, Zona Sul e Zona Oeste (Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes) à música do “proibidão”, já o está realocando rapidamente no contexto.

Uma boa visão que pode ser adquirida da relação conflitante entre a mídia e a música funk é o modo como os jornais impressos lidaram com ela durante os anos 1990. Consolidando o estereótipo de música funk feita por “pretos, pobres e favelados”, como já diz a música, foi a partir dos anos 1990 que ela começou a ter espaço nos cadernos policiais e de cidade. Como demonstra o professor Micael Herschmann, da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, em trabalhado de nome “O Funk e o Hip-Hop invadem a cena”, publicado pela Editora da UFRJ em 2000, a mídia a partir de episódio do verão de 92 passou a publicar o funk fora dos cadernos culturais. Segundo ele, em 1990 e 1991, 100% das reportagens que abordavam o funk o faziam nos cadernos culturais, quando se analisam os principais jornais cariocas e um paulista da época (O Globo, Jornal do Brasil, O Dia e Folha de S. Paulo). Já em 1992 e 1993, 94.8% e 66.6% das matérias, respectivamente, foram veiculadas nos cadernos de cidade e policial. Mas o que desencadeou esta mudança?

No verão de 92, em pleno domingo de sol, grande grupo de pessoas de cor negra e mulata encontrou-se nas praias de Ipanema e Arpoador. “Esses arrastões tornaram-se uma espécie de marco no imaginário coletivo da história recente do funk e da vida social do Rio de Janeiro, fortemente identificada com conflitos urbanos onipresentes.” (HERSCHMANN, 2000: 95). No entanto, com o passar do texto, dá a compreender que o que houve não foi necessariamente um arrastão constituído por assaltos etc., mas sim apenas um encontro de grande grupo de jovens que interagiram e, contudo, causaram medo na população moradora do bairro, causando pânico generalizado. “Segundo eles (comandantes do 19º e 23º Batalhão da Polícia Militar), os participantes fazem parte dos mesmos grupos que frequentam os bailes funk do subúrbio e da Zona Oeste. O encontro das turmas rivais na areia provocou o tumulto e o pânico entre os banhistas. Os incidentes ocorridos nas saídas de praias aconteceram devido ao número insuficiente de ônibus nos pontos finais.” (O Globo, 20/10/1992). Nesta mesma lógica, pode-se inserir discurso de Ieda Tuchermann, professora da ECO/UFRJ, onde conta episódio ocorrido em mesma época no Shopping Rio Sul, localizado entre Copacabana e Botafogo. Grande grupo de jovens negros e mulatos adentrou o recinto, causando temor de consumidores e lojistas, que fecharam seu comércio.

Em editorial publicado em 05 de junho de 1995 no “Jornal do Brasil”, de nome “Juventude transviada”, afirma-se que “o mundo funk agasalha em seu espaço paus, pedras e armas de fogo. Grupos de jovens, em busca de divertimento, espalham muito mais terror que alegria. Transformou-se num ritual de vida ou morte. Só por um milagre a tragédia não tem sido maior entre um milhão de jovens que se espremem nos fins de semana em clubes, quadras, galpões, e ruas de terra do Rio e da Baixada Fluminense, para dançar e brigar ao som do funk. (...) A presença do tráfico de drogas nos bastidores reafirma a convicção de que os bailes funk são um caso de polícia.”

