domingo, 11 de janeiro de 2009

As veias carcomidas de uma vida bandida - III) Sentimento póstumo


“Rio de Janeiro, 06 do 06 de 06

Eu escrevo tais palavras para que sejam lidas depois que eu morra. De preferência, durante o meu funeral. Se vistas fossem antes disso, não teria mais coragem de caminhar pelas calçadas tortuosas da cidade. A vergonha seria tanta que sobreviver se tornaria, apenas, mero processo mecânico respiratório. Quedar-me-ia em casa, para nunca mais sair. Por isso, quem estiver passando os olhos por tais linhas tortuosas, antes de minha ascensão aos céus, que pare de imediato.
Conheci o amor de minha vida em algum dia, de algum mês, de algum ano. De supetão, tudo se anuviou diante de mim e vi que a pura e simples existência, que antes era tão clara, no momento se fazia escura. Perdi os sentidos e não agi mais por conta própria. Fui sendo levado pelos fatos e circunstâncias e impulsionado a venerar o ser idolatrado cada vez mais e mais. Pode parecer estranho para o leitor inexperiente nas questões dos corações sofridos e calejados. Mas é preciso que fique bem claro na mente de cada um de vocês: quem já amou sabe a dor e a delícia de gozar no céu e sofrer no inferno. Apesar de tudo, creio que o texto só se fará claro, por completo, para a pessoa que eu amei. Aliás, para a pessoa que eu, infelizmente e felizmente, ainda amo.
O breu do seu quarto acalentava a alma dos dois corpos que ali sempre padeciam. A música exortava sensações excitantes e declarativas. A junção dos dois permitia a união. Ao menos de uma das partes do casal. Ou seja, ao menos de mim. Porque, pelo ser amado, nada posso responder. Só acerca da minha pessoa tenho a capacidade de tecer julgamentos e declarações. Dele, não sei nada. Só sei que viveu para estar ao meu lado durante a minha passagem por este lugar. Nem que o “ao lado” seja somente nos meus sonhos noturnos e perfeitos.
Ficamos juntos, de início, por três semanas e quatro dias. Duas semanas e três dias após o término do caso, tivemos uma recaída. Acabou-se por aí. Eu era muito carente. Eu era muito subjugado. Eu pedia muitas desculpas. Eu, simplesmente, deixei que as coisas dessem errado. Eu era um completo e repleto asno. Eu me envolvi. O ser amado não. Eu me fodi. Creio que ele não. Eu sofri. Ele sofreu? Provavelmente. Mas não de amor. E sim de sufocação. Eu o matei aos poucos.
Todos me diziam: o tempo resolve tudo. Depois de alguns meses, até resolveu. Tentei me refugiar em outros braços e lugares. Acostumei-me com a ausência. Lembrava-me dele muito esparsamente. Pensei que havia conseguido exorcizar o passado. Quando um relacionamento poderia dar certo, cultivava. Ele sempre acabava. Ou porque a pessoa ao me lado não me queria mais e me descartava. Ou eu que não me interessava mais na pessoa e a queria esquecer por conveniência da comodidade. Ou a pessoa morria. Sofria mais no segundo caso. Qual o motivo para não embarcar em um romance que a outra pessoa está interessada em iniciar? A parte mais difícil estava resolvida e eu simplesmente não estava satisfeito. Porque, no amor, quando você o ama, é fazê-lo te amar também. Enfim... Um dia houve uma morte. Ele simplesmente morreu. Se foi-se pro outro lado da vida. Mas até que as coisas, no decorrer do ano, estavam caminhando toleravelmente bem. Eu nem pensava mais nele com tanta freqüência.
Mas meu aniversário chegou e ele ligou. Encontramo-nos, mas ele recusou. Desisti. Não o vi mais durante o ano.
Sendo que existiu o ano seguinte e ele me viu. Mais perto do que nunca. O que fazer?
Eu, a personagem, percebi que apenas com ele os sinos tocavam.
Apenas com ele os anjos cantavam. Somente com ele.
Para os ultra-românticos, a poesia preenche o vazio.
Para os bons de ouvido, uma música preenche o vazio.
Para os leitores, um livro preenche o vazio.
Para mim, nada está preenchendo o vazio.
Lutar ou desistir? Agora que vocês lêem isto aqui, já sabem do meu destino. Já sabem se valeu mesmo à pena lutar ou não. Mas eu, por enquanto, ainda não sei. Espero que não morra de morte doída. Espero que, por ele, eu não morra. Quando eu já estiver morto, vocês me digam. Ao pé do ouvido, como ele fazia. Ele me abraçava e conversava comigo. Ele fazia. Ia, Ia. Ia. Ia. Passado. Sempre passado. Nunca presente. Inferno.
Ao descerem com o caixão pelas ruelas do Cemitério do Caju, declamem, para mim, por mim, o ‘Soneto da separação’, por favor. Se o meu amor estiver perto de vocês na hora, não o incomodem. Ele deverá estar sofrendo. Digam apenas uma coisa: “O morto pede desculpas por morrer sem, ainda, ter você.
Grato, eu mesmo.”

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