domingo, 11 de janeiro de 2009

As veias carcomidas de uma vida bandida - I) A vida da morte

Arcádia Gonzáles pariu Vovó em um dia chuvoso de abril. Não era muito comum tal fenômeno meteorológico em tal mês. Naquela cidade esquecida por Deus e pelo Diabo, se chove é por sorte, muita sorte. A população acreditava piamente que se o rebento nascesse em dia de sol, teria sua saliência para fora e, se nascesse em dia de águas, teria sua saliência voltada para dentro. É por isso que existiam tantos machos em um espaço tão restrito. Difícil perceber que aquilo era uma cidade. Se fosse constituída de quatro avenidas principais, oito ruas de menor importância e umas duas praças, era muito. Mas já bastavam para encher de satisfação e alegria os moribundos semi-analfabetos e completamente desprovidos de senso crítico. O lazer se constituía em escutar ao rádio sintonizado na Estação Central todos os dias santos e não santos, às vinte horas. Cinema ninguém sabia que tinham inventado. As missas de domingo eram obrigatórias para todos, sendo que as viúvas se enfurnavam cotidianamente no local escurecido e repleto de imagens divinas trazidas pelos Zulus em séculos passados. Elas oravam por seus maridos ou amantes, esperando que não os castigassem pelos pecados cometidos em vida. Como poucos sabiam ler, poucos livros eram lidos por esses poucos. Vila Boa, definitivamente, era uma aldeia feita por fanáticos religiosos, por pessoas que perceberam que os ventos uivantes vindos do sul enlouqueciam os que por muitos já eram considerados birutas e, por fim, por homens mal cheirosos que gostavam mais do laboro do que de casa, de mulheres reprimidas que só sabiam dar à luz, rezar e lavar a louça, de crianças que brincavam com as vacas e os porcos e por adolescentes cheios de tesão retido.
Ninguém desejou boa hora para Arcádia Gonzáles. Santa Gorete fizera chover e, em conseqüência do fato, todos estavam assentados em seus respectivos quintais observando o milagre espetaculoso. Além de fazer crescer mais rapidamente as árvores, esse acontecimento faz com que as abelhas amarelas acendam seus traseiros com mais força, sendo as estradas melhor iluminadas e não deixando que os viajantes se percam pelos tortuosos caminhos que levam até a Capela de San Martin de Allegros. Um dos que estavam estarrecidos diante do dilúvio era o progenitor de Vovó. Benito Prestes nem se deu conta dos berros doloridos de sua esposa que, notando a ausência do bem amado, aceitou a idéia de ter que ter a filha sem ter ao seu lado quem sempre quis. Andou cambaleante até sua cama de jacarandá comprada em sua lua-de-mel e trazida até sua casa pelos escravos bicentenários que um dia foram pertences de seus bisavós maternos. O tempo como seu inimigo, não se preocupou com alguns detalhes que jamais passariam despercebidos por gestantes mais atenciosas. Abriu as pernas e pediu para que continuasse viva depois daqueles minutos intermináveis. Saiu. Se chorou, Jesus a calou. As duas, tanto uma quanto outra. Pois eram fortes. Todas as mulheres daquela família o eram. Fortes por fora e, por vezes, nem tanto por dentro. Mas isso não vem, não vinha e nunca virá ao caso. O que importava mesmo é que as moças daquela prole conseguiram passar por tudo nessa vida cuspida por algum ingrato.
