domingo, 11 de janeiro de 2009

As veias carcomidas de uma vida bandida - II) O analista


O personagem estava deitado no banco detrás do carro de sua mãe, olhando para o teto e lembrando-se da época em que era pequeno o suficiente para estar grudado à janela da mala do Gol de sua avó materna, enquanto voltava da escola para casa. Era trinta e um de agosto de dois mil e dois e eles estavam indo para o primeiro dia de análise do personagem. Como ele tinha boa memória, sabia que esse era o dia da morte de seu tio, dois anos antes. Seus familiares não sabiam se ele havia morrido exatamente naquela data, pois ficara quatro dias sumido, até que sua madrasta e seu cunhado o encontraram no Instituto Médico Legal. Então, para se ter um dia oficial de luto, os próximos a ele escolheram a data de seu desaparecimento. Morreu atropelado em frente ao Túnel Rebouças, na madrugada. Como sempre se vestia de preto, o motorista não notou sua presença. O personagem lembrava-se de tais acontecimentos, juntamente com o fato de no mesmo trinta e um se comemorar o dia da nutricionista, profissão de sua mãe, ao mesmo tempo em que o automóvel se locomovia em direção a Rua Senador Soares, número onze, em Vila Isabel. Era uma quarta-feira e o personagem sempre odiou as quartas-feiras, porque elas representavam aulas de matemática e física na escola.
Não era a primeira vez que seus pais o levavam para psicólogas e afins. A primeira que teve foi em Niterói, bem próxima ao estádio de futebol da cidade. Sempre ia até lá comendo Fofy pelo caminho e falando a tabuada para sua progenitora. A mulher que o atendia era alta, magra, loura, aparentando uns quarenta e cinco anos de idade. Como era muito novo, não via muita confidência e cumplicidade em cima daquela relação (na verdade, o personagem nunca teve uma completa relação com suas duas psicólogas e seu psicanalista, ao passo que nunca contava toda a verdade de sua vida para eles, sendo essa uma forma de cuspir na cara dos retrógrados que o oprimiam e o torturavam com sessões semanais e anuais de terapia). Enxergava apenas uma pessoa a mais para brincar e se divertir. Apesar de saber dos detalhes de anos atrás, não sabia a razão para terem saído dela. Possuía, então, uns oito de idade e, no momento em que divagava sobre seu próprio histórico familiar, doze.
A casa em que teria sua primeira consulta com este novo profissional ficava na rua de uma escola pública, a mesma em que estudou a pessoa que fazia o transporte do personagem para onde estudava, todos os dias. Um bar de encontro de motoqueiros enfeitava a esquina oposta da rua. Finalmente chegaram. Era uma bela residência. Muro baixo, fachada de tijolos aparecendo e com janelas envoltas de uma tinta branca. Um pequeno, mas belo e cheio jardim. A campainha ficava escondida por entre o murinho e as plantas, tendo que ser feito um pequeno malabarismo para tocá-la. O personagem não via a hora de ir embora para casa, pois sabia que essa era mais uma das exigências de seus pais para que ele se enfurnasse dentro de um quarto fechado e escuro em que ficaria conversando sobre sua vida e para ver se alguém descobria se ele tinha algum problema. Porque o personagem só poderia ter algum problema. Sempre brigando dentro do lar e com um jeito muito suspeito de ser. Nisso, um homem gordo, de estatura média, moreno, de nariz muito avantajado e com veias azuis saindo de dentro de suas narinas, com testa cumprida e cabelos ralos, abriu a porta branca e de ferro. Ele saiu de lá. Era Suruape Jorge Garcia, o analista.
