quinta-feira, 4 de junho de 2009

Paul Auster e a depreensão da realidade, identidade e linguagem na produção literária


- Trabalho realizado para a matéria de Teoria da Literatura II, do curso de Letras Português-Literaturas da Uerj. Obra analisada: "Cidade de vidro", primeiro conto do livro "A trilogia de Nova York", de Paul Auster.

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Em "Cidade de vidro", escrito pelo estadunidense Paul Auster e lançado no final dos anos 1980, depara-se com questões que giram em torno da identidade do ser humano, que nos levam, também, a vislumbrar a dúvida sobre a realidade real e a realidade ficcional. Além disso, há uma abordagem muito interessante acerca da linguagem humana, de sua obtenção até seu uso concreto. Sendo assim, um joguete é formado entre o leitor e o escritor, que nos mostra, com a obra, conceitos e ideias sobre a concepção literária, fazendo uso dela em todo o momento, tanto em citações a ícones famosos da literatura, como também com o questionamento dos métodos de como uma obra é preparada.

Primeiramente, irá se abordar a questão da identificação das personagens dentro do texto. Tal amostragem revela o poder que o autor detém diante de sua escrita, assim como a sua pretensão de colocar em pauta o problema da identidade dos indivíduos. Da mesma maneira, é igualmente pertinente elaborar-se, com a questão da identificação das personagens, uma dúvida em torno da realidade e verossimilhança presente em "Cidade de vidro" e o mundo.

Paul Auster, cidadão americano e supostamente uma pessoa real, até que se prove o contrário, cria uma obra, em que a personagem principal chama-se Quinn. Ele, igualmente escritor, elabora romances de mistério, tem uma mulher e um filho, que já morreram, e utiliza, em seus trabalhos, o pseudônimo de William Wilson. Dentro de seus livros de mistério, existem pessoas, como o detetive particular e narrador Marx Work. No decorrer de "Cidade de vidro", Quinn descobre outro nome, Michael Saavedra, homem que indicou à mulher de Peter Stillman seu "nome" para um ofício. Tal ofício, seguir o homem que é pai de Peter Stillman.

Entretanto, apesar de todos esses serem nomes dados pelo autor à personagens de seu livro, é notório que conexões devem ser feitas e interpretações podem ser encontradas diante de certas conclusões. Então, lê-se que Quinn utilizou, por cinco anos de sua vida, o nome de William Wilson para assinar seus escritos. Apesar de tudo, existe um conto, escrito por Edgar Alan Poe, cujo título é "William Wilson". Nele, a personagem-título confronta-se com outro homem, de mesmo nome, mas com atitudes e personalidade opostas. É dado, aí, um conflito entre os eus de William. Conclui-se, então, que um é ele e o outro é o mesmo, apenas seriam o "bom" e o "mau", atitudes conflitantes, mas indissociáveis e complementares. Já Michael Saavedra, citado apenas de modo passageiro, nada mais é que uma referência a Miguel de Cervantes. Michael sendo o primeiro nome do escritor espanhol em língua inglesa e Saavedra sendo o último sobrenome do mesmo, que viveu durante o século XVI e escreveu a principal obra de literatura em língua espanhola, "Dom Quixote de La Mancha". A personagem-título da obra do espanhol, por sua vez, era um homem que de tanto ler livros de cavalaria, acabou endoidecendo, acreditando que moinhos eram inimigos e que seu pangaré era o maior cavalo do mundo. Por último, Paul Auster, autor de "Cidade..." põe seu nome dentro de sua história. Qual seria a razão para Quinn, ao ser chamado de Paul Auster, pela pessoa que estava do outro lado da linha do telefone, aceitar o pedido de ajuda? Afinal, pelo nome que o leitor lê na folha de papel, Quinn é Quinn e não Auster. Contudo, como mesmo afirma Peter Stillman reiteradas vezes: "Sou Peter Stillman. Este não é o meu nome verdadeiro. Obrigado.", não há como ter certeza de absolutamente nada, nem do próprio nome, algo básico e primordial para a identificação e noção do ser humano diante de si e do mundo que gira em seu redor. Finalmente, no decorrer da leitura do conto, quando Quinn/Auster está na estação de trem aguardando o senhor Stillman, pai de Peter Stillman, depara-se com dois dele e espanta-se. Depois, escolhe apenas um para seguir. Qual seria a razão do espanto de ver dois iguais, se o próprio Quinn estava se passando por outro, tendo uma vida dupla? O autor, então, chega-se a conclusão, se utiliza de referências literárias e situações completamente esquizofrênicas e desconexas que remetem à ausência de normalidade dos fatos.

Ao se seguir com a análise da primeira parte de "A trilogia de Nova York", vê-se que Auster faz reflexões que seriam fruto do pensamento do escritor Quinn, mas que na verdade podem se adaptar à lacunas referentes à produção literária e sua conexão com a realidade dos fatos. Claro e obviamente, nesse caso, o questionamento seria pertinente à obras que se propõe a serem o mais realistas possíveis. O melhor exemplo se encontra nos primeiros parágrafos do capítulo 3:

"O discurso chegou ao fim. Quanto tempo havia demorado, Quinn não sabia dizer. Pois só agora, depois que as palavras cessaram, deu-se conta de que estavam no escuro. Ao que parece, um dia inteiro tinha passado. Em algum momento durante o monólogo de Stillman, o sol se pusera na sala, mas Quinn não havia percebido. Agora podia sentir a escuridão e o silêncio, e sua cabeça zunia com essas duas coisas. Muitos minutos passaram."