O texto mostra que, já no final dos anos 1990, o contexto do funk voltado aos cadernos policiais e de cidade foi se igualando ao do cultural. A média dos anos 90 foi de 56% em policias e cidades, e 44% em cadernos culturais. Para Herschmann, muito disso ocorreu na mídia impressa em decorrência da adesão dos grandes programas da televisão aberta ao funk melody. Atualmente, na década de 10 dos anos 2000, o que se pode perceber é o discurso exótico do funk. Entre os anos 90 e 2000, houve a grande adesão da juventude classe média ao funk (em grande medida ao melody e em medida com ascensão ao proibidão) e hoje a mídia já é cautelosa ao tachar o funk como criminoso. Não que este discurso tenha sumido e seja mentiroso, pois há realmente a droga e tráfico inserido no contexto do funk e da favela, mas é fato que a expressão cultural é legítima e apenas reproduz situações vividas por uma parcela da sociedade, revelando grandes talentos. Hoje, a pauta recorrente de programas como “Profissão repórter” (Rede Globo), “A liga” (Rede Bandeirantes), e cadernos sobre a programação do fim de semana nos impressos, como “Rio Show” (O Globo), é a adesão da classe com maior poder aquisitivo e, portanto, “estranha” no ambiente da desigualdade do funk “original”. Eles indicam festas funks “originais” no morro, revelam as festas que as patricinhas de salto alto e os mauricinhos de blusa pólo e carro chique estão passando a frequentar nestes locais. A maioria destas matérias deixa implícita a ideia de ambiente estranho a eles e sua força está no estranhamento causado pelo fato “exótico” dos ambientes inversos.

Outro fenômeno que auxilia na consolidação do funk no imaginário social e longe das sociopatia de antes são as redes sociais. Elas estão aumentando a repercussão dos ocorridos dentro deste contexto e dentro delas surgem também grandes veiculadores do funk. Um bom exemplo é o grupo “Os avassaladores”. Com a música “Sou foda” replicada no blog de humor “Não Salvo” e alcançando grande sucesso no “YouTube”, eles viraram sensação do verão de 2010 e 2011. Consumidos são por toda a classe média, para quem os blogs de humor e a internet banda larga é mais acessível, mas hoje não se pode mais dizer com total propriedade que um tipo de produto cultural é reservado a determinada “classe”. “Sou foda” foi, portanto, um fenômeno geral, independente de “classe” social. Ocorre, então, com isso, uma repaginação do funk dentro da lógica da indústria cultural, eclipsado pela grande mídia e não mais restrito aos becos das favelas. Em programas de auditório dominicais “Sou foda” não é “foda”, mas sim “sou delas”. Mas foi ganhador do prêmio “web-hit” do Video Music Brasil (VMB) da MTV. O consumo do jovem anos 2000 é multimídia e pop. As redes sociais, a internet, estão repaginando o funk e remexendo em seu contexto violento.

O discurso midiático é, portanto, míope, pois ao mesmo tempo em que exalta o funk, em outros continua mantendo-o no campo do “outro”, do exótico e no contexto violento e excluído. O funk, para estar inserido dentro da televisão aberta, precisa reinventar-se e, de certa forma, descontextualizar-se. Já o mercado, notando a grande adesão da camada média ao funk, tanto melody quanto proibidão, incentiva o consumo do funk e de seu contexto, crescendo o número de casas noturnas tradicionais voltadas ao funk e que recebem artistas como DJ Marlboro, Mister Catra, Gaiola das Popozudas, Os Havaianos e Os Avassaladores. O samba, assim como o funk, passou por uma assimilação por parte da população média e com o passar dos anos foi adquirindo outros contextos, mas até hoje encontra certas barreiras por parte de alguns grupos, no que diz respeito a sua banalização e extrema sexualidade, na lógica da Marquês de Sapucaí.

Enfim, a mídia demonstra que a favela vale a pena pelo funk, mas que não vale a pena pela violência. Hoje, a mídia não considera em primeiro momento o funk como sinônimo de violência, mas esta separação ainda não esta totalmente clara. A sociedade burguesa esvaziou de sentido o funk em certa medida e o discurso midiático é o da integração total e irrestrita entre a favela/funk com o asfalto/bossa nova. Mas será um discurso verdadeiro?

Bibliografia

  1. HERSCHMANN, Micael. O Funk e o Hip-Hop invadem a cena. Editora UFRJ, 2000.
  2. VIANNA, Hermano (organização). Galeras cariocas: territórios de conflitos e encontros culturais. Editora UFRJ, 1997.
  3. ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Jorge Zahar Editora, 1985.

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