O homem tinha cinquenta e seis de idade, era casado há alguns anos, com um casal de filhos já de certa maturidade e morava com a sogra de setenta e dois. Esses fatos, claro, o personagem só viria a saber no decorrer dos quase dois anos que passou com ele. Sendo assim, no momento da abertura da porta e da visão do grotesco, o personagem sabia apenas do nome do indivíduo. Quem o indicou para sua mãe foi uma amiga dela, que teve o filho tratado também por ele. Ao entrar, fizeram as condolências necessárias e o personagem subiu apenas com o analista para dentro da sala em que as sessões se fazem presentes. Era uma escada de madeira, não muito larga e nem muito íngreme, situada do lado esquerdo da sala de recepção e com uma curva, bem no seu meio. Lá, em cima do maior degrau, havia uma foto, em preto e branco, de Sigmund Freud, que podia ser vista logo que se colocasse a cabeça para fora do pseudo confessionário.
O analista entrou por último, como manda a educação, e trancou a porta. Ofereceu o sofá para o personagem sentar, e o mesmo obedeceu ao pedido. Pensou em deitar-se, mas refutou a idéia, com medo de tender ao ridículo perante um desconhecido. As perguntas começaram. Depois de responder a praticamente uma ficha médica, o conteúdo mental, de fato, começou a ser pesquisado. O personagem lembrava-se sob os mínimos detalhes do que disse na primeira sessão. O cômodo estava com pouca luz, sendo a única provinda de um abajur situado bem atrás e à esquerda da poltrona nababesca do homem, em cima da mesa em que apoiava uma maleta e certos outros pertences inúteis. Começou a verborragia.
O personagem falou de anseios, pretensões, desejos! Não ousou tocar em decepções, desilusões, catástrofes. Bem provavelmente, deve ter omitido ou mentido acerca de alguma informação, como já manda o protocolo dos Pacientes Analisados Brasileiros (PAB).
Com o passar das semanas – suas sessões eram todas as quartas-feiras, sendo depois alteradas para os sábados – a relação passou a ficar mais íntima. O analisado já tinha conhecimento de muitos fatos da vida do analista. Soube que morava com a sogra e a esposa, possuía dois filhos. Quando o personagem chegava a casa, perguntava-se se o analista merecia saber do modo que estava sabendo sobre a vida do analisado. Ele contava apenas o que lhe convinha e até mesmo o que acreditava ser mais interessante para Jung e Freud analisarem, ainda que não fosse de todo verídico.
Suruape, como apenas o personagem o chamava, sendo o restante da população nomeando-o de Jorge, comentou, em um dia qualquer com ele, sobre a possibilidade de um novo método de trabalho, muito eficiente em outros pacientes. O tratamento consistia na passagem de óleos aromatizantes pelo corpo ou, como preferia dizer Suruape, passagem de óleos pelos “chakras”, que são, segundo a filosofia ioga, canais dentro do corpo humano por onde circula a energia vital que nutre órgãos e sistemas. Por esses canais se enveredarem por vias bem internas, haveria a necessidade de o paciente permanecer apenas de cuecas ou calcinha e sutiã, no caso de uma mulher, obviamente. Logo após o convite ser aceito - afinal de contas, o paciente acreditava piamente, até o momento, na credibilidade da profissão e do profissional -, Suruape alertou-o: “Não se preocupe, pois é normal haver certa excitação por parte de quem está aí deitado. Relaxe, isso não irá significar nada.”
De fato, por algumas ocasiões das massagens, o personagem excitou-se, mas era praticamente impossível ficar impassível diante da situação, ao passo que um dos chakras localiza-se praticamente nos fundilhos.
As sessões de massagem eram irregulares. Vez ou outra aconteciam. No restante do tempo, ficavam a conversar.
Em uma dessas conversas, o personagem, pré-adolescente, perguntou para Suruape algo relacionado a sexo. Evidente surgirem perguntas assim, porque se trata da dupla psicanalista-psicanalisado, sendo Freud e toda sua corja inexistentes se não houvesse a questão sexual na mente humana. Tal foi a brecha para a pergunta por parte do mais velho: “Quer saber como é a sensação? Não se preocupe (novamente a porra do não se preocupe), você gosta e continuará gostando de mulheres. Isso aqui é só para você saber como é a sensação.”
