Eu deveria escrever cartas. Assim, poderia trabalhar de maneira mais satisfatória a minha literatura. Mas não tenho certeza se alguém, hoje em dia, ainda gostará de receber cartas. Eu gostaria de escrevê-las, mas tenho quase certeza de que não as receberia de volta, como resposta, ficando assim em um vácuo comunicativo, que representaria, para a minha pessoa, a falta de apresso que os outros têm por mim. Devo, em todos os meus vinte anos de vida, ter escrito duas cartas. Uma, para uma prima ucraniana, tendo recebido resposta, graças a Deus, ainda que muito tempo depois. Outra, para um namo-rinho qualquer, o que arrependo-me deveras, pois além de não obter resposta, envergonho-me de ter colocado ali coisas tão desnecessariamente bonitas para alguém que em nem dois meses abandonou-me. Tendo a crer, aliás, que sempre abandonam-me. Nunca penso que eu desisti de você, ou de vocês. Porém sempre penso que você, ou vocês, desistiu/desistiram de mim. Isso deve ser porque eu fui criado dentro de uma sociedade repressora e oprimida, onde eu tenho mais que escutar do que dizer, mais dar do que receber, mais estudar do que ser estudado, mais amar do que ser amado, mais dar respostas do que ser respondido. Porque eu quero responder-me, por mais que não consiga, quase sempre. Dar uma frase como retorno a uma outra frase interrogativa é algo dificílimo, até para os mais treinados. Tudo fica mais quando trata-se de si mesmo. Além de tudo, é complicado definir-se sem parecer altruísta ao revés. Também não quero parecer. Gosto de falar sobre mim, sobre as minhas coisas, sobre o que gosto de fazer, sobre minhas ig-norâncias e banalidades. Pois é a única coisa que acho que mais sei. Posso especular sobre tudo, mas sobre mim afirmo conscientemente. Se escrevesse cartas, todas elas, infelizmente, seriam sobre mim mesmo. Então, não tem mais sentido escrever cartas, porque para falar de mim mesmo, já escrevo livros. Devo mais pensar que escrevo livros do que de fato escrevê-los. Pensa-se demais e faz-se de menos. Sempre foi assim e é ignorância dizer que hoje é diferente de ontem. Se escrevesse cartas, todas elas seriam contando o eu. Se escrevesse cartas, porque das duas que escrevi, foi sempre pensando em fazê-lo para, a partir daí, criar um hábito de escrever cartas. Elas, então, não existiram por si mesmas, foram apenas uma suposta partida, que vê-se agora, vazia, tanto de sentido, quanto de conteúdo, porque além de não ter recebido resposta da última, não consegui, por meio de nenhuma delas, uma resposta. Mas que resposta? Uma resposta.
Se escrevesse cartas para todo o mundo, receberia cartas de todo o mundo. Porque todo o mundo não é todo o mundo namoradinho. O mundo namoradinho não manda cartas em retorno, apenas o fazendo o mundo amiguinho e o mundo familiarzinho. Portanto, hoje eu estaria recebendo cartas. Porque hoje é o dia do meu aniversário. Não sei ainda muito bem quais são as convenções paradigmáticas para se comemorar um dia de aniversário. Sempre sou, há anos, convidado para os mesmos aniversários, tendo eles já uma padronização formal e social de intenções: ligam-me, convidam-me, apareço, canto parabéns, como bolo e volto, em seguida, para minha casa. Mas e com o dia do meu próprio aniversário, o que fazer e como fazer e quem chamar e quem comer e quem beber? Chego ao ponto de até não gostar de fazer aniversários por ser complicado para mim, diante de um leque amplíssimo de opções, escolher a melhor. Mentira. Durante todo o ano, sempre tenho muito boas opções de como realizar uma boa festa de aniversário. Mas quando chega no dia do meu aniversário, parece que todas aquelas inúmeras opções somadas anulam-se, fazendo com que em minha mente fique apenas um oco inábil. Se escrevesse cartas, poderia receber boas opções de comemoração, bem próximas ao meu aniversário, para que facilmente não esqueça-as. Dessas pessoas que vou aos aniversários, praticamente só as vejo nos mesmos. Ai, se escrevesse mais cartas...
Pensei, com isso, em não fazer nada. Esperaria que os outros viessem até mim. Não convidaria ninguém, não programaria nenhuma festa, que sempre dá errado e a gente sempre se estressa organizando. Vão ligar-me, vão passar aqui em casa, vão desejar-me feliz aniversário, tudo de bom, muitos anos de vida, muito carinho, paz e amor. Vão dizer que comerão meu bolo, vão dizer que o Senhor derramará o Seu amor sobre mim, vão dizer que eu sou tudo para eles, vão dizer que sem mim nada seria possível, que sem mim tudo seria sem sentido, que sem mim nem as cartas poderiam ser escritas. Diriam, enfim, que eu fiz sentido neste mundo, que eu entendi-os e que eu entendi-me. Dariam-me, com isso, um beijo e um abraço apertado, pois sempre estou disposto a um abraço e um beijo. Fariam, também, sempre, uma homenagem a minha pessoa. Poderia ser uma apresentação oral, em cartaz, em conjunto, em carro de som, mas o fariam. Eu acho. Mas se eu escrevesse cartas, com certeza a homenagem viria em uma, linda. Como eu parei de escrever as duas cartas, eu nunca receberia uma homenagem em carta de dia dos meus anos aniversariados.
Decidi com convicção que nada seria feito, mas que tudo seria feito, porque eles me procurariam. Fui muito confiante na certeza de que eu era e seria amado e bem quisto por eles, meus amigos e minha família. Levantei-me às seis horas da manhã, porque podem já quererem desejar a mim parabéns essa hora, nunca se sabe os horários de estu-do e trabalho dos outros. Esperei, tomei café, almocei, lanchei, li jornal, vi o programa da Márcia, jantei, li, esperei. Não quis ligar para as pessoas chamando-as para virem aqui em casa, porque poderia parecer que eu as estava obrigando a desejar parabéns a mim. Isso não se faz, porque posso querer ser tudo, menos inconveniente e passar por vergonha e escárnio. Esperaria mais um pouco, porque tinha esperanças de que as pes-soas amavam-me e queriam-me e que desejariam-me uma boa vida. Se eu escrevesse cartas, teria mais certeza de que era bem amado, bem querido e bem desejado. Se as cartas que escrevesse obtivessem sempre uma resposta, aí sim teria a certeza absolutamente convicta de que de realmente mesmo as pessoas me bem amavam, me bem queriam e me bem desejavam, não necessariamente nesta ordem, pois não sou muito exigente. Mas como cartas não escrevo, não posso exigir, passei a pensar, que as pessoas me amem, me queiram e me desejem. Pensei, por último, que não deveriam saber que hoje era o dia do meu aniversário, por minha culpa, claro, porque eu provavelmente não dis-se a ninguém que hoje era o dia do meu aniversário. A culpa seria minha por não escrever carta e por não dizer à gente que hoje era o dia do meu aniversário. Tudo, apesar de tudo, são apenas conjecturas, pois quis acreditar nisso, para dar uma explicação à ausên-cia, confortando-me. Com certeza eles sabiam que hoje era dia do meu aniversário, mas não estão presentes pois gostam de fazer-me sofrer. Ou eu gosto de fazer-me sofrer, afi-nal de contas, a culpa é minha de eles não estarem aqui comigo. A culpa é minha por não escrever cartas e não saber a regra para o uso correto dos porquês e da correta classsificação das orações subordinadas. A culpa é minha por saber escrever, mas não saber classificar o que estou escrevendo. A culpa é minha por saber o que eu quero, mas não saber como chegar ao que quero. “Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.”, ela já havia dito e eu já havia concordado.
Cheguei a um ponto do dia que quis verdadeiramente que ninguém aparecesse. Assim, sentiria pena de mim e faria com que os outros sentissem pena de mim, também. Aprendam: a maneira mais fácil de receber o amor é fazer com que as pessoas tenham pena de você. A pena (não a que escreve, por favor) redime e é o meio menos difícil de receber-se um abraço apertado. Alguém chegando a minha porta, poderia fingir que não escutei, para depois dizer que a pessoa aqui não esteve, e implorá-la um pedido sincero de desculpas. Melhor: perdão. Eu veria, ali, o quão as pessoas amavam-me mesmo e elas passariam a fazer alguma coisa bonita para mim, comemoração, ou algo do tipo, por meio da pena e eu ficaria satisfeito e receberia um afeto que provavelmente não existiria se não tivesse vindo por meio da pena (novamente: não a que escreve, por favor). Se eu escrevesse cartas, poderia receber mais rotineiramente a pena alheia, sendo amado mais dias e com mais intensidade pelos terceiros, quartos e quintos, até os décimos.
Se eu escrevesse cartas todos os dias e se eu comemorasse sempre bem o meu aniversário, saberia ser uma pessoa mais feliz. Mas como não pratico minha literatura cotidianamente, sou uma pessoa que não escreve bem, e por não praticar meu aniversário todos os dias, sou uma pessoa que não aniversaria bem. Queria ter coerência e coe-são, pelo menos mais perceptivelmente. O que quero hoje, posso deixar de querer amanhã, mas é raro que abandone o que estava a querer ontem, pois existem sempre as pes-soas que esperam nosso retorno e que nos cobram de nossas supostas obrigações. Essas pessoas não permitem jogar-me. Essas pessoas querem que eu faça coerência e coesão escrevendo “Era uma vez,...”, mas só sei escrever “Era uma vez um pássaro, meu Deus.”, ela já havia dito e eu já havia concordado. Eu espero que você saiba quem é ela, pois eu sei quem ela é, ou pelo menos acho que sei quem ela é, porque eu acho que sei quem eu sou e eu e ela somos filhinho e mamãe.
Se eu escrevesse mais cartas e se eu comemorasse direito o meu aniversário, eu seria mais feliz, porque as pessoas leriam as minhas cartas e compareceriam ao meu aniversário, nem que por pena (a da caneta).
No fim do dia, chegou o fim do dia, e só.
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