"Rodrigo é beato. Acredita em deuses. Cristo. Iemanjá. Apolo. Afrodite. Ateneia. Exu. Afrodite. Mickey Mouse. Chaves. (...) Tudo o que vem do humano é Deus. Uma geladeira. Uma máquina de lavar. Conheci deuses na infância. Garotos que morreram. Solidões inóspitas que só se davam comigo. Café com leite. A utopia é importante. Escrever uma página hoje já é uma utopia. O futuro manda lembranças. As lembranças que fiz. Que farei. Eu sofro. Sofro de um sopro de vida." Me roubaram uns dias contados – Rodrigo de Souza Leão.
Estava de pés, diante da grande janela que abria seu quarto de dormir para o mundo. Naquele dia, acordara com um certo temor, estranho para sua pessoa, mas já conhecido através da literatura de Dostoiévski. Tinha anseios que lhe faziam o coração palpitar de maneira extremamente acelerada e descompassada. Pensou em fechar a janela e deitar-se por mais alguns instantes, porém refutou a ideia, ao passo que sua coluna vertebral doía demasiadamente, em consequência de uma lordose obtida na infância distante e poeril. Estar como estava seria o melhor a ser feito, pensou. Logo desceria os degraus que separavam os andares da grande residência e tomaria um farto café da manhã. Infelizmente, o comeria só. Não se lembrava bem o porquê de estar ali, sem ninguém, em uma casa tão grande. A esquizofrenia afetava de modo permanente seu cérebro e impedia que possuísse raciocínios muito longos e complexos. Parou. Olhou para trás e vislumbrou o ódio que minutos antes havia sentido. Queria sofrer. Queria matar. Queria retirar de seu interior aquela angústia que o assolava e o imobilizava. Fez questão de retirar-se do quarto e encaminhar-se para o lavatório, onde jogaria em sua cara carcomida um bom punhado de água e tentaria sair de alma lavada para mais um dia. Ao chegar lá, mirou o espelho e foi em direção ao mesmo, sem hesitar nem sequer por um momento. Tinha certeza de que a imagem que seria vista no espelho não lhe seria das mais agradáveis, mas ainda assim quis chegar até o final, como poucas coisas em sua vida conseguiram chegar. Sua intuição não falhou. Repugnou veementemente o espelho. Quebrou-o, em seguida. Com as mãos ensanguentadas e inchadas, foi para a cozinha e as limpou. Por ser uma pessoa forte e de heranças ameríndias, as feridas cicatrizaram-se rapidamente, sem necessidade de curativos. Estava era com fome, bastante. Sentia ódio de si por comer tanto e não engordar. Ora, pois! Porque não era como os seres humanos normais? Qual a razão para não engordar ao ingerir tanto alimento como ingeria? Ódio passou a ter mais ainda. Quando saiu dos pensamentos conflitantes, sentou-se à mesa e notou que a lacaia havia posto tudo em seu devido local, para que agora pudesse desfrutar da hora supostamente tão feliz e fortuita. Começou. Sentiu gases. Isso irrita demais. Parou. Levantou. Saiu. Estava fora de casa, mas ainda não de sua propriedade. Contemplou a piscina, majestosa, por vezes tão azul e por outras tão verde. Recordou-se do filme mexicano “E sua mãe também”, em que Gael García Bernal nadava em uma piscina parecida, num hotel moribundo e chinfrim. Teve vontade de fazer igual. Em contrapartida, não possuía traje de banho, apropriado para o mergulho, o que fez com que não saísse de onde estava, pois seria inconcebível jogar-se dentro da água clorada de pijamas. Tal disparate sairia completamente da normalidade estabelecida pela sociedade. Por ter tido uma criação rígida e católica, não seria capaz de fazer uma loucura. Jogar-se dentro é uma loucura. Logo, em seguida, com praticamente nenhum intervalo, sentiu saudades da família que nunca teve. Da família grande e unida que nunca nem chegou aos pés de ter. Invejou os Buendía. Invejou Gabriel García Márquez por romance tão sublime. Sabia que o autor do romance realista fantástico deveria ter tido uma família semelhante, pois é impossível escrever o que se desconhece. Parou. Achou-se maluco. Como era capaz de sobrepor pensamentos e ideias tão díspares? Além do que, nem possuía motivo para tê-las. Pensou em sentir pena de si. Não, logo depois. Isso seria triste demais da conta. Finalmente, tomou um bom banho, vestiu sua melhor roupa, perfumou-se com seu melhor perfume e saiu. Saiu para usufruir de tudo. Do mundo. De Deus. Mas Ele existe? Porque “Ele” e não “ele”? Porque o “porque” e não um “mas” da vida? Que doideira. Entrou no carro com cheiro de novo, comprado há poucas semanas, com um grande desconto, concedido em virtude da crise econômica que assolava a região. As concessionárias possuíam muito estoque e necessitavam colocá-los no mercado. Virou à direita, depois à esquerda, depois seguiu reto e depois deu uma curva. Começou a chover. De supetão, veio à sua mente o dia em que perguntou para sua prima uma coisa. Era noite de Natal e todos estavam na casa da avó. A prima, de apenas cinco anos de idade, estava quase chegando à varanda do apartamento quando lhe veio a afirmação, para logo vir a pergunta: “Júlia, está chovendo.” Ela olhou-o fixamente em seus olhos. Prosseguiu escutando. “Está chovendo muito!” Continuou impassível. “É Deus que está fazendo xixi”, prosseguiu. Pela primeira vez, então, a menina manifestou-se: “Deus?” Para que viesse a resposta: “Sim, Deus! Você não O conhece?” E, depois disso, nenhuma das duas pessoas conseguiu sair de onde estavam, nenhuma conseguiu parar de olhar uma para a outra, nenhuma conseguiu absolutamente nada. Afinal, quem é? A chuva não tardou a parar. Tanto a do passado, quanto a do presente.
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