Coagido e sem saber o que responder, o personagem recebeu o sexo em seu sexo e teve a sensação de como o mundo era mundo pela primeira vez, aos doze anos de idade, juntamente com um velhote repugnante e impotente de cinquenta e seis insuportáveis anos.
“Olhe, as pessoas não podem saber do que está acontecendo entre nós, porque elas não entenderiam. Nós não estamos fazendo absolutamente nada de errado, só estou te mostrando como é a sensação do orgasmo. Eu continuo gostando de mulher, assim como você. Não se preocupe.”
Sempre que o personagem saia pela porta da Rua Senador Soares, a pergunta corria para sua mente: “O que eu estou fazendo? Será que eu gosto mesmo de meninas? Mas fazer isso é legal, gosto da sensação.” Juntamente, vinha a sentimento de culpa. “Pecado. O que faço é pecado, está errado. Mas gosto da sensação. Tenho nojo dele, mas gosto do que me proporciona. Ter orgasmos é uma coisa legal.”
Não dava. Apesar de gostar do que sentia depois de alguns minutos, a culpa o assolava, o comia por dentro, o acabava. Nada era dito para ninguém fora do consultório sobre o que acontecia, assim como o havia aconselhado o Velhote. Nem com o próprio homem o rapaz conseguia conversar sobre. Envergonhava-o muito tudo aquilo. O pior era que seus colegas de colégio apenas estavam descobrindo o que era um pentelho, quando muito, ao passo que ele já estava naquela situação, naquele dilema, naquela cilada, naquele labirinto.
Concomitantemente, o personagem tomou para si um sentimento de ódio contido pelo analista e o analista tomou para si um sentimento de amor contido pelo personagem.
Chegou dia doze de outubro, e Suruape Jorge Garcia deu de presente ao personagem um livro. “Serraria Baixo-Astral”, quarto livro das “Desventuras em Série”, de Lemony Snicket. O burro nem para dar um presente certo. Como o personagem leria o quarto livro da série se nem conhecia o primeiro? Enfim. Ao abrir-se o livro, lia-se: “Rio, 11/10/2002 – Ao pequeno grande Homem. Personagem, foi muito bom conhecê-lo. Assinatura.” O sorriso falso de agradecimento foi colocado no rosto do personagem, mas o rancor estava bem guardado dentro dele. Pelo ódio, jurou que nunca leria uma linha sequer do livro. Culpa não era do pobre autor, coitado. Culpado era o facínora, o cavalo, o nefasto.
A situação chegou ao ponto insuportável quando o personagem parava o que estava conversando e Suruape simplesmente ficava olhando para ele, contemplando-o. Diante disso, a criança não sabia o que fazer. Permanecia, assim, olhando para ele também. Queria acabar rapidamente com aquilo, pois sabia que quanto mais ficasse olhando para o outro, mais ele poderia ficar apaixonado. Isso seria demais. Isso poderia causar uma tragédia maior do que já havia causado.
Fim. Um fim isso tinha que ter.
O personagem acordou bem cedo em um domingo do começo ou fim de 2003, não lembrava, chamou o pai para conversar e não lhe contou os fatos concretos, mas sim apenas que desejava sair de onde estava, pois tinha medo do que poderia acontecer. “Ele olha-me estranho, papai.” Pobre progenitor se soubesse do que o Velho havia feito. E também o personagem não queria expor-se de forma tão escancarada.
Solicitou para que sua mãe resolvesse tudo. Ela que rompeu com a corda que aos poucos enforcaria as entranhas do personagem, até ele se perceber desfalecido no meio da sala, com seus olhos abertos e sua dignidade defunta. O medo era tanto por parte do analista, que ele chegou a ligar para a casa do personagem para perguntá-lo se algo estava acontecendo. Não ousou tocar no assunto “sexo”, pois receava que o motivo da saída fosse o abuso causado. Preferiu desejar boa sorte na vida do personagem. Ao não tocar nessa questão, poderia estar fazendo com que o personagem também não tocasse mais nela, pondo um ponto final em tudo aquilo, toda aquela coisa que ele próprio criara. Mas será que tinha sido ele?
