sábado, 11 de outubro de 2014

Hoje, somos todos felizes

Estou no comando, porém não enxergo bem o caminho a seguir. A estrada é tortuosa e o barro acumulado dificulta a passagem. A chuva que atingiu a cidade, na noite anterior, persiste menor, mas mantém-se. Aqui, no carro, estou com calor, mesmo que esteja sem a blusa. O banco está ensopado com o meu suor, salgado e malcheiroso. Meus dedos deslizam pelo volante, e não tenho mais segurança sobre a direção. O Fusca parece-me apertado comigo, três crianças e uma mulher dentro. Continuo, por mais que esteja difícil: é minha missão chegar lá. Vejo um pássaro em cima de uma árvore e olho o pássaro, que está em cima de uma árvore. A menina grita: “Cuidado!” Paro, então, de olhar o pássaro, que já não está mais em cima de uma árvore. Estou, agora, focado: o futuro. Viro uma curva à direita, depois viro outra curva à esquerda, em seguida permaneço reto e, por fim, o automóvel parece não ter forças para subir uma ladeira. Percebo que podemos estar perto de onde eu quero chegar quando vejo uns cavalos junto a umas vacas, em um morrinho que acompanha a estrada. Nossa casa está próxima, eu penso feliz. Sinto algo molhado cair sobre meu peito, mas não quero parar e olhar, porque algo molhado no meu peito não é um pássaro. Apesar do incômodo, prossigo. Olho para o banco do carona e vejo uma bela mulher, sorrindo. Olho para o banco de trás e vejo dois meninos e uma menina, inocentes, sorrindo, como que coreografados em perfeita sincronia catártica. “Chegamos à nossa casa”, grito! Rindo, solto a direção do automóvel e bato com a cabeça seguidas vezes na buzina. “Chegamos, meus amores!” Voando, o carro foi indo, sem mim e sem Deus, sem meus filhos, sem mais ninguém, sem minha mulher e sem mais misericórdia, porque eu tinha acabado de voltar do boteco e bebi tanto que eu já arrotava álcool puro, meu estômago ardia, minhas pernas e meus braços formigavam e eu, sem sentir-me, fui em direção à minha família, querendo-os mais que tudo, e ordenando que entrassem comigo no carro para a diversão mais eletrizante: a que nos levaria direto ao Paraíso. Eu – Deus – comando a todos, em todos os momentos. Minha mulher é a minha mulher; meus filhos são os meus filhos; a minha bebida é a minha bebida; o meu carro é o meu carro. Quando tomei banho, algum tempo depois de estar nesta estrada, percebi que o que estava sobre meu peito era vômito, mas que o que veio estar sobre a minha cabeça era sangue, que veio por meio do impacto que a panela de pressão teve no encontro de minha cabeça, calva. Minha filha deu com ela para que eu parasse de ziguezaguear na estrada. Batemos. Infelizmente, sobrevivemos.

Eu quero apenas ver e entender a felicidade que existe no mundo, mas agora, deitado nessa cama de hospital, todos os mosquitos devoram-me e a sangria deixa-me fraco e desalentado. A enfermeira, que por compaixão passa por meu leito, sabe informar-me apenas: “Felizmente, sobreviveram”. Sinto sede, mas não há água a meu lado. Peço: “Por favor, meu anjo, traga-me algo para beber”. Ela responde-me que é impossível: “O médico pediu-me para não dar álcool ao senhor”. Surpreso, respondo que desejo apenas água: “Estou seco”. Constrangida com o mal-entendido, a jovem sai de minha frente e eu volto a estar só. Penso que toda a cachaça vagabunda que bebi, no dia anterior, deve estar corroendo o meu esqueleto. No leito, não posso nem urinar sozinho. Minha natureza foi podada da forma mais vil. Sozinho, triste, arrependido de não ter morrido e de não ter matado: “Não merecem a mim e nem a si mesmos, porque somos toda a desgraça que habita este mundo”. Eu que bebo, eu que traio, eu que maltrato, eu que jogo. Não sou merecedor deles e nem eles são merecedores de mim. Toda a minha família é a proliferação da minha imundície. O ódio nos permeia de forma tão intrínseca, que não há mais a possibilidade de manter-se qualquer diálogo saudável por entre as partes. Eu os destruí aos poucos e eles permitiram-se ser destruídos por mim e também por todos ao redor. Não fui um bom pai, porque eu sucumbi aos desejos terrenos, mais que humanos, e permitidos para um homem descompromissado, mas pecaminosos para alguém que constituiu um lar e deve preservá-lo. Desejei, secretamente, enquanto todos os dias tomava banho, o fim de cada um deles: que minha mulher morresse afogada, que minha filha morresse enforcada, que meu filho morresse atropelado, que meu mais novo morresse esfaqueado. Esqueci-me, apenas, de desejar-me a morte, diversas vezes, provavelmente porque estivesse ocupado entornando em mim tudo o que houvesse dentro de uma garrafa. Eu, sem saber, enterrei-me em cova rasa antes que todos, mas como estão todos aí, vivos, preciso reencontrá-los. Quem somos nós?

Essa estória é sobre as pessoas que foram infelizes e aceitaram com complacência suas condições de submissão diante do inominável horror do medo. Somos personagens que não tivemos coragem de encarar a guerra e como soldados que entregam-se total e irrestritamente ao adversário, vimos a grossa mão estapeando-nos, não para que acordássemos, mas para que desmaiássemos. Fui apenas mais uma vítima desse matador de aluguel, e perpetuei seu legado ao lado de quatro pessoas. Mutilei-os em sonhos e perspectivas. Agora, podados, somos um albergue que hospeda as ilusões de um futuro que nunca se tornará real, posto que seja tudo menos isso que eu toco com a minha visão. O meu desejo de matar ou morrer não seria tão grandioso se, de fato, tivesse-os matado e eu morrido. Estar vivo faz com que o desejo de morte seja ainda mais grandioso: morrer deixa a morte morta. Viver é que faz-nos lutar diuturnamente a caminho do fim. Eu, quando bebo, faço-o para perder os sentidos, pois não quero mais ser eu, quero ser eu-lírico.

Era noite em 1981 quando encontrei, ao entrar no quarto do mais novo, um papel dobrado. Nele, havia desenhado um menino tocando flauta. Em cima do desenho, sua assinatura. Lembrei-me, então, de quando arremessei-o sobre uma porta de vidro, por ter perdido a partida de videogame que disputava comigo. Ele, então, raquítico, estava por isso costurado por pontos. Os pontos que colocavam um lado de sua pele a outro davam mais liga e comunicavam-se melhor do que eu e ele. Agora, ele vendeu tudo que ainda restava de nossa casa para cheirar a cocaína, colocar para dormir dentro do meu quarto alguns desconhecidos e perambular pela cidade vestido de preto. Ele, que começou a jogar xadrez depois de ser dispensado do concurso para entrar na Aeronáutica, por ser daltônico, usou de sua racionalidade para ir de encontro com outra plataforma de percepção, que não a que ele estava tendo comigo. Em sua primeira e única internação em uma clínica de recuperação, ele escreveu-me: “Papai, o que tenho de mim, já deixei para trás: agora vivo de ser osso”. Não visitei-o mais. Ao fugir da clínica, soube que ele atravessou a rua e morreu atropelado. Como não tinha nenhum documento, o governo guardou-o por quatro dias por reclamação da família. Quando o encontramos, o enterramos.

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