sexta-feira, 18 de março de 2016

Por uma Hannah Arendt banal e cotidiana


Por que pensar, ainda hoje, no Brasil, Hannah Arendt, mulher nascida na Alemanha há 110 anos, morta há 41, que teorizou as consequências e razões de um evento iniciado há 77 e finalizado há 71? Porque, ainda hoje, o passado é presente e as catástrofes de ontem se perpetuam, seja na Europa, seja na América. Judia, vítima do preconceito antissemita que permeou a Europa em todo o século XX, Hannah Arendt viu-se vítima do governo nazista e, exilada nos Estados Unidos, passou por um tribunal da opinião pública frente a seu posicionamento intelectual, mal compreendido em sua época de efervescência. Amante (intelectual e fisicamente) de Martin Heidegger, um dos principais filósofos modernos – que em determinado momento chegou a compactuar com o nazismo – Hannah entendeu a engrenagem dos governos totalitários de forma extremamente clara, mas incômoda para a compreensão da maioria das pessoas: quem atuou de forma nefasta e decisiva em eventos-limite para proporcionar a aniquilação do ser humano foram pessoas burras e mandadas, dizendo no português claro. “Apenas obedeciam a ordens” não fica aqui como mera retórica. A linha tênue entre o poder fazer e o fazer de fato torna-se, portanto, uma questão de conveniência: pode-se estar no lado dos que matam, ou pode-se estar no lado dos que morrem. Quem esteve do lado dos que matavam, muitas vezes tentou fugir a esta premissa: “Apesar de quererem-me assassino, não matarei”. Quem esteve do lado dos que morriam, muitas vezes tentou fugir a esta premissa: “Apesar de quererem-me assassinado, não morrerei”. Questão de sobrevivência. Fato notado por Hannah e demonstrado em diversos testemunhos de prisioneiros de campos de concentração: prisioneiros auxiliaram, voluntária ou involuntariamente, na morte de outros prisioneiros para, com isso, possibilitar suas próprias sobrevivências. No entanto, estas vítimas que proporcionaram a morte de outras vítimas não podem ser comparadas aos algozes e carrascos que proporcionaram a morte dos prisioneiros. Como quis demonstrar Hannah, judeus foram violentos com outros judeus, dentro dos campos de concentração, para manterem-se com vida, possibilidade esta de morte não presente na situação do algoz-carrasco. Como destaca Agamben: “a zona cinzenta em que as vítimas se tornam carrascos, e os carrascos vítimas. É sobretudo a respeito disso que os sobreviventes estão de acordo: ‘Vítima e carrasco são igualmente ignóbeis; a lição dos campos é a fraternidade da abjeção” (AGAMBEN apud PENNA, 2013, 72). Analisando mais diretamente o trabalho de Hannah Arendt frente a estes pontos muito intrincados e complexos, porém reais, frisa-se que: 
 
O resultado da operação arendtiana é aproximar as vítimas de seus carrascos, desconstruindo a ideia transcendente de bem e de mal e criando uma zona intermediária, generalizada e imanente, que precisa ser finalmente esmiuçada e judiciosamente examinada pelo procedimento crítico, mas que consiste basicamente em uma mesma coação característica do sistema totalitário, que une vítimas e carrascos em um mesmo ‘colapso moral’, e de que o nazismo é um caso exemplar (PENNA, 2013, 86).

Termo este, ‘colapso moral’, retirado do trabalho de Hannah sobre o julgamento do nazista Adolf Eichmann. Mas retomando a questão, após longos devaneios: por que frisar tais pontos frente ao debate da teórica alemã? Pois a própria, judia e vítima do nazismo, foi acusada de ter perpetrado um movimento em defesa dos assassinos de um dos mais violentos episódios de toda a Humanidade. Evento este belamente demonstrado na peça “Por amor ao mundo, um encontro com Hannah Arendt”. Moralmente linchada por ser judia, perseguida, apátrida nos Estados Unidos por mais de uma década e por, ainda assim, ter feito este movimento teórico que leva a uma supostíssima aceitação das práticas nazistas, Hannah destaca: “tentar entender não é o mesmo que perdoar”, em consideração representada de forma eficiente durante a peça, onde a teórica tem um debate intenso com uma jovem descolada e hipster descendente de judeus. Esta jovem grita suas opiniões de forma muito eloquente e faz com que a plateia (pelo menos eu) a relacione com este tribunal julgador de redes sociais que atua fortemente no século XXI. Hannah, no entanto, tenta expor sua opinião para fazer com que a jovem compreenda: eu entendi como que se deu o governo nazista (e, ponto meu, como é possível que eventos semelhantes possam voltar a se repetir), mas não significa que eu compactue com ele. Ainda que esta “banalidade do mal” seja perceptível, Hannah não esteve avessa ao julgamento dos culpados: “as ruelas dentro do sistema são culpadas, há critérios objetivos – os atos – para se julgar, ‘mesmo que oitenta milhões de alemães tenham feito como’ fez Eichmann’” (Ibidem, 90). A peça quer, a meu ver, deixar isso claro e explícito, sendo esse embate entre o que Hannah pensa e quer defender e esta opinião pública que não a compreende um dos pontos fortes. Em tempos de, no Brasil, forte embate político e descalabros proferidos de diferentes partes da população, faz-se totalmente necessário este debate por aqui. Afinal, o próprio país pode cair (e está caindo) em um discurso fascista e de direita, que em nada colocaria a perder à Alemanha que deu chance ao nazismo (Alemanha esta que era um oásis de liberdade e progresso, vide a cena intelectual e sexual que frutificou e se espalhou principalmente até os anos 1920 no país). Ou seja, a violência e a catástrofe podem se dar em qualquer país, basta um mero deslize. É este deslize que Hannah Arendt demonstrou ser tão passível de se ocorrer. A peça, em cartaz durante um dia no Teatro Sesi, foi seguida de um debate com atores, políticos e intelectuais que estão inseridos neste debate e que puderam acrescentar muito, para a plateia,  no que tange à compreensão e reflexão do assunto. Entende-se, portanto, que foi válido o debate sobre Hannah, seja na peça ou durante o discurso dos palestrantes. A banalidade do mal está aí: ontem, hoje e amanhã, crescendo a partir de uma disseminação simulada de medo na população. Medo este sendo visto durante todo dia 13 de março na televisão com a população brasileira se manifestante contra o governo atual. Hannah, volte correndo porque o mundo precisa ainda de suas palavras. Por mais peças, trabalhos artísticos e reflexões sobre você.

Bibliografia

PENNA, João Camillo. Sobre viver (Giorgio Agamben e Primo Levi). In: Escritos da sobrevivência. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2013;

Peça

ZANELATTO, Marcia. Por amor ao mundo, um encontro com Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Teatro Sesi, 9 de março de 2016.

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