O monólogo a que Quinn se refere é o do capítulo anterior, travado por Peter Stillman. Ele, em si, dura oito páginas. O leitor, ao lê-lo, pode vir a demorar, no todo, uma hora. Então, qual seria a razão para se acreditar que um discurso, completamente reproduzido, demorou mais tempo para se realizar do que a leitura do mesmo? Até poderia ocorrer de interrupções, interferência e obstáculos naturais na fala cotidiana, mas a personagem Quinn realmente se dá a acreditar que ele não compreende essa diferença. Deste modo, enxerga-se a contradição temporal da passagem de tempo nas obras, sendo essa uma "defasagem" da produção literária que se almeja perceber como real e verossimilhante.

Outras situações em que nota-se uma teorização do processo de produção da literatura é quando Quinn está para sair de sua residência pela primeira vez, no decorrer do livro. "Só quando já estava com a mão na maçaneta da porta, Quinn começou a suspeitar do que estava fazendo. 'Parece que estou saindo de casa', falou para si msmo. 'Mas se estou saindo, para onde exatamente estou indo?'" Tal é uma relação com a descrição dos atos de uma personagem narrativo, assim como quando Quinn não consegue colocar em mente a visualização minuciosa de Virginia Stillman:

"Foi uma mulher que abriu a porta do apartamento. Por alguma razão, Quinn não estava esperando por isso e ficou desconcertado. As coisas já estavam acontecendo depressa demais. Antes que tivesse uma chance de assimilar a presença da mulher, uma chance de descrevê-la para si mesmo e dar forma a suas impressões, ela já estava falando com Quinn, obrigando-o a responder. Portanto, já nesses primeiros momentos, ele havia perdido terreno, começava a ser deixado para trás. Mais tard, quando teve tempo para refletir sobre esses acontecimentos, Quinn conseguiria reconstituir seu encontro com a mulher. Mas isso era o trabalho da memória, e coisas lembradas, ele sabia, tinham a tendência de subverter as coisas lembradas. Em consequência, ele nunca conseguiu ter certeza de nada disso."

Ou seja, nos livros, veem-se as descrições minuciosas de características tanto físicas quanto pessoais das personagens, mas na vida real cotidiana, não temos a capacidade de fazer este juízo de valores.

Outra consideração literária é a deflagração da desnudes da personagem em terceira pessoa. Tanto o autor quanto o leitor sabem tudo sobre ele. Mas será que sabe-se tudo de verdade?

"Tudo em Peter Stillman era branco. Camisa branca, aberta no pescoço, calça branca, sapato branco, meia branca. Contra a palidez da sua pele, a finura de linho do seu cabelo, o efeito era quase de transparência, como se fosse possível ver as veias azuis através da pele do seu rosto. (...)
Stillman se acomodou lentamente na poltrona e por fim voltou a atenção para Quinn. Quando seus olhos se encontraram, Quinn teve de repente a sensação de que Stillman tinha ficado invisível."

Já no que diz respeito à linguagem, nota-se na história da Torre de Babel e de Adão e Eva, contadas em capítulos do conto, a intenção de interação com a questão da fala truncada e estranha de Peter Stillman e também de seu trancamento durante alguns anos dentro de um quarto. Embasado por pessoas que seriam supostamente verdadeiras e considerações atribuídas a elas, Auster tece visões sobre a linguagem essencial. Algo como a linguagem pura, haja visto que o pecado foi criado com a expulsão de Adão e Eva do paraíso, sendo que para existir o ruim, deve-se haver o bom, então nos tempos do Éden, havia um estado puro, metafísico. Será que crianças isoladas, que nunca houvessem escutado adultos ou outras pessoas falarem, seriam capazes de adquirir uma forma de comunicação? O caso de Peter Stillman seria muito semelhante ao de Kaspar Hauser, surgido em 1828. Casos mais bem sucedidos quanto a obtenção da comunicação que outros, mas casos que o autor utiliza que são, de fato, concretos. Uma curiosidade além é o gosto de Kaspar Hauser por vermelho e o caderninho vermelho de Quinn, que ele comprou de forma tão voraz e amável.

Em contrapartida, como se pode acreditar na enumeração de todos esses casos? "Cidade de vidro" trata-se de uma obra ficcional e evidentemente repleta de fatos ficcionais, por mais verossimilhantes que sejam. Então, como crer que os exemplos dados por Auster são verdadeiros? Kaspar Hauser, é unanimidade, realmente existiu, pois o "meu" conhecimento de mundo permite ter noção disso, mas como dar uma credibilidade sincera para a enumeração de estudos e dissertação de pessoas que nunca antes de ouviu falar? É notório que Heródoto existiu, mas como "eu" vou saber que Henry Dark ou John Milton existiram mesmo? Se algum leitor, anteriormente, já tiver ouvido falar dos dois, uma coisa. Mas se não, como garantir? Uma obra de ficção não possui o mesmo estatuto que as de não-ficção, já autoexplicativas.

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