segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Imagem e amor na depreensão do real em A. Bioy Casares e Alfred Hitchcock

Adolfo Bioy Casares (acima) e Alfred Hitchcock (abaixo)
“A invenção de Morel” (La invención de Morel) foi publicado em 1940, escrito pelo argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999). Já “Um corpo que cai” (Vertigo) é lançado em 1958, dirigido pelo britânico Alfred Hitchcock (1899-1980), baseado em livro “D’entre les morts”. Então, pela disciplina de Comunicação e Artes, uma análise e conexão entre as duas obras será elaborada, seguindo o intuito de se focar a questão imagética e a do relacionamento amoroso e seus desdobramentos, ainda que se tente perpassar pelo maior número de aspectos fílmicos e literários possíveis, que conseguiram ser notados e inter-relacionados.


Deste modo, tanto como no livro, quanto como no filme, a imagem é seguida da concepção de reprodução, réplica, imitação incessante, perda da essência. Sendo assim, no que diz respeito ao filme, extremamente autoral, de Alfred Hitchcock, pode-se notar que, para a compreensão e desenrolar da narrativa, a imagem e suas consequências são tratadas como condição essencial para a noção de identidade dos seres, girando essa problemática em torno de uma personagem em especial, Madeleine Elster (Kim Novak). Ela seria apenas uma, ou seria várias ao mesmo tempo?


Inicialmente, o espectador a reconhece como uma pessoa que está passando por problemas psicológicos e que, involuntariamente, age de forma suicida, como se estivesse imitando os passos de sua bisavó espanhola Carlotta Valdes. Madeleine possuindo 26 anos de idade, assim como sua bisavó ao suicidar-se, está, em uma determinada cena do filme, sentada diante de um quadro, alocado em um museu. O detetive John Scottie Ferguson (James Stewart) repara, e a câmera deixa a evidência bem explícita, que o modo como Madeleine Elster ajeita seus cabelos é idêntico ao modo como Carlotta Valdes o fazia. No entanto, em outro momento, quando ela, aparentemente, volta a si e não se recorda nem de ter ido ao museu, nem de nenhum outro ato suspeito, se mostra com penteado diferente, como se fosse uma marca de distinção entre as personalidades. Por outro lado, existe a verdadeira Madeleine Elster, que é assassinada pelo marido, Gavin Elster (Tom Helmore), sendo ela, deduz-se, muito parecida fisicamente com quem quis se passar por ela, Judy Barton, que para efeito de diferenciação, quando é si mesma na película, encontra-se de cabelos tingidos de outra coloração. Por fim, Judy Barton é encontrada por John Ferguson e, para nós, ele vê nela uma ensandecida maneira de reencontrar a mulher amada que já se fazia morta. Com o passar do tempo e da relação iniciada pelos dois, repara-se que John deseja que Judy se vista do mesmo como Madeleine – no caso, desejava, então, que ela se vestisse do mesmo modo como ela mesma se vestira anteriormente – assim como que eles reprodu-zam, novamente, os passos dados na ocasião da morte da verdadeira Madeleine Elster. Também há, no filme, outra personagem, Marjorie Midge Wood (Barbara Bel Geddes), que, em um momento, faz uma pintura de si, mas com o corpo de Carlotta Valdes, que é ela mesma e que é também Madeleine Elster, que é Judy Barton.


Ou seja, uma única pessoa era, na verdade, três. Judy Barton se passa por Made-leine Elster, assim como, de certa forma, se passa também por Carlotta Valdes (tanto nos atos suicidas, forjados, como o filme se faz por entender, quanto pelo simples ato do penteado, assim como no instante em que assina por Carlotta na recepção da pensão). Ainda há outra, Midge, que por sua vez quis se transformar em Carlotta na pintura, tentando, assim, ser Madeleine Elster, na verdade Judy Barton, que o detetive John tanto amava. Em suma, uma imagem reproduzida em várias pessoas, momentos e circunstân-cias e a repetição dos fatos para a descoberta da essência do mesmo.
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Aí, um paralelo pode ser feito com o livro “A invenção de Morel”, a partir do momento em que se compreende que todos os atos depreendidos pelo personagem prin-cipal – que por sua vez não possui nome e, então, é sem identidade – foram, na verdade, projeções, pois haviam sido, por Morel, gravados. Entende-se, então, a razão pela qual o personagem principal, que conta em diário seu dia-a-dia, não participa, não interage com os demais personagens que vivem na ilha; ele não havia sido gravado, não havia se tornado uma imagem, reprodutível e reaproveitada, e então estava ausente de todo o resto do processo de interação e comunicação. As constantes idas, enfim, de Faustine à praia, admirando o crepúsculo, são nada além de imagens e reproduções. E, quando o narrador da estória descobre qual é a invenção de Morel, ele se grava também. Por sua vez, ao gravar-se, o narrador entende isso como um processo de ida ao eterno, pois ao se gravar, sua alma se descolaria de seu corpo, o fazendo, consequentemente, morrer, apesar de sua alma ficar registrada para sempre dentro da máquina. Foi essa, então, a forma com que ele achou para ir ao encontro de Faustine, sua amada: entrando no mesmo processo incessante, idêntico e reprodutivo em que ela se fazia presente. Em contrapartida, o escritor brasileiro Otto Maria Carpeaux, em artigo ao jornal “O Estado de São Paulo”, em 1966, ao resumir a obra de Bioy Casares, afirma que “(...) As radiações que impulsionam sua máquina mataram-no. A presença dessas radiações é a doença mortal na ilha.”. Já para o narrador do livro, o que parece ocorrer é um tanto mais lírico. Morrer-se-ia ao ser gravado, fotografado, ou seja lá o modo de captação que convir, pois a alma vai-se embora com o objeto. Ao mesmo tempo, permanece-se para sempre registrado, em uma certa imortalidade. Não custa mencionar, ainda que se refira à língua inglesa, a fala do estudioso da Comunicação Stuart Hall, que em entrevista, na Universidade de Massachusetts, em 1989, acerca de seu ensaio “Codificação/Deco-dificação” (1980), afirma que “essa noção (de reprodução) é quase impossível, na língua inglesa, de ser separada da ideia de mera repetição”. Concluindo, todas as pessoas que o nar-rador via já estavam mortas, não eram mais “reais”, ainda que estivessem sendo vistas e sentidas por ele, as transformando, de tal modo, em “reais”.


Seria, então, o que foi dito acima, o mote central das duas obras: a realidade. Esta, por sua vez, entendida através da problemática da imagem e sua reprodução diante dos olhos humanos. A visão da imagem de pessoas mortas as tornaria automaticamente reais ou virtuais? Uma mesma pessoa, incorporada em mais de uma, tanto física quanto psicologicamente, as tornariam reais ou as anulariam simultaneamente? Fechando a a-nálise no que diz respeito a tais questões, em “Um corpo que cai”, a repetição das ações se faz para que se chegue em um final da situação, a fazendo conclusa e compreendida, definindo seu âmago; em “A invenção de Morel”, a repetição das ações é percebida como uma entrada na eternidade e na imersão sentimental e sensacional, sendo a pessoa inclusa no processo mecânico e incessante ao ser passada para imagem. No filme, a re-petição para se chegar à conclusão (morte); no livro, a repetição para se chegar à com-clusão (vida).


Por parte final do trabalho, a questão amorosa é depreendida nos dois conteúdos como algo metafísico, complexo e nem sempre tão correspondido assim. Em “A in-venção de Morel”, o narrador é fissurado pela imagem de Faustine e não se sabe se ele a ama realmente, como casais se amam naturalmente a partir do convívio diário. Nem com sua passagem para o lado de Faustine, no momento em que ele “se registra”, há a total certeza de que ele encontrará o amor na mulher amada, pois ele apenas vai a seu encontro, e não necessariamente ela vai ao dele. O simples fato de Faustine não existir já complica bastante as coisas. No entanto, como o narrador também não existe, por não possuir identidade e ter sido abandonado na ilha, pode facilitar em alguma coisa as coi-sas. Junto a tudo isso, há ainda Morel, que seria um rival do narrador, pela disputa por Faustine.


Em “Um corpo que cai”, a questão do amor é primeiramente tratada quando o detetive John Ferguson afirma que amou sua amiga Midge, por algumas semanas, du-rante a faculdade, e que foi ela quem o rejeitou. Depois, um marido supostamente amá-vel pede socorro por sua mulher. Ele, como se sabe, a mata, demonstrando-se que ele não a amava tanto assim. Por sua vez, Judy Barton dá a entender que ela e o marido de Madeleine tiveram um caso, não tão bem resolvido. Antes, entretanto, há o envolvimen-to de John com Judy-Madeleine, encontrando, por sua vez, problemas no que diz respei-to ao sentimento de Midge por John, que apesar de tê-lo rejeitado antes, parece o amar agora. No final, John ama uma Judy que tem que ser Madeleine. Conclui-se que ele só ama as que não são tão reais e sinceras, sendo a única que o deve ter amado de verdade, Midge, rejeitada por sua depressão aguda. Tão complexo quanto “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.”


Em consequência, o amor, no livro do argentino e no filme do britânico, é tido como idealizado e contemplativo. Já a reprodução, resguardados seus devidos fins em cada trabalho, para o livro é algo que envolveria, simploriamente falando, técnica (Walter Benjamin, em “A obra de arte na era de sua reprodutividade” – Escola de Frankfurt, Teoria Crítica), ainda que, claramente, psicológico; e para o filme, sentimento e mente.

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