Quando seu irmão nasceu, com traumáticos dois anos e nove meses a menos na idade da certidão de nascimento, o homem que um dia se propôs a tentar escrever alguma coisa pensou consigo mesmo, sendo a ideia exposta a seu pai logo em seguida, que seria muito interessante saber ler, para que, com isso, pudesse acompanhar a missa de batizado de seu companheiro de pai e mãe, realizada em maio do ano de mil novecentos e noventa e três. Juntamente ao desejo da leitura, veio o da escrita, que apesar de ser aprendida quase que ao mesmo tempo por crianças na escola, possui uma carga de dificuldades muito maior e uma responsabilidade intrínseca imensa a ser carregada pelo feitor do texto escrito e não apenas passivamente lido. Nos dias em que ultrapassava a madrugada almejando transcrever psiquicamente no papel algo de interessante e construtivo para alguém, rogava pragas ao dia em que pensou em querer aprender a escrever, pois era algo tão desgastante e sem muito sentido instantâneo, que poderia vir a tirar as esperanças dos menos corajosos e bem aventurados do reino de Deus. Ler, portanto, era algo tão simples, tão gratificante, tão relaxante e recompensador, que, na balança das virtudes, encontrava-se em patamar completamente superior a qualquer outra maneira de se passar alguma informação para terceiros. Ler coisas dos outros, é claro, pois sempre são os outros que escrevem as melhores coisas, sendo elas consequentemente as melhores coisas para serem lidas. Apesar de tudo, ele até gostava de ler as coisas que escrevia, pois se estava a ler, era porque o texto já havia passado por seu crivo censurador algumas vezes e alcançado uma glória de permanência pouco comum na vida de uma página de papel preenchida por letras. Mas quando quis, há tantos anos atrás, além de saber escrever, ser um escritor, não sabia dos percalços que teria de percorrer para alcançar uma glória permanente apenas durante o tempo em que as pessoas o quisessem ler, ou as pessoas que leem quem o lê quisessem fazer o mesmo.
Isso, portanto, de querer escrever, vem muito por causa dos bons livros que o escritor, durante a vida, tem a oportunidade de ler. Os clássicos e as boas obras, que o deixam de certa forma encontrando o divino ao fim da última página, da última palavra, que o fazem querer escrever também, passar toda aquela alegria, tristeza e, principalmente, melancolia, para os outros. A desgraça, então, é quando se perde a vontade de ler os livros deles e tem-se a prepotência de querer escrever os seus próprios. Ele, coitado, não sabia que, para ser autor consagrado, de renome e bem criticado, teria que ter passado como requisito básico por muitos livros grandes, complexos e eruditos e ter atirado longe grandes tiras de árvores amazônicas tropicais tupiniquins, por tê-las achado feias e sem sentido concreto, ou até mesmo abstrato.
Sua leitura começou com alguns livros de capa vermelha fina, dados por seu pai. Possuíam muitas ilustrações, letras grandes, pequeno texto e muita diversão para as horas pré-sono protagonizadas pelo homem. Rivalizando as leituras com a visão dos filmes em fita (Meu Deus, alguém hoje em dia ainda se lembra de fita de vídeo? Hoje, acho que ainda sim, mas depois, acho que não mais) do Dumbo e do pinguim Arteiro, o escritor encontrou o ensinamento eficiente para a leitura. Em seguida, com a idade já mais avançada, teve o prazer de poder vislumbrar, diante de seus olhos muito cansados e com olheiras de tanto ler e pouco dormir, uma vasta coleção na biblioteca da escola em que estudava, no bairro carioca do Cachambi, mais conhecido por pessoas de outras zonas como “ah, ali no Méier”. Possuindo capas bem desenhadas e conteúdo aparentemente atraente, os livros de Agatha Christie ocupavam uma parte inteira e completa de estante feia e sem cor, sendo esta preenchida pela variedade de felicidades espalhadas por títulos e épocas de lançamento e edição. Tendo saído da aula e passado no local para escolher o primeiro livro a ser retirado da mais nova, ou seria a primeira?, biblioteca de seu conhecimento, ainda que hoje dizer isto o envergonhe, escolheu os dois livros que em seguida seriam sorteados pela coloração. O roxo, por ser cor predominante no momento, teve prioridade. Deixou, por fim, duas obras, que seriam escolhidas pela bibiotecária. Aquela seria a primeira vez, também?, que teria um contato e trocaria palavra com a senhora, sendo ela durante seis longos outros anos grande companheira. Tratando-se de “A mansão Hollow” e “Convite para um homicídio”, Maria Gladys apontou o dedo para o primeiro, permitindo ao então jovem rapaz o direito de deleite, mas a prisão da leitura, que torna-se, a longo ou curto prazo, compulsiva, grandiloquente, esquizofrênica e gratificante.
Dois anos depois, em decorrência de uma promoção de um jornal carioca, juntamente com um paulista, obteve uma coleção de trinta livros, a preços relativamente baratos, quatorze reais ou algo do tipo, somados aos três reais do jornal dominical, na época ainda não assinado por sua família, algo que só viria a ser feito no dia vinte e cinco de agosto de dois mil e cinco. Diferentemente dos outros livros que já haviam sido lidos por ele, pegou em mãos os considerados pelos críticos dos dois jornais os maiores clássicos da literatura nacional e internacional do século XX. Em dois mil e três, por julho, enfim, conseguiu alcançar o altar dos maiores clássicos da grande literatura, daquela que diz muita coisa para não dizer nada, ou daquela que diz coisas fáceis de maneira difícil. Como já tinha sido picado pelo mosquito da compulsão, passou a ler sem meias palavras. Parou no terceiro. Teve a maturidade de conscientizar-se ser novo demais para compreender tal tipo de estrutura frasal, literatura mais que infanto-juvenil, mas literatura de introspecção psicológica, epifanias sentimentais, fluxos de consciência e passagem de experiências de vida que ele ainda viria a ter muitos anos em seguida. Os clássicos – lidos paulatinamente, portanto, durante o longo do tempo – não o fizeram maior, nem mais forte em relação às dificuldades e dilemas da vida, mas o deixaram mais próximo do buraco existencial que há ao fim de cada coisa.
Mas o problema de querer escrever veio antes um pouco do início da leitura dos clássicos, ainda que os tenha deixado de lado por algum tempo, para maturar-se com literatura mais adequada. Não demorou muito para ter a ideia de que, infelizmente, com treze anos de idade ou por aí, nada de adulto poderia vir a ser escrito. Ainda que escrever seja se comprometer e em tudo que se escreva encontre-se vestígios e evidências de passagens, fatos e verdades autobiográficas, naquele instante o homem não estava po-dendo dizer em palavras coladas em folha aquilo que naturalmente estava vivendo, haja visto que sempre vivemos acontecimentos intensos e tristes o suficiente para serem um dia escritos. Sendo assim, poderia ter coisas já para dizer, mas ainda não sabia como. Marcel Proust não escreveu a coleção de sete livros desde os oito anos de idade, sendo elas feitas muito depois, ainda que com temática da infância, mostrando-se complexa e cheia de sentimento e tempo, comprovando que a infância e adolescência são sim momentos tão construtivos e literários, decisivos para a formação e criação de um caráter sólido e que perdura durante todo o resto da vida de uma pessoa, qualquer pessoa, seja ela boa ou ruim, rica ou pobre, escritora ou não escritora, fodida ou não fodida, por alguém ou pela vida.
Tendo decodificado a informação de que não seria capaz de escrever nada muito alguma coisa nem para si mesmo, quanto mais para os outros, chegou a uma conclusão solucionadora de problemas excelente: dentro de seu mundo interno imaginário e psicológico, só ele e apenas ele e mais ninguém tinham acesso a determinados livros. Ou seja, o escritor acreditou ou se fez acreditar que única e exclusivamente ele tinha possibilidade de folhear, ler, sonhar, livros que estavam guardados na biblioteca da escola. Como notou que eles já eram bem antigos, não apareciam na mídia e ninguém da escola praticamente os pegava, imaginou que era ele o único a ter aquelas preciosas coisas em mãos. Fora da escola, em casa, um tio, irmão de sua mãe, havia deixado vários livros um tanto que abandonados. Muitos anos depois o escritor chegou a conclusão de que sua compulsão por livros foi gerada em razão da genética proveniente dele. Ao ter a informação de que supostamente ele, escritor, era o único leitor de certas obras, pensou que poderia enganar os desavisados, fazendo com que copiasse os livros e os repassasse, como se fossem dele mesmo. Ninguém saberia que obras eram aquelas, ninguém na escola lia aqueles livros, ninguém nos jornais mencionava a existência por menor que seja de qualquer um deles. Sendo assim, aquele tesouro era dele, unicamente. Um achado, o caminho mais fácil e rápido para a felicidade, tudo de bom e do melhor, o reconhecimento como grande escritor para toda a vida. Um dos principais fatos que mais o animavam para copiar livros já consagrados era sua idade diminuta. Agregaria muito valor escrever profundidades tão profundas e complexidades tão complexas apenas aos treze anos de idade, ou até menos. Um gênio precoce, diriam todos. Mas como alegria de pobre dura pouco, encarou a questão de frente e vislumbrou o triste fim e verdade: a única vantagem, benesse e tantos outros adjetivos positivos, que aquilo o traria, se constituía em ter alcançado, muito rapaz, uma agilidade tremenda na digitação, sendo mais veloz até que uma dessas secretárias que fazem curso de datilografia. Daria um banho até nessas de antigamente, muito mais sérias e empenhadas. Sua habilidade era tanta que até seu pai dizia para que o escritor pusesse em seu currículo a rapidez na escrita computadorizada. Evidentemente, ele achava isso uma bobagem e refutava.
Segundo os analistas pelos quais o escritor passou até o exato momento de sua vida, o fato de ele copiar obras alheias, como “O jogador”, de Dostoievski, “Hamlet”, de Shakespeare, seria um desencadeamento para a descoberta de sua própria personalidade. (Sim, ele achava que Dostoievski e Shakespeare não eram tão conhecidos assim e poderiam passar batidos pela censura das editoras. Mas sua felicidade durou algum tempinho: chegou a mostrar a cópia de três capítulos de “O jogador” para Maria Gladys e ela disse: “Você é um grande escritor; uma grande pessoa.” O remorso sempre vinha ao lado, pois sabia que aquilo não era genuinamente dele.) Por todos que passou, adeptos sempre foram de Sigmund Freud e Jung. Falaram que o escritor, como adolescente, não possuía, ainda, pelo menos para si, uma identidade completamente formada e que, por isso, necessitava de um apoio externo aonde por ventura viria a se espelhar. Nunca chegou a saber exatamente se aquelas obras copiadas vieram a interferir na sua escrita futura, mas teve a certeza de que nunca chegou a ler de verdade aqueles livros, os copiando pela força momentânea e imediata que eles haviam causado em seu interior. Por conta própria, ajudado pela teoria da formação identitária que analistas chatos o haviam im-putado, entendeu o motivo pelo qual copiava a letra do coleguinha ao lado, na sala de aula. Tal hábito durou até o primeiro ano do ensino médio, surpreendentemente. O escritor sempre, logo que sentava-se na carteira, pensava mentalmente consigo próprio: qual letra hoje copiarei? Geralmente a escolhida de um dia durava por quase um mês, sendo posteriormente escolhida por outra supostamente mais bonita e com mais personalidade implícita. Muito disso veio porque ele acreditava que a letra estava unida ao modo da pessoa viver. Seu caderno sendo composto por letras que ele copiou de outrem o fazem, consequentemente, ter a mesma personalidade, atitude e alegria que o caderno da pessoa da letra copiada. Essa sensação era estendida a toda uma gama de atitudes vividas e cotidianas. Pegou-se a letra, pegou-se a vida, de terceiros. Não achando que poderia ter vida própria e pensamentos próprios que o fizessem poder escrever um livro, um dia olhou no espelho e disse: “Uma pessoa tão esquisita como eu definitivamente não tem como ser outra coisa na vida. Apenas escritores e malucos têm hábitos como os meus, transtornos obsessivos compulsivos como os que eu tenho, atitudes apersonais como as minhas, uma vida tão vazia externamente, mas ao mesmo tempo agitada internamente. Portanto, eu não sou nada e, por isso, continuo sendo nada.” No entanto, seu primeiro livro, por mais que tenha visto que aquilo não levaria a lugar nenhum, foi iniciado com algo já anteriormente escrito por alguém. Aquilo era, para ele, seu sumo, sua razão, sua explicação e entendimento. Não tendo nada a fazer no mundo, escreveria, apenas. Havia sobrado e definitivamente na terra dos homens e mulheres e crianças e cachorros e gatos e maritacas não existiria lugar para ele. Entendeu que escrevia porque era um desesperado e estava cansado, não suportando mais a rotina de ser sempre ele e se não fosse a coitada da sempre novidade que é escrever porcamente, ele se morreria suicidado simbolicamente todos os dias. Preparado, porém, estaria, para sair pela saída da porta dos fundos. Portanto, o escritor experimentou quase de tudo na vida, inclusive a paixão e o seu desespero subsequente. Agora, só desejaria ter o que tivesse sido e não foi. Ai. Tudo na vida, então, é uma hora. É uma hora de uma estrela, morrendo logo em seguida.
Quando pensava em escrever, pensava mais à noite, quase na hora de dormir. Ao entrar no computador, tentava escrever, mas não tinha muito sucesso na empreitada. Foi percebendo que, quando via uma folha de papel branca, sem nada ainda escrito, vinha como se fosse um bloqueio, algo difícil de se compreender, que o deixava amordaçado e não o permitia sair do lugar onde estava sentado, imóvel, com a mente oca. Isso ocor-rendo, levantava de seu pequeno falso trono e ia para a cama, pois no dia seguinte a vida continuava. Ao fechar os olhos, mentalmente, constatava – com muito ódio no coração e perguntas incessantes das razões causadoras –, que escrevia as melhores passagens e textos mais lindos, que nem o melhor dos escritores poderia pensar em escrever. Ao dormir, tinha a certeza de ser o maior escritor do mundo, com tiradas primorosas e encontro de palavras exatamente perfeitas, mas tinha a infelicidade de notar que aquele momento era breve e que o fim estaria chegando, logo que alcançasse o sono profundo, ao sonho atormentado. Já até tentou escrever logo em seguida ao pensamento dos olhos fechados, mas seu cérebro é mais esperto que ele e sabia que o epifânico chegou em momento de olhos fechados, devendo ficar restrito àquele momento e à minha (inconsciente, ato falho, perdão) pessoa. Que bodega. Sonho se fosse bom, em alemão não seria quase que “trauma”. A experiência de ser bom escritor apenas no sono o traumatizou.
O escritor utilizava, apenas para exemplificar aos amigos e familiares tal situação, o trecho a seguir, ressaltando que o havia pensado ao quase dormir: “Sinceramente, a dor dói tão doída, que quando ela doi, chega a doer tanto, que eu chego a gritar um grito alto, que chega tão longe e ao mesmo tempo não chega a ninguém, que acaba me fazendo ficar com mais dor, fazendo com que volte tudo ao princípio, matando e consumindo as almas doloridas e sofridas dessa África de sofrimentos mundanos e sem sentido, que existe internamente dentro de nós mesmos.” Um gaiato, em certo dia, perguntou: “Como pode você dizer que não consegue escrever bem e que as boas escritas se restringem ao sono e nada mais, se você conseguiu transcrever este trecho para nós?” Meu Pai do Céu, que alegria tomou conta da alma do coitado do escritor. Sim, ele podia transcrever a escrita do sono, mas depois de um tempo notou que isso ocorreu apenas daquela vez, não mais depois, sendo todas as tentativas posteriores frustradas.
Sua vida estando boa, não dava muito bons frutos, mas quando estava abaixo do nível da merda, aí sim, dialeticamente, via o paraíso diante de si e conseguia escrever. Apenas pequenos trechos isolados e soltos, sem muita coesão e coerência entre si. Um romance, então, pelo escritor, nunca seria escrito, continuando nesta dinâmica. Vendo que nunca sairia daquele vício de não conseguir se expressar e que muito da culpa era de seus pais, que sempre o exigiram explicações antes dos atos, sempre o oprimiram e o deixaram completamente inseguro diante da quase totalidade de pendengas da vida, quis então ser um escritor confessional, desses que dizem tudo de si mesmos nos livros e que podem se dar ao luxo e à enganação de dizer que escrevem literatura ficcional, portanto inventada e não condizente com suas vidas reais, dando um valor maior a escrita. Pois há de se convir que escrever sobre frustrações próprias é muito mais fácil que escrever sobre as alheias e desconhecidas, portanto. Você tem apenas que encontrar palavras certas e difíceis para ter lugar cativo na Academia Brasileira de Letras.
O escritor, no fim das contas, nunca se considerou, para terceiros, em sua vida, um escritor. Tal profissão, podendo ser chamada assim, era apenas considera dele para consigo mesmo. Quando qualquer documento o perguntava a profissão, atividade, até ele imaginava o quão ridículo seria colocar ali o substantivo “escritor”. As profissões dignas são medicina, engenharia, direito, e não escritor. Ninguém é escritor. As pessoas, na realidade, estão escritoras. Esse é o grande problema que a questão problematiza. Se a maioria dos seres humanos que desejassem escrever alguma coisa ganhassem dinheiro nesse processo dolorido, as coisas seriam bem melhores e os suicídios cairiam de forma bem significativa.
O escritor, então, depois de passar algum tempo sem nada fazer, apenas pensan-do em, decidiu agir. Pensou. Escreveu. Apagou. Reescreveu. Pernoitou. Imprimiu. Pagou. Fotocopiou (para não fazer propaganda espontânea). Procurou. Editora. Anos. Achou. Editou. Lançou. Ganhou? Li. Lestes? Leram? Lerão? Lerinho? Não. Procedimento? Parar e voltar à biblioteca da escola para copiar livro dos outros, para depois perceber que todo mundo já conhece aqueles livros e jogar tudo fora. Fazendo isso algumas sucessivas vezes, você, porque isso aconteceu com o escritor, se dará conta de que existem coisas que tem mais valor na vida, como andar de bicicleta e passear com o cachorro na rua. Mas até o escritor chegar nesta conclusão, ele já havia perdido quase toda a sua vida em nada, porque muito se escreve e os outros não perderão o tempo deles lendo coisas que você está escrevendo. Fik a dik: desista de contar como foi legal seu dia de garota emo pré-adolescente no blog e de como você a-mou o CD do Cine, porque ninguém se importa por isso e muito menos com você.
Tudo já foi escrito por todos os outros anteriores. Mas, então, porque escrever? Se não escreve-se, explode-se. Simples assim.
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