sábado, 28 de maio de 2011

O Amigo dos Presidentes


(...) um jornalista precisa viver na eterna expectativa de que pode viver situações que não ocorrem em outras profissões.” Samuel Wainer

Tendo em vista a disciplina de História do Jornalismo, ministrada pela professora Ana Paula Goulart, será realizada uma resenha da autobiografia do jornalista Samuel Wainer (1910-1980), lançada em 1987 sob o título “Minha razão de viver – Memórias de um repórter”. Morto em 02 de setembro de 1980, Wainer ditou sua história para os jornalistas Marta Góes e Sérgio de Souza, entre 25 de janeiro e agosto de 80, sendo as 53 fitas gravadas postumamente organizadas e editadas pelo também jornalista Augusto Nunes. Exilado no início da Ditadura Militar brasileira, em 1964, Wainer solicitou que apenas 25 anos depois de sua morte informações como as do esquema de financiamento do contragolpe militar fossem reveladas. Portanto, em 2005 a editora Planeta lança uma edição revisada da autobiografia de um dos maiores jornalistas do século XX. É nela que se baseia a análise dos relatos do “amigo do Homem (Getúlio Vargas)”.

Dividido em duas partes, o livro traz introdução e posfácio de Augusto Nunes, apresentação de Pinky Wainer (filha de Samuel) e uma homenagem do escritor Jorge Amado ao companheiro de redação da revista Diretrizes, “O brasileiro Samuel Wainer”. Já nas memórias em si, percebe-se que elas não são lineares: não tem um princípio na infância, um meio na fase adulta e um final na velhice. Como é o próprio Wainer quem a dita, por mais que não a tenha editado, escolheu dar enfoque à fase que perpassa os anos 1940 aos 1960, com especial atenção aos anos 50 de Vargas. É nesse período que vemos seu início com a revista Diretrizes, mostrando-se contrário à ditadura do Estado Novo (1937-1945), a passagem como correspondente internacional de O Globo e da BBC cobrindo os julgamentos da Segunda Guerra Mundial, repórter dos Diários Associados em 1947 e, por fim, dono e editor do jornal Última Hora, atividade exercida de 12 de junho de 1951 a 21 de abril de 1972.

Mas uma das coisas que mais se evidenciam no livro é o fato de o jornalista definitivamente não pormenorizar sua vida pessoal e familiar, restringindo-se a falar apenas o necessário sobre sua ex-mulher Danuza Leão, seus filhos e seus pais, principalmente nos momentos de sua prisão e exílio. Apenas o capítulo dois é mais vinculado ao passado pessoal de “SW”. Provavelmente isso não é uma falha do livro, mas sim a noção de que o relevante para o leitor é a vida profissional de Samuel Wainer. Outros personagens que marcam a narrativa são os jornalistas Assis Chateaubriand e Carlos Lacerda, pelos quais Wainer nutria grande inimizade. Já se tratando de Getúlio Vargas, na primeira parte do livro que trata da revista Diretrizes e do Estado Novo, é visível sua insatisfação pelo ditador: “Ainda não conhecia Vargas pessoalmente, mas era ele, a meus olhos de jovem jornalista, a encarnação do mal, o grande adversário a combater.” (página 85)

No entanto, quando de uma entrevista exclusiva concedida pelo então ex-presidente ao repórter dos Diários, tudo parece mudar de figura, culminando no surgimento do jornal de situação Última Hora, financiado pelo Banco do Brasil/Vargas e apoiador do futuro novo presidente de novo.

A partir dos encontros com o político para entrevistas, Wainer passou a admirá-lo: “Passei a interessar-me também pelo homem Getúlio Vargas, e ele igualmente passou a encarar-me como ser humano.” (página 35) O espanto do leitor ao perceber tal mudança repentina nas relações não se sente sozinho, ao passo que “Velhos amigos que, como eu, haviam participado da resistência ao Estado Novo passaram a tratar-me como um oportunista interessado na vizinhança do poder. (...) eu deixara de ser um repórter para tornar-me ‘o amigo do Homem’.” (página 35)

Há, com essa subjetividade de uma autobiografia, o lado positivo e o negativo. Na narrativa em si, torna-se interessantíssimo conhecer o ponto de visto do protagonista de sua própria vida. Saber os pormenores de tramas políticas e alianças hipócritas para a consolidação da imprensa no Brasil é sem dúvida o grande trunfo de “Minha razão de viver”. Entretanto, já tratando-se de uma nova edição, revisada e com mais informações, seria interessante que tivessem tido a preocupação de acrescentar notas de rodapé melhor informando os leitores. Ou seja, o livro possui passagens confusas no que tange o modo como Wainer conheceu certas celebridades e políticos. Ele as cita, mas da mesma forma que elas surgem, desaparecem do texto. Igualmente ocorre com suas esposas. É nítido, em “Clarice, uma biografia”, de Benjamin Moser, que a escritora Clarice Lispector teve uma convivência com Wainer na Europa, mas a fotografia deles que ilustra a página 117 do livro aqui resenhado nem sequer sai da óbvia descrição.

No campo das fotografias que ilustram as páginas do livro, é de se supor que elas poderiam ser um tanto mais contextualizadas. Elas deveriam ilustrar capítulos que tratassem de temas afins a ela. Entretanto, poucas fotos caminham em concordância com o texto, deixando os fatos um tanto paradoxais para o leitor, já que ele acredita ser ela uma ilustração da narrativa. Exemplificando, há na página 109 uma foto de Wainer como “correspondente dos Diários Associados em Paris, nos anos 1940. Entretanto, o que se lê no capítulo referente à foto é o trabalho de Wainer como correspondente do jornal O Globo e da BBC na Europa durante os anos 40. Ele só haveria de trabalhar para Chatô a partir de 47 até 51 deixando, portanto, um paradoxo. “Samuel não era correspondente de outro veículo, em outro local?” Evidente que ele poderia ter vindo a trabalhar em Paris pelos Associados, mas o livro tinha que informar, em nota caso Wainer não mencione. Outra foto curiosa que não possui contexto é a da página 313, dele com a atriz Kim Novak, onde ele aparece segurando firme seus braços e com um olhar penetrante sobre ela. O livro restringe-se a dizer: “Com a atriz Kim Novak, no Rio dos anos 60: um caminho iluminado por estrelas.” A curiosidade fica no ar. Igualmente faltam no livro alguns nomes completos de personagens, como um certo “vice-presidente da Light, Monteiro” (página 191), que se o leitor não souber de cor, terá que buscar em outras fontes para saber quem é de nome.

Quanto aos erros de edição e gramática, a segunda reimpressão da Editora Planeta não possui poucos, como na descrição da fotografia de Wainer e Danuza com integrantes do governo chinês nas comemorações do 10º aniversário da Revolução Chinesa, que ocorrido em 1959, é retratado como se em 1958. Fora deslizes acima da média normal de erros de um livro, como palavras sem letras, pontuações equivocadas e separações silábicas incorretas. Outra estranheza é um Cemitério São Paulo Batista (página 229), no Rio, quando na verdade na cidade só existe Cemitério São João Batista.

Mas que Samuel Wainer foi um grande repórter e dono de jornal, isso ninguém tem dúvidas. Teve ao seu lado grandes repórteres e colunistas, que entraram para a história da imprensa e o imaginário popular, como Nelson Rodrigues (“A vida como ela é”), Paulo Francis, Sergio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Chacrinha, o cartunista Lan. Além de cobrir o nascimento do Estado de Israel, foi ele o único brasileiro a cobrir os Julgamentos de Nuremberg, a dar furos sucessivos sobre a vida do presidente Getúlio Vargas, a ter faro para manter um jornal diário de qualidade e, acima de tudo, algo que hoje em pleno século XXI não existe no Brasil: uma cadeia de jornais com mesma identidade. O Última Hora, com suas edições do Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Niterói, Belo Horizonte e Recife, manteve a mesma identidade visual, a mesma diagramação, praticamente a mesma primeira página, mudando-se apenas temas regionais. Assis Chateaubriand, por mais que fosse o “Rei do Brasil”, com mais de 20 jornais, rádio e televisão, tinha empresas díspares, enquanto SW possuía apenas uma: “(...) transformei-me no primeiro brasileiro a montar uma cadeia jornalística nacional efetivamente homogênea. (...) Além disso, creio ter imposto uma linha editorial idêntica às várias redações.” (página 297) Apesar de tudo, admite que tudo “sempre estimulado por candidatos interessados na existência de um meio de comunicação que os auxiliasse nas disputas regionais.” (página 297)

É esta a questão que deixa Samuel Wainer em posição delicada na visão dos dias de hoje, haja visto que ele estava envolvido em todos os sentidos principalmente com o governo de Vargas, tendo além de recebido ajuda para a criação de seu jornal, demonstrando extrema fidelidade ao “chefe”, o que demonstra algumas vezes um descrédito no distanciamento jornalístico dos fatos. Por mais que seu jornal tenha sido o primeiro (coluna “O dia do presidente”) e o único a cobrir diariamente a vida de Vargas, gerando furos seguidos nos concorrentes, nada garantiria que em momentos delicados do governo, Samuel não fosse defender de maneira até desenfreada seu amigo.

A situação mais óbvia de subversão da lei para mérito próprio foi o fato de, ainda que tenha escondido a vida toda, não ser brasileiro e possuir um jornal. Tendo nascido na Bessarábia, por mais que segundo ele aos 16 anos de idade tenha conseguido uma certidão de nascimento dizendo ser brasileiro (página 240), ainda que chegasse a conseguir cidadania, pela lei ele nunca poderia ser dono de um jornal no Brasil. Por mais que ele, na realidade, fosse mesmo brasileiro, já que aos seis anos chegou aqui e nunca mais foi de outro país, ele escondeu a todo custo essa questão para não ter seu jornal perdido para Chateaubriand, Lacerda e companhia. Dos males o menor, já que realmente Wainer não tinha como se considerar outro além de brasileiro. Mas outras espertezas vieram e, segundo ele, todas aceitáveis, já que nunca conseguiu nada para si e sim para seu jornal. Um mal por uma causa nobre poderia ser justificável.

Desde o fato de ter conseguido o título “Última hora” do embaixador Paulo Hasslocher por um preço baixo por ter combinado com Baby Bocaiúva: por ter cara de jovem, Baby apresentou-se como mero estudante querendo o nome. Depois que soube que se tratava de Wainer para criar um grande jornal, o embaixador tentou anular a transação. Wainer afirma triunfante: “Não conseguiu.” Daí em diante, várias atitudes que para ele eram do jogo político, mas que, com a hoje maior profissionalização da imprensa, seriam vistas como antiéticas. Mais adiante, afirma que o jornal apoiava empresas que fosse brasileira e que melhor atendesse aos interesses de Getúlio. Em seguida, exigia um retorno com publicidade: “Tal postura não me parecia antiética.” (página 196) Depois e em vários outros trechos do livro, Samuel entra em acordo com empresários, como Francisco Matarazzo (dele conseguiu montar o Última Hora em São Paulo) e deles recebia em troca favores, sempre para o jornal, pondera. Afirmaria que, já nos anos 1960, quando da eminência do Golpe Militar, rejeitou bajulações como apartamento na Avenida Atlântica e a possibilidade de pegar para si bolos de dinheiro que estavam sob seu controle mediado pelo presidente João Goulart para o financiamento de virtual contragolpe de esquerda à ascensão da direita.

Apesar do franco acesso aos governos, não se pode afirmar que Wainer manteve seus jornais única e exclusivamente os bajulando e extorquindo: “Quando fundei a UH em São Paulo, já se tornara possível montar empresas jornalísticas sólidas sem a mão generosa do governo.” (página 206) Isso se deu pela maior consolidação da publicidade, pelo menos no jornal de Wainer (página 217). Mas em contraste às suas atitudes de repórter diárias, vem sempre a informação de que ao lado de nova intenção de empreitada jornalística há o governo: “Achei que uma emissora de rádio (Rádio Roquete Pinto, depois Rádio Clube) seria importante como peça de apoio a meus jornais. Procurei Getúlio e relatei-lhe a proposta.” (página 214)

Independente das atitudes de Wainer diante dos governos ou dos erros editorais do livro, definitivamente “Minha razão de viver – Memórias de um repórter” é a melhor radiografia da imprensa e da política brasileiro do século XX. Com sinceridade, ele expõe os fatos e eles são crus. Compreender que por trás de uma informação objetiva existe muita subjetividade faz com que o profissional de amanhã repensa sua conduta e veja se vale ou não apena seguir determinada atitude. Viver hipocritamente num estereótipo de moralidade jornalística não é possível, mas tentar alcançá-lo mais de perto é ainda necessário, e Samuel Wainer tentou a seu modo fazê-lo. Passou pelos meandros do poder e foi um espectador privilegiado, mas é como ele próprio diz, nunca conseguiu nada para ele e sim para seu jornal. Deve soar estranha a afirmação, mas ele pode também ter feito tudo com o propósito maior de apenas ser um bom repórter, condizente a seus ideias. Além de tudo, em último caso, para ele certas atitudes poderiam soar normais, já que ele estava totalmente inserido na dinâmica do poder, tanto jornalístico quanto governamental. Morreu sendo colunista da Folha de São Paulo e sabendo que ele fora engolido pelo sistema, tinha informações perigosas e só as autorizou que fossem reveladas 25 anos depois de sua morte.

Já a partir dos capítulos 33 e 34, Wainer expõe o que na primeira edição não é permitido revelar: maiores detalhes de sua infiltração no financiamento de um contragolpe de esquerda comandado por João Goulart. Wainer admite que um governo daquele tipo não poderia durar muito tempo e que, consolidando-se o golpe de 31 de março de 1964, pede asilo na embaixada do Chile. Vivendo no país por alguns anos, segue com os filhos para a França. É aí que vende seu jornal para o grupo Folha, já de Otávio Frias, e se entrega, nas memórias, à reminiscências mais detalhadas sobre sua vida sentimental e familiar. Faz, mesmo, bom balanço de sua vida.

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