quarta-feira, 13 de julho de 2011

A membrana


Tudo estava a arder. Saiu de sua cama em estado de desespero, procurando sua família, para que juntos pudessem gritar. Já era dificultoso respirar, e a angústia interna de possivelmente morrer sufocado foi triste: morrer de supetão é mais viável; aos poucos é sofrer.


Era possível enxergar a fumaça provinda do primeiro andar, e notou que a cozinha estaria naquele momento cozida: a banana, a maçã e o milho de vidro que ornavam a mesa central foram explodidos em mil pedaços por todo o chão; baratinhas moradoras de debaixo do fogão, adeus. Na sala de visitas, onde o fogo deve ter chegado rápido, o registro das existências das pessoas no mundo era apagado, fazendo com que elas deixassem de ser para a posteridade: foto. O jantar não será mais servido hoje, pois a casa acaba de perder sua mesa grande.


Mas onde estão todos, para ajudar? Onde estão todos, para fugir? O pinheiro de Natal caía em cima da rua, e os animais domésticos saíam para liberdade, e a gente invi-sível diante da cremação em grande escala. O nevoeiro que precedia o fogo escolhia seu caminho auspicioso, tomando tudo em negritude. Como ele fugiria? Impossível escapar, o primeiro andar tomado, as janelas gradeadas, a certeza do fim quente.


Abrindo a boca, a voz das chagas era mais alta que a dele, calando-o. Não tardou para que os quartos fossem alcançados, e o sono impossibilitado de repetir-se nas noites posteriores. Ele, correndo para o banheiro da suíte principal, escondeu-se na banheira, por ali poder ser o último a ser atingido, pela longitude deste cômodo em relação à tota-lidade da residência.


Ficou triste por saber que ao fim nada mais estaria palpável. Cadernos de escola, livros de estórias, roupas de andar fora, animais de pelúcia de brinquedo conseguidos na máquina de parques, o tapete de letrinha, o mapa do mundo, o Fofy da despensa, a groselha, a infância, a adolescência, a responsabilidade e a velhice, em suma destruídos.


A dificuldade de respirar era maior agora. Com suas narinas irritadas, tossia muito, e o suor escorria em cataratas pelo corpo parcialmente desfalecido. Jovem demais para ir embora, até o dia anterior pensava que viveria para muito tempo, mas hoje percebia que não viveria nem por mais muitas horas. Realmente, angustiante demais morrer devagar. Se fosse morrer como se deve mesmo morrer, nem sentiria a luz branca chegar, porque ao piscar dos olhos, estaria ali a beijar Deus. Na tabela das mortes, morrer sufocado pelo fogo era apenas melhor que morrer sufocado pela água, que deve ser muito, muito pior. “Ah, não... Vou morrer mesmo é queimado, não sufocado. Assim, só posso desmaiar.”


Será que morrer ardido era menos sofrível que morrer sufocado? Apenas sentin-do, para saber.
O medo tomava-o, totalizando-o. Enquanto a casa era comida, ele era comido. Seu ego implodia-se, pois ele era adepto dos medos. Os medos tomavam-no desde juvenil e perseguiam-no até o sempre, sem intervalos de descanso mental. No presente momento, a certeza da morte, virtualmente última vida, banhava-o na banheira.


A casa, em pouco tempo, seria assassinada, e ele também seria assassinado; a casa sem a ajuda de ninguém e ele sem a ajuda de ninguém. Nem sinal de bombeiros e nem sinal de parentes. Sem governo e sem família. Nada para uma mão estender.