Em casa, num outro bairro, Suruape lembrou-se de quando era criança. Seus vizinhos tinham uma galinha. Quando o maltrapilho garoto começou a sentir suas vergonhas se salientarem, resolveu aliviar-se com o dito animal. Por essas aventuras, o dono da galinha, consequentemente seu vizinho, viu a cena que sempre se repetia toda manhã, quando o analista acreditava que os donos da casa haviam ido trabalhar. Diante daquilo, José – o nome do vizinho -, chamou Suruape para uma pequena conversinha. Depois daquele dia, o Velhote nunca mais aliviaria suas tensões na galinha. Seu José, como ele o chamava, poderia exercer tal função muito bem.
Ele, assim como o personagem, sentiu ódio do malfeitor.


O personagem alguma coisa fez. Como só se deu conta do crime cometido pelo analista alguns anos depois, quando o ato já era considerado nulo pela justiça, encontrou apenas uma solução.
No dia seis de janeiro, dia em que a Igreja celebra a festa da Epifania, o personagem subiu os degraus da escada de sua casa, entrou no quarto de seus pais, encaminhou-se até o criado mudo localizado na parte esquerda da cama, onde seu pai dormia. Abriu a terceira gaveta do mesmo e pegou um revólver. Quem o havia posto lá fora seu tio, irmão de sua mãe, antes de sair de casa pela última vez, para encontrar a morte na entrada do túnel. Encheu a arma de munição e foi em direção à rua onde todos os crimes eram cometidos.
Com um fone de ouvido, contemplava “Rockferry” e pensava no que faria com Suruape. O revólver finalmente teria uma utilidade. Assim como pensou Raskólhnikov, o mundo não poderia e não haveria de sentir falta nem pena de Lisavieta, a Velhota. Ela morreu, ele também morrerá. Velhote e Velhota irão se encontrar no céu. Se ele existir, claro. Nesse instante, o personagem rezou para que o céu não existisse, pois assim o Velhote ficaria vagando pelo mundo, como alma penada, e elas simplesmente não conseguem descansar em paz. Uma pós-vida infernal seria o ideal para um homem tão banal.





O analista estava despedindo-se de seu último paciente. O personagem entrou sem nem pedir licença. Subiu e lá no consultório ficou. O analista correu em disparada até chegar onde o rapaz estava, até encontrá-lo deitado no divã, como nunca antes havia feito. O personagem disse: “Olá.” O analista viu o revólver na mão do personagem. O personagem perguntou para ele: “O que foi?” O analista soltou um grunhido incompreensível. O personagem levantou-se. O analista afastou-se. O personagem divagou: “Conheces ‘Lolita’? Aposto que conheces... Vladimir Nabokov deveria ter escrito um final igual a esse que está prestes a acontecer. Bem diante de seus olhos. Velho de merda”
!
O corpo foi retirado. O chão foi limpo. Tudo foi resolvido. Uma carta de despedida foi escrita pelo personagem, para que assim se aparentasse suicídio e casualidade da vida.
Antes de chegar a casa, o personagem deu uma volta e foi em direção à delegacia.
Melhor se entregar à polícia, com sua dignidade, do que ver sua casa invadida, seu corpo tomado, e sua vida destruída. Deste modo, teve o destino que escolheu. Entregou-se, pois assim o desejou. Réu primário, endereço fixo. Sairia de lá rapidamente.
Humbert, o pedófilo literário, e Suruape, o pedófilo real. Humbert matou Quilty, marido de Lolita. Suruape não matou ninguém. Ele é que estava morto agora. Acabado. Aniquilado.
Mas o fim do personagem, o abusado real, foi igual ao de Humbert, o pedófilo literário. Na prisão acabou, com seus anseios e sonhos aleijados. Tudo por causa do Velho de merda.













Que ódio sente o personagem pelo Velhote de merda.

Nenhum comentário: