sábado, 21 de agosto de 2010

VI) Morando com vovó

Ela chegou aqui em casa como quem nada queria. Trabalho não deu, na rotina se acomodou, comida nunca solicitou, feliz – supostamente – aqui ficou. A vovó era mãe de mamãe e deveria ter em torno de sessenta anos de idade. Ganhando a vida como professorinha primária, aposentou-se relativamente jovem para os dias de hoje. Ela, assim como o marido, não eram muito chegados na labuta. Mas mesmo assim, apesar deste desvio mínimo de caráter, não era possível não gostar de vovó mãe de mamãe. Baixinha, gordinha, cabelos quase todos brancos. Quando aqui em casa ainda não morava, adorava comer a fruta do conde e beber café. Aparentemente, para os outros, era a única coisa que ingeria durante todo o dia, todos os dias, em consequência de ninguém a ver comendo nada além. Era apenas uma fruta do conde e uma xícara de café preto, em vinte e quatro horas.

Vovó não pediu para ficar onde a colocaram. Não é que ela tenha odiado onde foi posta, apenas não fez menção em querer estar em outro cômodo da casa. Naquela região da residência, pouca gente passava, então, conseguia passar tranquilamente e sem sobressaltos seus belos e longos dias, noites e madrugadas e tardes. Momento de inquietação ela apenas teve um. Ou teriam sido dois? Lá, pelos idos anos, eu trouxe alguns coleguinhas pré-adolescentes para em minha morada passarem um belo cair do sol. Nunca havia antes, em tempo algum, chamado ninguém que não fosse do meu sangue para aqui estar. Então, para impressionar, quis mostrar vovó. Afinal, é feio não apresentar os parentes para as visitas. Ainda mais os velhos, que podem se sentir rejeitados pela sociedade. Tudo estava escuro, por causa de um filme que era visto na televisão. Maldita mania de querer reproduzir, dentro da sala de estar, uma sala de projeção cinematográfica. Divagações momentâneas à parte, abri a porta do quartinho de vovó e a fui buscar. De supetão, a televisão um berro deu e eu quase vovó derrubei, de encontro ao chão. Mas não. Pouco o foi. Ela ainda estava lá, em meus braços. Por causa do incidente, resolvi deixar vovó onde estava, para que, com isso, eu preservasse sua integridade física e moral.

Anos se passavam e ela continuava morando conosco. Eu nem percebi quando ela aqui chegou, sabendo apenas que muitos anos ela cá pernoitou. De todos os moradores da mansãozinha fajuta do Grajaú, ela era a mais estática. Não a levando para outro cômodo da casa, ela não se locomovia. Assim o desejando, ela acatava nossas exigências. Alguns vizinhos até nos perguntavam: “Por que vocês não a levam para o ‘asilo’? É perto de vocês! Apenas três casinhas daqui.” Negativo. Família é família e é aqui que deve estar: ao lado da família.

Em contrapartida ao grande interesse de não tirá-la de perto de nós, havia momentos em que a esquecíamos. Com o passar dos anos, esse esquecimento ia apenas agravando-se: Quantas vezes fomos à praia e não a levamos? Quantas vezes fomos ao Jardim Botânico e não a levamos? Quantas vezes fui à Reserva Florestal do Grajaú e não a levei? Coitadinha. Definitivamente, a coitadinha estava se tornando um simples adereço, como qualquer criado-mudo ou abajur. Para agravar a situação, o aniversário dela passou a ser renegado. Isso, pois eu conheci uma mulher, que em pouco tempo tornou-se grande amiga, que aniversariava no mesmo dia de vovó. Como essa amiga era mais jovem, ainda comemorava seus dias festivos. Sendo assado, o amor por vovó foi renegado.

Ela, como toda a família, nasceu no Grajaú. De pai comerciante do Rio de Janeiro e mãe do lar do Rio Grande do Sul, casou-se com um homem de sete anos mais no ano de mil novecentos e sessenta e dois. Três filhos teve, sendo dois homens e uma mulher e com todos paridos dentro de uma mesma década. Tais informações foram adquiridas através de terceiros, posto que as pessoas conversavam com vovó até antes de ela vir aqui para casa. Depois, a sociedade passou a encará-la como cidadã muda, haja visto que em nada se intrometia, não se dispunha, nada vivia. Das conversas que tive com ela, não me lembra nenhuma. Era criança quando assim fazia e, agora, mais velho, é impossível recordar de certas coisas que aconteceram no passado e no passado ficaram.

Um dia, lá pelo começo de novembro, acho que o segundo dia dele, pensei em vovó. Creio que o fiz depois de uns seis meses sem dar nem “oi” para ela. Qual o motivo para não tirá-la aqui de casa? Eu acho que ela seria mais feliz em outro lugar. Um em que as pessoas a ouviriam falar, a ouviriam reclamar, a ouviriam cantar, a ouviriam sorrir, a ouviriam chorar. Mas ninguém aqui em casa deu-me ouvidos e tenho medo de falar muito de vovó com eles, pois não quero ofender e ferir os sentimentos de ninguém.

Indo para a padaria comprar pão, passei pela Igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Entrei por razões que ainda desconheço. Nunca fui muito do chegado nessas coisas de religião. Sempre digo e repito: “Deus é apenas uma criação do homem para uma satisfação pessoal acerca da questão de nossa origem. Nosso cérebro já nasceu programado para acreditar n’Ele e Ele existe pelo fato de que é mais fácil explicar nossa existência pela mão divina de um, em sete dias, do que pela ciência de reações no espaço em milhões de anos.” Acreditava, entretanto, apenas na fé, no pensamento positivo e, por eles, até poderia chegar ao ponto de dar uma rezadinha básica.

O templo estava vazio e era iluminado apenas pela luz do dia pouca que adentrava pela porta escancarada. Indo pela lateral direita, sentei-me em um dos bancos de madeira. O pão me esperava, tinha que ir. Mas ali acabei permanecendo por alguns instantes. Deve ter sido a pintura belíssima – o agregado de Dom Casmurro iria agradecer-me por tais superlativos – da igreja e seus vitrais esplêndidos. Sim, eles que levaram-me até ali. Depois de cansar de olhar para tudo aquilo, voltei à rotina. Deus, definitivamente, nada me disse.

Já era noite alta. Todos dormiam. Meus pais no quarto deles, meu irmão no seu, meu tio no dele, minha cachorra em seu cantinho, vovó no primeiro andar, e eu no meu quarto. Dormir até que o fiz por meia hora, mas a maldita da insônia era mais forte que eu. Seguindo conselhos, peguei um livro para ler. O mais bonito que encontrei na estante foi um chamado “Ulisses”, de um homem cujo nome era James Joyce. Começando a ler, nada foi muito bem compreendido e assimilado. Só passei a ver a literatura com mais clareza e fidelidade no primeiro capítulo da segunda parte do livro, quando Leopold Bloom estava cagando no trono, lendo uma revista qualquer. Isto foi compreendido.

Escuto uns latidos fracos. Era ela, a cachorra, também velha, mas mais amada que vovó. Ela olhou para mim e saiu em disparada pela casa. Descendo os degraus da escada, que unia os dois andares do casebre, o bicho aparentava incorporado pela besta-fera. Comecei a correr atrás dela, para entender o que estava acontecendo. Tudo escuro e tinha medo de cair da escada, na primeira pisada em falso. Consegui não esmorecer e permaneci na corrida, para sossegar a cadela ou, no máximo, captar a mensagem que ela desejava passar-me. De nada adiantava. Eu não a alcançava e muito menos entendia o que queria. Até que, para chegar à porta que dava para a rua, a cachorra foi obrigada a passar por onde vovó relaxava. Paft!

Vovó havia, definitivamente, caído no chão. Pobrezinha. E agora? Uma vez caída, quem a tiraria de lá? Ela? Eu? A cachorra? Era tarde e não quis atrever-me a ir chamar meus pais ou meu tio para resolver a questão. Percebendo que vovó nada faria, dei uma olhada na cachorra. Apenas para afetar-me, ela nada fez. Ai, cachorra chata.

O animal já estava, realmente, velho. Quatorze anos não são para qualquer um. Seus olhos já não emitiam cor; eram apenas opacos. Por muitas vezes senti muito pela tadinha. Deve ser muito triste não conseguir mais enxergar direito as coisas da vida. Dizem que os cães enxergam em preto e branco. Não sei se isso é verdade. Nunca fui um cachorro para saber. Mas até que tal ensinamento me é pertinente. Vai ver é por isso que ela é tão racista. Ao ver um negro desconhecido andando pela calçada próxima da casa, tem início o ensurdecedor latido. Antigamente, mais vigoroso que os de hoje. Ela, bem provavelmente, deve ver um vulto, ou algo do tipo. Pode assustá-la. O racismo possui uma explicação e um entendimento.

Vovó ali permanecia. Estatelada, não disse nada. Boa senhora, pensei. Mesmo no estado em que se encontrava, ficava na reserva de seus princípios. Veio a pena. Veio a minha pena para com ela. Conheces aquela pena das pessoas velhas com caras de coitadas, que nos remete à paixão não dada e ao amor que devemos dar para conseguir um lugar ao céu? Eu deveria fazer alguma coisa por ela. Mas a vira-lata não cala a boca e não permite o término de qualquer raciocínio lógico. Deveria pensar rápido. E, o que fosse decidido, fosse o que fosse, apenas eu o faria. Todos estavam ausentes. Então, era apenas eu ali. Espero que ninguém brigue comigo. Eu devo estar fazendo alguma coisa digna. Vovó tem o direito de possuir um pingo de condolência.

Para sossegar a cadela que se esperneava, fui até a cozinha. Peguei sua coleira, pus em seu pescoço e a tranquei dentro da área, próxima à máquina de lavar. Apenas o fato de saber da possibilidade de passear já acalenta a alma de qualquer bicho. Foi então que voltei para vovó. Agora era eu e ela, apenas. Uma vez na vida eu daria atenção exclusiva a ela. Será que era uma atenção merecida? Bem, deveria ser. Todos os velhos, por piores que tenham sido no passado, recebem, seja lá de quem for, a redenção. Acho que ela tem que sair daqui. Assim, tudo ficará melhor. Ela vai encontrar sossego e nós também o encontraremos. Ou será que ele será presente até o próximo da família se tornar um velho, como ela e tantos outros de tantas outras famílias? Faz parte.