Quando pensava que iria um dia morrer, gostaria muito de saber como sentiria-se neste tão sublime momento. A partir dos oito anos de idade, que foi quando tomou consciência de si mesmo e do mundo como algo diferente dele, imaginou que morrendo, subiria como que por um caminho feito de nuvens, vertical, em direção ao céu, e que lá em cima Deus o estaria aguardando, de braços abertos. Juntamente, tudo que embaixo tinha, encima haveria da mesma forma, só que composto de nuvem: uma mesa de nuvem, um prato de nuvem, uma cadeira de nuvem. Em relação às pessoas, não seriam de nuvem, mas estariam vestidas com uma camisola cinza fluorescente. Ao pensar, aos oito, nesta situação, era padrão que visse seus parentes já mortos sentadinhos em mesas de nuvem, no canto direito, sorrindo para ele, de camisolas. Mas como a partir dos dez começou a duvidar de Deus e de sua existência, tal paradigma mortífero passou a ter que, necessariamente, diferenciar-se. Portanto, como ver o dia depois de amanhã? Ou não, como sentir-se ao saber de fato que amanhã será o dia depois de amanhã?


Uma janela era o que sobrara como chance. Quebrou-a com a escova de pentear os cabelos, jogou-se através do espaço pequeno e foi ao chão, salvando-se da casa a ser assassinada. Hoje ainda não haveria de ser o seu dia, aleluia.


Ali, estatelado, viu-se peladinho. Peladinho em pelo e com todos os vizinhos a olharem-no. Aonde? Onde? Por quê? Porquê? Por que? Porque? Parado, aguardou. Todos admirando, e onde estão mamãe e papai? Queimados? Tomara. Quem dera? Não!


Estendeu-se e quis a ajuda de alguém. Mas como alguém o ajudará se mamãe e papai não há?
Estava um peso, e ele era o peso de sua vida; o martírio de um carma. Por muitas vezes queria fugir, mas não do mundo, e sim de si, pois a rejeição da sociedade para com ele era tão extremada, que Joaquim transmitiu-a para sua própria interioridade. Interioridade essa devassada, devorada, ampliada, diminuída, gestada e morrida, uma estranha em seu corpo. Sua interioridade era mais moribunda que sua exterioridade, ou vice-versa. Temia, mas admitia.
Nada mais pode ser feito quando se está deitado sem nada, em plena rua, sem ninguém a te ajudar, com todos a te olhar. Quando Joaquim percebeu que estava em pleno escárnio público, ficou com tanta vergonha, que a vontade que teve foi a de matar todo mundo, pum, pum, pum, um por um.


“Na minha vida, em algum momento de transição, eu perdi o fio da meada, definitivamente. Não é normal: passa, ultrapassa, segue em frente, vai!” – disse Joaquim pensando, ou pensou Joaquim que disse.


Se um dia, para ele, houve alguma definição satisfatória de sua existência, ela foi revelada de maneira dolorosa e fragmentada, para que Joaquim tentasse compreender-se como um, dividido em vários. Peladinho e ao som de barulhos, tentou ouvir o seu próprio barulho interno, encontrando com muita dificuldade somente a questão, distante, em seu sentido.


Tossindo dores, engoliu a realidade, mas sempre uma realidade verdadeira que percebida é inócua, sem passado e sem futuro, com um presente deveras porco.


Um dia, desistir de perguntar deve ser a melhor resposta para a eterna pergunta, Joaquim finalmente no sanatório percebeu. Deus, então, apareceu? Não, porque Deus não existe.
“Não! Deus existe sim! Deus existe e é muito bonzinho, é muito tudo de tudo que um nada pobre coitado pode querer. Deus responde o irrespondível. Deus acalma os pecados joaquinianos. Deus perdoa Joaquim por ter nascido e sido.”


Se Deus de fato não faz isso, pelo menos Joaquim acredita que Deus o faz, o que já é o bastante. Pelo menos uma coisa de bom o Cristão disse a Joaquim: “Deus ama o pecador, ainda que odeie o pecado.” Graças a Deus.


“Você repetir o nome d’Ele várias vezes, faz parecer mais concretamente que Ele existe.” Mas tudo não passa da ilusão que nasce conosco quando nascemos e que morre conosco quando morremos.


Local: Instituo Philippe Pinel
Endereço: Avenida Venceslau Brás, número 65 – Botafogo, Rio de Janeiro
Rio de Janeiro – Brasil


– Poxa, como tudo aqui é tão bonitinho.

Nenhum comentário: