domingo, 3 de julho de 2016

Os v(e)(i)ados feridos



     
       Este texto tem por intenção articular e fazer dialogar os trabalhos da pintora mexicana Frida Kahlo, “O veado ferido”, de 1946, e do pintor recifense Ramonn Vieitez, “When somebody loved me; The wounded deer”, de 2012. Portanto, vamos ao texto.
            Frida Kahlo pintou, em 1946, um quadro chamado “O veado ferido”, ou também conhecido por outros dois títulos: “O veadinho” e “Eu sou um pobre veadinho”. Quase os treze títulos de “A hora da estrela” (1976), de Clarice Lispector, ou os treze tiros que o bandido Mineirinho levou, nos anos 1970, segundo a escritora citada, quando na verdade apenas um teria bastado para matá-lo. Expoente máximo, hoje, da pintura mexicana, Frida Kahlo, neste quadro, expõe-se da seguinte maneira: um veado, com cabeça de Frida e galhos de animal, transpassado por nove flechas, que o fazem sangrar. Em uma floresta, este veado está encurralado por várias árvores, que o impediriam de fugir. Ao fundo, um mar, profundo, que não dá perspectivas de fuga, mas sim de isolamento. Um raio vem do céu e um galho de árvore está caído perto do veado, conferindo à pintura dramaticidade. O rosto de Frida, mulher-veado, olha-nos, impassível, mortificado.
            Nascida no começo do século XX, em 1907, em uma cidade próxima à capital mexicana, Frida foi considerada atípica, desde o início da vida. Vestia-se, adolescente, com roupas de homem, e saía nas fotografias de família desta maneira, performática. Mas não era lésbica stricto sensu, em princípio, como poderia supor os olhares preconceituosos. Apesar de ter se relacionado ao longo da vida com mulheres, manteve-se apaixonada por um homem, alguns homens, mais principalmente apenas um homem: Diego Rivera. Vestindo-se, então, com roupas masculinas e já tendo, por volta dos seis anos, sofrido as drásticas consequências físicas de uma poliomielite, Frida entra na vida adulta desejando afirmar-se enquanto artista. Começa aos dezesseis anos a estudar na Escola Nacional Preparatória do Distrito Federal do México, predominada por figuras masculinas, masculinizadas e masculinizantes e, poucos anos depois, sofre um acidente que irá definir ainda mais suas limitações diante da vida física, já definhando o definhado corpo que na infância havia sido maculado pela poliomielite.
            Estava em um ônibus, na Cidade do México, em 1925, ao lado de um dos primeiros namorados, quando o veículo é atingido por um bonde. Com o choque violento, o metal de um dos meios de transporte perfura o corpo de Frida e a arrasta ao longo da praça em que se encontrava. Com licença poética, um dos comentadores do acidente frisa que os gritos de Frida abafaram o barulho do acidente e que, arrastada pelo maquinário, a artista teve suas roupas arrancadas e, nua, fica estendida no chão, agonizando. As cinzas provenientes da colisão a teriam coberto como um manto.
            Entre a vida e a morte, a mulher sobrevive e casa-se com o grande amor de sua vida, o também pintor Diego Rivera. No entanto, não sem pouco desgosto: um ano de matrimônio e seu esposo já a traía: com a irmã, de quem Frida cuidava dos filhos. Convalescente quase que vinte e quatro horas por dia, ela mantém-se casada e viaja com Diego para os Estados Unidos, onde ele acumula fama como pintor de enormes murais com teor político, que remetiam à Revolução Mexicana (1910) e o direito à luta proletária. É neste período que Frida começa a vestir-se com trajes típicos mexicanos. Sem conseguir manter uma gravidez, a pintora descobre-se incapaz de ser mãe, por conta de sua frágil condição de saúde. É, então, a partir desta informação, que Frida passa a pintar-se. Objetivamente: coloca-se em quadro. É o rosto de Frida que existe. Acusada de ser apolítica, em relação feita evidentemente em comparação a seu marido, Frida demorou muito para ser considerada uma artista engajada, em um tempo onde envolver-se politicamente em uma causa e nisso imbricar sua obra era condição obrigatória. Falar de si não tinha valor. Entender o falar de si apenas como um falar de si já é não entender o processo artístico do pôr-se em quadro, afinal. A arte autobiográfica não era considerada arte política. Não se enxergava como político o fato de uma mulher oprimida, doente, traída, sofrida etc., pintar-se. Quase como não considerou-se relevante literariamente os primeiros discursos testemunhais das vítimas de Aids dos anos 1980 – é baixa literatura, diziam: apenas uma narrativa sem vigor e riqueza literárias. Quase uma novelinha barata. O importante deveria ser a obra fria e consistente. Frida estava denunciando algo em seus quadros. Denúncia esta que quando feita não foi compreendida. Hoje, corre-se atrás do tempo perdido.