Abri a porta que separava a cozinha da área. Peguei a cachorra e a levei para o outro lado da casa. Com vovó por um braço, fomos juntos caminhando pelas ruas do Grajaú. Este, por sua vez, é um bairro um tanto pitoresco. Fundado, pelo pouco que sei, em mil novecentos e quatorze, a partir de uma igreja situada na rua que leva o nome do lugarejo. Mais conhecido pela maioria da população do município do Rio de Janeiro como o bairro dos velhos e retrógrados, bem provavelmente pela grande presença de pessoas idosas e remanescentes de guerras e períodos militares. Pelo que me disseram, fica na Zona Norte. Mas os grajauenses não gostam de serem chamados de suburbanos. Igualmente pelo pouco de geografia que sei, subúrbio são os bairros seguidos pela linha do trem. Se não me esconderam isso durante anos, o Grajaú não é seguido por nenhum trem. Outra questão é que nós não somos da Zona Norte. Aliás, ninguém que mora na Tijuca também é da Zona Norte. Todos somos da Grande Tijuca, assim como o povo do Andaraí e Vila Isabel. Devemos ter o rei na barriga e não é despropositadamente que as más línguas dizem que quem mora e está enchendo a Barra da Tijuca são os tijucanos emergentes. E, por fim, ninguém sabe onde começa ou termina Grajaú, Tijuca, Vila Isabel ou Andaraí. Tudo é uma coisa só. Eu só sei que eu moro no Grajaú. Ele só sabe que mora na Tijuca. O outro só sabe que mora em Vila Isabel. E fulaninho também só tem conhecimento de morar no Andaraí.

Caminhar pelas ruas do Grajaú é uma atividade das mais excitantes. Não há uma pessoa que respire pelas vielas de calçamento antigo e casarões centenários. Domingo, então... É pedir para ver um bolinho de poeira rolar pelo chão. O badalar dos sinos da igreja fazem qualquer pessoa se assustar, se esta no meio da rua estiver. Apesar de tudo, tinha que fazer isso. Mais por mim e minha família, que por vovó. O cansaço estava chegando e a pontada nas costas, cada vez mais, piorando. Espero que essas dores não se agravem quando eu mais velho ficar. Peguei a rua Comendador Martinelli, que ia até uma ladeira quase interminável. Se eu acreditasse em cadeirudos ou lobisomens ou vampiros, eles, com certeza, escolheriam aquele momento para atacar-me. Uma vez, cedinho, indo fazer um piquenique ali perto, um cachorro de rua de um condomínio de casas ali perto quase atacou-me. Desgramado de uma figa. Naquela hora, ali, ninguém para atrapalhar. A cachorra não me atrapalhava mais. Vovó estava calma e serena. Caminhando por mais alguns metros, cheguei à porta da Reserva Florestal do Grajaú, uma extensão da Floresta da Tijuca, mata Atlântica. Adentrei tudo. Ninguém estava a postos para impedir-me.

Um anfiteatro havia sido construído há muito pouco tempo bem no centro da floresta. Uma árvore bem grande, gorda e frondosa ficava em sua direção. Se tivesse sol naquele cenário, bem que tudo aquilo seria de chorar.

Tirando dos braços vovó, olhei-a. Acho que ela olhou-me também. Lembrei-me dos tempos antigos. Merda. Sentimentalismos bestas agora não, por gentileza e obséquio. Eu ia sempre para a casa dela, tomar banho e almoçar, para depois ir para a escola. Ela arrumava-me bonitinho. Fazia um topete em mim de invejar a qualquer um. Ela era baixinha e gordinha, como já foi dito. Um brotinho. Sempre fez para mim, quan-do eu da escola chegava, batatas fritas bem fritas e gordurosas. As servia em um daque-les potes de sorvete de plástico. Elas eram fininhas. Devorava-as assistindo Cocoricó ou Fantasia. Lembranças.





Abri a caixa. Não quis dizer adeus. Coloquei-a ao lado da árvore. Um dia ela deve nascer outra coisa, mais feliz do que o que foi nesta vida. Vovó agora era apenas cinzas. Jogada na terra foi para encontrar um caminho, uma direção. O pó encontrou o chão e os dois seriam companheiros. Da porra viemos e à merda retornaremos, foi o que alguém disse para alguém que disse para mim.

Descendo a rua de paralelepípedos, percebi que a cachorrinha só queria fazer necessidades. Ela deve morrer em pouco tempo, provavelmente. Virará cinzas, assim como vovó e assim como eu.

Em casa, dormi. Todos, no dia seguinte, acordaram. Ninguém falou de vovó. Eu não toquei no nome dela. Nunca mais se falou de vovó. Mas vovó ainda falava em meu pensamento.

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