I
Esmeraldina estava sozinha no lugar. Não desejou mover-se, receosa de perder as recordações que acabara de ter. Era dessas coisas. Como mulher burra, não se dava ao luxo de permitir que o pensamento lhe fugisse de dentro.
Recordou-se dos tempos de menina. Ainda não trabalhava na cozinha fedida à gordura, nem balofa sua barriga tinha o disparate de ser. Mas no momento isso não tinha valor algum. O que adianta pensar no passado melancólico, se absolutamente nada de eficiente pode ser feito para alterá-lo?
Acabou com tudo aquilo em dois tempos. Aprendeu com a mãe a ser forte e não se deixar cair em sentimentalismos baratos. Sabia que morreria dentro de instantes e ninguém deveria, nem poderia, alterar nada. Se Deus não quis que vivesse, Esmeraldina era ninguém para querer fugir do próprio destino, com os próprios pés.
Olhou para o que tinha diante dos olhos grandes e azulados, marejados pela lágrima. O caldeirão estava ali, como sempre. Foi nele que alimentou milhares de moribundos esfomeados e a partir dele que recebeu seu pão para repartir com o filho. Esse, pobre coitado, era ciente de sua pequenez diante do mundo, de sua insignificância perante as grandes questões humanitárias, que tanto lhe afligiam.
Felizmente, pela primeira vez, em sessenta e nove anos de vida, constatou e aceitou o fato de que deveria largar o cacoete vil. Viver, para ela, se fazia mais difícil do que se ver uma cadela nortista retirante de um romance regionalista.
Viu seu próprio retrato no caldo situado no interior do panelão. Como era pequena, esforçou-se desmedidamente para subir. Finalmente, conseguiu. Estava na borda. Na linha. Na sacada de um mundo, um mundo novo, um vasto mundo.
Jogou-se.
Acabou-se.
Chorou-se?
Não. Pela estúpida, nem falta sentiram.
II
Acharam-na, não porque alguém a quis achar, mas apenas pela simples coincidência de terem entrado na cozinha do colégio a procura de um esfregão, que seria utilizado na limpeza da doença de uma criança exposta no meio de uma sala de aula.
III
No enterro, se houvesse o coveiro e Esmeraldino, o filho da morta, era muito.
Os dois estavam, de certo modo, felizes. O filho por se livrar do fardo de cuidar e fingir amores por uma mulher que não enxergava como mãe. O coveiro por estar ganhando, graças a Deus, seu bom dinheirinho.
O Caju estava lotado. Esmeraldina escolheu o Dia de Mortos para sucumbir. Quem olhasse de fora, até poderia pensar que comemoravam o falecimento da cozinheira, mas não. Para ela, um filho e um funcionário, para auxiliar nos trâmites legais da ascensão aos céus, e só. O resto era para todos os outros.
IV
Tempos depois, Esmê, como era conhecido o rapaz pela vizinhança, achou um envelope em baixo da cama que era de sua progenitora.
Em outras épocas, não se daria ao trabalho de ver o que se tinha por dentro dele. Apesar de tudo, naquele dia, estava com uma certa felicidade estranha. Achou que fosse o amor. Não... Homens (poderiam chamá-lo assim?) limitados como ele são carrancudos o suficiente para conseguirem recusar o sentimento. Até a palavra soava-lhe estranha. Enfim...
Leu a carta. Surpreendeu-se. Conseguiu ler alguma coisa! As nove semanas que estudou, até que lhe serviram de algo. Mesmo tendo visto nomes nunca dantes vislumbrados, nem entendido muitas palavras complexas, até que o âmago da leitura foi depreendido com perfeição.
Esmeraldina matou-se, mas por causa de terceiros. Chantagearam-na.
“Forças ocultas querem tirar-me de ação!”, a primeira linha gritava.
A trabalhadora burra e velha escrevendo isso? Esmê parou para pensar que tinha algo fora do lugar. A resposta estava no fim da dissertação: alguém escreveu a carta para ela. O homem lembrou-se que a mulher passava muito por dentro da Central do Brasil. Lá, como já haviam lhe dito, ficavam sentados homens e senhoras querendo escrever cartas de outros para outros. Estava entendido. Afinal, cozinheiras cozinham, não escrevem, muito menos leem.
Minutos adiante, notou que o texto possuía continuação. A questão é que a continuação não estava presente. Algo ele não deveria saber. Mas a mãe não merecia tanto esforço e perigo. Deixou para depois.
V
Esmeraldino, ou Esmê, ou Zé-Ninguém, ou filho da cozinheira, morreu dois meses após ter deixado a carta de Esmeraldina esquecida na recepção da escola que, igualmente à mãe, labutava.
Suicidaram-no.
E agora? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu.
Se havia algum segredo para ser descoberto, ninguém descobriu. Se havia alguma declaração para ser feita, ninguém fez.
Para aqueles desgraçados pela vida, a estrada acabou. Afinal, não existe razão aparente para continuar vivendo.
No céu, Esmeraldina e Esmeraldino encontraram-se. Constataram que não importava o porquê, não importava o por quem, não importava nada sobre a morte deles. A morte dos fracassados pelo Diabo simplesmente não importa.
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