            Esta mulher, considerada hoje a maior pintora do século XX, teve apenas uma coletiva em seu país. Em 1953, apenas um ano antes de morrer. Já doente – sem filhos e com uma perna amputada – teve que ser levada na cama para a galeria de arte, onde seus quadros estavam expostos. Literalmente na cama ficou observando e recebendo as pessoas que iam ver suas pinturas. Frida tentou suicídio várias vezes ao longo da vida e foi encontrada morta em casa a 13 de julho de 1954. Hoje conhecida por seus autorretratos, Frida foi retratada pela última vez por Diego, quando estava com seu corpo sendo cremado.
            É neste contexto de dor, sofrimento, autoafirmação, que ela pintou-se enquanto um veado ferido. Ela, ferida. Ela, um animal acanhado em um período onde não a compreendiam artisticamente e enquanto mulher. Tal qual São Sebastião, flechada e dolorida. Os quadros de Frida revelam opressão e um desejo de desoprimir-se. Apenas renegada como subproduto, hoje celebrada como arte.
            Então, a partir deste quadro, “O veado ferido”, “O veadinho”, “Eu sou um pobre veadinho” (veado com rosto de Frida-mulher, nove vezes flechado – flechado o animal vulnerável, flechado à la São Sebastião –, quem a flecha não sabemos (é o mal polimorfo e invisível), com sangue, encurralado na floresta, com trovão e galho de árvore a dramatizar), que o artista brasileiro Ramonn Vieitez, nascido em 1991 no Recife, pinta em 2012 o quadro “When somebody loved me; The wounded deer” (em tradução livre, “Quando alguém me amou; O veado ferido”. Que diálogos colocam-se em cena nesta intertextualidade?
            Pintado no que pode-se dizer ser a mesma floresta, também com um mar ao fundo, mas sem raio, e igualmente com um galho no chão, ainda que não tão destacado como em Frida, o quadro de Vieitez revela o que um dia foi uma árvore, bem no centro, onde no quadro de Frida centralizava-se o veado ferido. Esta árvore é agora apenas uma base cortada e em cima dessa base senta-se um homem nu, como é nu o veado-animal, com seu sexo coberto por suas pernas, mas sua cabeça coroada por uma galhada que é a de veado – mesma cabeça de Frida, mas agora a cabeça de um artista viado corporificada no corpo de um homem-veado. Antes havia um animal-veado, mas agora no quadro recifense percebe-se um animal veado transformado em um rapaz homossexual, um homem viado. Homem este nu, com seu sexo coberto, mas seu coração extremamente exposto e vulnerável, ensanguentado, apertado por entre os dedos de alguém que deseja expô-lo e protegê-lo do mal polimorfo e invisível. É um coração vulnerável, um homem vulnerável – o corpo é do artista, a galhada está na cabeça do artista, o artista é o veado ferido – e exposto em sacrifício ao amor, “Quando alguém me amou”, mas também à exposição vulnerável e sofrida, “O veado ferido”. O rosto de Frida, o rosto de Ramonn. Rosto não no sentido plástico de rosto, mas no sentido do sofrimento do rosto do outro, no rosto estrangeiro, calcado por Emmanuel Levinás. Veado flechado de Frida remetido às flechadas em São Sebastião, santo esse muito associado ao movimento homossexual, por estar seu corpo desnudo, másculo, em sofrimento e ensanguentado: São Sebastião morrendo é cada homossexual sendo morto.
            Ramonn Vieitez teve a perspicácia de transformar-se no veado de Frida Kahlo, para revelar-se o real viado dessa sociedade, aquele que entrega-se à e que é passível à violência do outro: violência do amor e violência da dor. As dores da mulher vulnerável, as dores do homossexual vulnerável. Frida Kahlo um dia renegada, mas hoje cânone; Ramonn Vieitez retrabalhando essa cânone anti-canônico e reafirmando-se na homossexualidade. “When somebody loved me; The wounded deer” é a capa do catálogo da mostra “New Queer Cinema: cinema, sexualidade e política”, que esteve ao longo do ano de 2015 em diversas capitais do Brasil, exibindo filmes queers, do movimento gay de cinema que emergiu principalmente como reivindicação política e social frente à epidemia de Aids que dizimou em genocídio milhares de homossexuais.

P.S.: Mataram, dia 2 de julho de 2016, um homossexual na UFRJ, estudante da UFRJ.

Bibliografia, filmografia e “quadrografia”

KAHLO, Frida. O veado ferido, O veadinho, Eu sou um pobre veadinho. Cidade do México: 1946;
LISPECTOR, Clarice. Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner para o programa Panorama. São Paulo: TV Cultura, 1977;
STECHLER, Amy. The life and times of Frida Kahlo. Washington DC: Daylight Films e WETA, 2005;
VIEITEZ, Ramonn. When somebody loved me; The wounded deer. Recife: 2012;
NAGIME, Mateus; MURARI, Lucas (orgs.). New Queer Cinema: cinema, sexualidade e política (catálogo). Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: Caixa Cultural, 2015. 


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