Benito Prestes sempre freqüentou os bailes promovidos no Quartel General de Figueiroa. Arcádia Gonzáles nunca foi muito adepta aos festejos. Ele aprendeu com os amigos o real significado da diversão. Ela foi ensinada pelas freiras ortodoxas da Igreja Católica que ler a cartilha sempre antes de todas as refeições e antes de dormir era fundamental. O dia em que se conheceram era de comemoração. E as comemorações na cidade eram concebidas na Igreja de Nossa Senhora dos Lamentos ou no Quartel General de Figueiroa. As espirituais na primeira e as carnais no segundo. Como bailes não são muito bem vistos por padres nem freiras, eram realizados sempre aos sábados no Quartel. No baile em que se conheceram, seria eleita a pessoa que viveria por mais anos dentre todos os presentes. Dádiva única dada para a mulher, preferencialmente, mais bela dentre todas. A premiação se realizava em um espaço em média de cento e vinte anos, pois é a expectativa de vida das mulheres anteriormente condecoradas. E uma senhora só pode colocar a Coroa da Centenária quando a antiga dona sucumbir. Para se chegar ao Quartel era difícil. Isso por causa da densa Floresta de Eucaliptos, que mata sem piedade os desejos de plantio de qualquer outra forma vegetal e também pelas montanhas desproporcionais ao tamanho dos habitantes daquela delimitação territorial. Altas e cobertas de gelo durante metade do ano. Nasceram muito depois da construção de uma das melhores rodovias do país. Chamar-se-ia Rodovia Calcaso, mas o terremoto que assolou o estado durante três dias consecutivos, fez com que surgisse, bem no meio desta, uma das maiores montanhas vistas pelos homens de então. Esses dois fatores citados anteriormente se transformavam em empecilho para a passagem de indivíduos para o local das festividades carnais. Benito Prestes, com seu espírito aventureiro e a falta de moedas de ouro no bolso, juntamente com seu grande companheiro Pepe Legrel, percorreram de pés dez quilômetros, até chegarem, depois de algum esforço, ao Quartel. Já Arcádia Gonzáles decidiu-se a não sair de casa. Preferia muito mais praticar a rotina rotineira do que arriscar-se por entre matas e pedras grandes para chegar a uma bobagem de entrega da Coroa de Não Sei O Quê. Depois de tudo, nunca se achou bela, então, não via coerência em ficar deslumbrando a beleza alheia, em decadência da própria. Mas, por insistência das dez irmãs que possuía, cedeu.
Benito Prestes chega com Pepe Legrel a “Festa da Premiação da Centenária”. Chegaram bem antes de todos. Para o ócio não tomar conta de seus corpos e mentes, resolveram caminhar por entre os soldados que lá estavam de serviço, para espairecer um pouco. Como não tinham relógio nem sabiam muito bem os números, noção nenhuma havia da parte deles do horário de início da grande premiação. Sabiam apenas do dia em que seria realizada. Ainda do outro lado de Vila Boa, Arcádia Gonzáles e outras dez Gonzáles iam de carroça, puxada por quatro jegues cor de mel, acabados e com as patas calejadas de tanto caminhar. Quando conseguiram chegar, viram todas aquelas pessoas que sempre viam. Todas aquelas pessoas que sempre souberam o nome. Todas aquelas pessoas que sempre... sempre era a mesma coisa. Arcádia Gonzáles, repentinamente, sem nenhum aviso prévio, sentiu-se estafada da vida. Cansou-se daquela vida que vivia tão igualitariamente há dezessete anos. Parou, deixou as irmãs continuarem o caminho para o centro da multidão de meia dúzia de quatro e respirou fundo. Dar um escândalo, não daria, porque isso não é coisa que se faz. Simplesmente olhou para trás e quis que sua vida fosse um pouquinho oposta do que era. Refletiu. Flutuou até a barraca em que se vendia água benta e pediu um copo. Lá se vendia e se comprava de tudo. A vendedora charlatã, dona da birosca, quando se viu desempregada, foi até o lavabo de sua residência e abriu a torneira. Pegou uma garrafa de plástico e colocou toda a água dentro. E com uma caneta escreveu em letras ruins: “Água benta do Rio Jordão”. Nunca mais precisou pedir dinheiro emprestado para terceiros. Depois de comprar a suposta água benta, Arcádia Gonzáles foi até o banheiro público, que fica afastado do meio do povo. Segurando o copo com toda a força que possuía em suas grossas mãos, tomou. Beber a água seria mais eficaz do que jogá-la na testa. Assim, a súplica subiria mais veloz ao céu e chegaria com mais nitidez aos ouvidos do Senhor. Engoliu tudo. Pediu outra vida. Pediu mais amor. Pediu mais beleza. Pediu mais furor. Pediu mais, mais, mais, cada vez mais.
Benito Prestes não imaginava que se lembraria daquele dia como o último em que veria os oficiais do exército com bons olhos. Ele e seu amigo cansaram-se de tanto nadar por aquele mar de uniformizados e resolveram voltar para onde já deveriam estar concentradas as pessoas. Logo que se aproximaram, os indivíduos começaram a berrar como se fossem leões famintos, sedentos por carne fresca. Pepe Legrel disse para Benito Prestes que os portões haviam sido abertos e que os comes e bebes começariam logo. Pois, como sempre se foi de costume, comia-se e bebia-se muito, apesar da miséria de grande parte das famílias. E sempre há motivos para se comemorar e comer, não necessariamente nessa ordem. A ordem seria esta: comer e beber, depois iriam todos aos seus respectivos assentos, para desfrutarem da semi-sesta. E, por último, depois de meia hora de descanso, assistiriam ao desfile das pré-candidatas, escolhidas a dedo pelo locutor da Estação Central. No fim das contas, resumindo-se os acontecimentos, Herundina Gonzáles, irmã mais velha de Arcádia Gonzáles, ganhou o grande troféu. Seria destinada a viver por, no mínimo, mais cem anos, em razão de que já tinha vinte e seis de idade. Depois que todos se retiraram do Salão, seguiram para fora. Várias eram as atrações no pátio. Barracas de beijo por duas moedinhas, maçãs adocicadas, gordas mulheres barbadas, elefantes amigos de ratos. Para se divertir tinha que se gastar, mas Pepe Legrel era primo de sexto grau de uma alta patente do Exército Vermelho. Então, nem Pepe Legrel nem Benito Prestes teriam que se incomodar. Era a última barraca da última fileira de barracas. Vendiam-se fogos de artifício que se mirados corretamente para a pessoa amada, essa se apaixonaria perdidamente. Benito Prestes correu por muitas mulheres durante seus parcos dezoito anos. Nenhuma o interessou por mais que duas horas. Pepe Legrel nem isso. Virgem sempre foi e amar não estava ao seu alcance, segundo ele mesmo sempre frisou. Como era tudo regalia, Benito Prestes quis aproveitar tudo até a última gota.
Os fogos foram comprados e lançados o mais rapidamente possível. Afastaram todas as pessoas que se encontravam por perto e esperaram sorte para que o objeto alcançasse certamente a mulher que sempre olhou, mas nunca se aproximou. Arcádia González foi a imagem mais lúdica e sexualmente atraente que já chegou a seus olhos. Mas nunca foi mais que isso, nunca chegou mais perto, nunca se declarou de fato. Não via como possível amar uma pessoa que apenas havia olhado. Apesar de tudo, isso foi há tempos atrás. Agora, vendo a oportunidade que sempre sonhara, não a deixou ultrapassar seus dedos. Em menos de duas horas, Arcádia Gonzáles tornou-se Arcádia Gonzáles Prestes. Casaram-se longe dali. Isso porque o pai de Arcádia Gonzáles não poderia saber, pelo menos por enquanto, do matrimônio. Ele achava a filha muito nova para casar, queria que ela se enrolasse com uma pessoa que ele mesmo escolhesse e era homem não entrável na casa da família de Benito Prestes. Se unir a alguém foi uma forma de resposta para a água benta tomada por Arcádia Gonzáles. Porque se unindo àquele homem que um dia olhou e se apaixonou, poderia ser livre das irmãs e do pai que tanto a oprimia. Para Benito Prestes, casar significaria usufruir do atributo que Deus dá para toda homem quando nasce: sustentar uma mulher e, posteriormente, um filho.
Na festa ficaram a irmã de Arcádia Gonzáles, escolhida para viver praticamente para sempre, e Pepe Legrel. Ninguém consegue explicar ao certo porque ela se chegou a ele nem porque ele se chegou a ela. O fato é que os dois resolveram ficar juntos. Ela sabia que ele tinha tuberculose, doença adquirida quando foi retirar leite de uma vaca possuidora da mesma doença, e que não viveria por mais do que dez, quinze anos. Ou seja, ficaria viúva por muito tempo. Foram morar ao lado do rio Serpa. Quando Arcádia Gonzáles e Benito Prestes regressaram da lua-de-mel, foram dormir em um quartinho perto da cozinha de Pepe Legrel e Herundina Gonzáles. O pai das duas morreu pouco tempo depois da “Festa da Premiação da Centenária”, então nem brigou muito com o casal por causa da união. De passageira, a estada do casal se fez permanente na casa alheia. E isso não foi problema para os donos da residência. Casa cheia, festa sempre. A casa passou a ser de todos os quatro.
Herundina Gonzáles Legrel se viu incapacitada de pegar barriga. Tinha um problema com os ovários, causado pela grande e contínua exposição ao frio da região em que moravam. Para sua revolta e inveja, sua irmã era mais fértil que cadela no cio. A primeira gravidez foi de Vovó Prestes Gonzáles.
O tempo foi passando e Vovó ficou mais e mais bela e sedutora. Os homens, os meninos e até as meninas e mulheres não conseguiam não olhá-la. Era um torpor. Quando de seu aniversário de quinze anos, o Exército Vermelho resolveu fincar pés próximo ao rio Serpa, local estratégico para a luta armada entre o Exército Vermelho e o Exército Amarelo, respectivamente de esquerda e de direta politicamente. Tal conflito foi causado por causa de uma questão familiar muito pouco esclarecida pelos periódicos do país e alcançou proporções nunca antes previstas. Uma guerra civil se fez presente e teimava em estar a complicar a vida e rotina das pessoas. A idade mínima para se entrar no serviço militar era de dezesseis anos e a máxima de vinte e quatro. Então, os varões que lá trabalhavam eram os dos mais bem apessoados para as vistas femininas. Lá havia um homem conhecido com Asdrúbal Trombone. Ele, no momento em que se retirara do local de trabalho e fora à feira de peixes comprar mantimentos para a alimentação da tropa, vira Vovó sair de sua casa. No momento, viu borboletas chegarem perto dele e o levantarem até o céu. Sensação semelhante, tinha certeza, nunca mais haveria de sentir igual. Era por aquela jovem, então, que lutaria e ganharia a guerra. Não tardou para começarem a trocar correspondências. Nelas, ele não se envergonhava em expor o motivo pelo qual guerreava: ela. Iria até as últimas consequências, apenas por ela. Vovó criou também um sentimento por ele, e se martirizava cotidianamente por ser a causa de tanto cansaço em um pobre rapaz.
A Guerra Civil Latinera durou quinze anos. Acabou logo um dia após a morte de Pepe Legrel, tubérculo convicto. Asdrúbal Trombone ainda não tinha dado um beijo em Vovó Prestes Gonzáles. Apenas as letras unia-os. Demóstenes Josino, comandante-em-chefe do Exército Vermelho, deu a triste notícia para Vovó, e apenas para ela, pois ninguém da estirpe, em quinze anos, soube da troca de confidências amorosas entres os dois seres humanos. Asdrúbal Trombone morrera em batalha, não um dia antes de a guerra terminar, como Pepe Legrel, mas sim no antepenúltimo dia. Ela aprendera com a tia e a mãe a ser uma mulher forte, pois assim eram todas as mulheres Gonzalesas. E, por isso mesmo, viu-se obrigada ao suicídio. Por ser tão determinada e teimosa, definiu em sua mente que se não conseguira trocar um beijo entre Asdrúbal Trombone em vida, que fosse, então, na morte. Pegou o cadarço do sapato mais novo, o amarrou no lustre e pronto. Antes deixou uma carta para os pais. Foi aí que se teve início o ódio de Benito Prestes pelo Exército. Com a morte da filha e a vitória do Exército Vermelho, viu-se tomado de ódio por todo o corpo. Decidiu-se a tomar uma atitude. Sozinho, se encaminhou para a sede do Exército e declarou nova guerra. Ao contrário da outra, que durou por volta de quinze anos, esta durou quinze minutos. Sucumbiu em dois tempos. Um sargento desavisado se incomodou com a berraria ministrada pelo homem, que atrapalhava seu almoço. Um tiro de fuzil e pronto. O serviço estava feito.
Herundina Gonzáles e Arcádia Gonzáles estavam sós. Arcádia Gonzáles não durou muito. Tomada por uma depressão profunda, ascendeu aos céus por inanição. Para não se ver completamente sem companhia por pelo menos mais noventa anos, Herundina Gonzáles deixou o corpo da irmã ali, bem ao seu lado na mesa de jantar, para que com isso pudesse ter alguém com quem conversar. As suas outras irmãs a abandonaram depois de ter ganhado a vida longa, tempos atrás, por causa do ódio e inveja. Elas não conseguiram digerir a altivez que assolou Herundina Gonzáles. Apenas Arcádia Gonzáles conseguiu conviver com a irmã, por causa da boa vida gerada pela água benta, insuficiente para suportar a perda do marido e da filha.
A mulher chegou aos cento e vinte anos de idade. Durou exatamente o que previa. Morreu literalmente sozinha. Todos os outros da cidade não existiam mais. Viu de perto a solidão dos dias. Achou um alento morrer. Arrependera-se das coisas do passado e via um futuro promissor no reino de Deus Todo Poderoso. Sua vida não fizera muito sentido e não possui muita linearidade. Não lera livros, nunca fora ao cinema, rádio escutou pouco. Mas morreu como todos os outros. E foi para o mesmo lugar. Pelo menos fora o que esperava. Ao primeiro minuto de morta, não viu nada semelhante a um céu azul, com nuvens, nem seus familiares mortos. Estava em um lugar preto. Preto e sem ninguém por perto.
Escutou, ao longe, apenas uma voz: “A morte é assim. Conforme-se. Vivemos sozinhos e continuamos, ao morrer, sozinhos.”

Nenhum comentário: