Quando eu ouço sobre o
passado, sobre os meus antepassados, eu retorno a uma ancestralidade que penso
ser a minha, mas, ao mesmo tempo, não me pertencer: tudo é tão distante do que
eu sou hoje, ainda que tudo esteja tão próximo dos meus olhos. Ao buscar saber
sobre as minhas origens, busco responder-me, como se a resposta fosse mais
importante que a pergunta “Quem sou, independente dos outros?” A família do meu
pai é toda espanhola, da região da Galícia. Por mais que eu não veja sentido –
a partir de Benedict Anderson (“Comunidade imaginadas”) e Stuart Hall (“Identidade
cultural na pós-modernidade”) – na composição das fronteiras do mundo, saiba
que tudo é artificial e fluido, que os mitos originários de uma determinada
sociedade são quase sempre construídos socialmente com objetivos definidos e
que os orgulhos nacionais são forjados, eu me vi diante da situação de, mesmo
nascido no Brasil, me sujeitar ao direito de ter minha cidadania espanhola e,
por consequência, minha cidadania europeia – pois a união é europeia, mas só
para os europeus, mesmos inventados como eu (excluídos aí o livre acesso da
África de Sofrimentos que permeia toda a humanidade).
Sou eu, então, um
espanhol. Mas que espanholidade é essa que eu carrego em mim, em meu sangue, em
meus humores? Existe algo em mim – além da fisicalidade do meu passaporte – que
diga ser eu um espanhol? O que significa a Espanha? Meus avós e meus tios são
espanhóis de verdade? A solução desta questão não é óbvia. Nascidos na
província de Pontevedra, na região da Galícia, minha família não fala o
castelhano e não compartilha do senso-comum castanhola-flamenco que o mundo tem
sobre aquele país da Península Ibérica. A Galícia já pertenceu a Portugal –
considerado o primeiro estado-nação do mundo – e é o berço do galego-português,
idioma que deu origem ao que hoje conhecemos por português e galego modernos.
Após sucessivas guerras de conquista, aquele pedaço de terra que engloba quatro
províncias – Pontevedra (de onde saiu, em 1492, Cristóvão Colombo para conhecer
a América e de onde saíram meu avô para chegar ao Brasil a 16 de setembro de
1951 e minha avó com minha tia a 04 de julho de 1957), A Coruña, Lugo e Orense
– já pertenceu a ceutas, mouros, portugueses, castelhanos. Mas e o povo?
Nascidos na década de
1930, meus avós sofreram as consequências da Guerra Civil Espanhola (1936-1939)
– aquela que gerou tanta morte e arte, como o fim de Federico García Lorca (por
ser homossexual – os gays chamados de “violetas” pela ditadura e apenas
descriminalizados a partir de 1979, após a morte de Franco, em 1975) e os
poemas do chileno Pablo Neruda (“Residência na terra I”, “Residência na terra
II” e “Terceira residência”), e as pinturas de Pablo Picasso (“Guernica”). Minha
avó teve a casa incendiada por comunistas (por seu pai ser das direitas) e meu
avô teve o pai assassinado, considerado comunista, pelos homens do ditador de
direita Federico Franco. Meus avós sofreram as consequências da Segunda Guerra
Mundial – meus avós comeram ratos, na falta de comida. Meus avós sofreram as
consequências do pós-guerra, quando não havia trabalho, não havia comida, havia
apenas a esperança, tal qual Colombo, de redescobrir a América. Minha avó
chegou ao Brasil com a terceira e última grande leva de imigração espanhola
para a América, finalizada naquele ano de 1957, de acordo com a História
oficial.
Era, então, 2011. Eu,
com 21 anos, voltava para a Espanha – ou melhor, Galícia, ao lado de minha avó
(já sem meu avô) e minha tia. Hospedei-me dentro da casa em que morou meu
bisavô assassinado. Todos os dias eu ouvia meu primo, também bisneto do
assassinado, gritar pelo fim da monarquia espanhola e pela independência
galega. Todos os dias, aquela morte e aquela guerra ainda eram presentes
naquela casa de pedra (pedra esta característica de todas as casas da província
de Pontevedra – ponte de pedra). O trauma transgeracional, como me ensinou a
psicanálise e Márcio Seligman-Silva. Saímos de casa um dia e minha avó me
disse: “Essa casa aqui da frente (era só atravessar a rua, mesmo) era do homem
que denunciou seu bisavô para a polícia, dizendo que ele era comunista”. Vi,
então, diante de mim, todos aqueles relatos sobre a morte, as mortes, dos
conflitos diante de meus olhos. Aquela era a casa de onde partira a denúncia
que resultou em uma aniquilação sumária. Olhei, e olhando aquela casa eu tentei
ver meu bisavô, mas eu olhava em volta e via apenas um mar de eucaliptos – que
tomaram conta de Postemirón (onde minha família mora) para a produção de papel
(industrialização da Espanha pós-ruralizada e pós-ditadura).
Passeando por aquela
cidade de pedra (que pertencia sempre a todos, mas nunca de verdade a seu
povo), pude ver inúmeras demonstrações de rancor (várias pichações de bandeiras
espanholas riscadas de preto – ou seja, não somos Espanha, somos Galícia). A
Guerra Civil ainda não acabou. Algo que eu pude comprovar ainda com mais força
na Catalunha, já que a região é muito mais rica que a Galícia – o dinheiro traz
de certa forma mais liberdade de expressão. Em Barcelona, inúmeras são as casas
onde pode-se ver estendida a bandeira da Catalonia (não é Catalunha – português
– e nem Cataluña - castelhano). A língua que se fala pelas ruas barcelonesas
(assim como o galego na Galícia), é o catalão – que como o eusquera, do País
Basco, foi proibido de ser ensinado nas escolas por Franco. É a tentativa de
grito por liberdade. Liberdade esta que tentei também presenciar em Madri,
quando estive hospedado em um albergue na esquina da Plaza del Sol, epicentro
dos protestos que tomaram conta do país pedindo mudanças políticas e econômicas
diante da grande crise de 2008, que teve na Espanha uma de suas atuações mais
violentas. Na madrugada de 02 de agosto a praça foi tomada e, quando cheguei ao
local para registrar o ocorrido, vi dezenas de cavalos (esses não mais o de
Guernica) e policiais tentando cercar o local, inundado por cartazes e jovens
gritando “Podemos!”. A ebulição é forte ainda hoje e sempre naquele país.
Voltando para a
Galícia, para a despedida final – última vez que vi muitos, pois assim que
voltei para o Brasil, morreram – pensei em meu bisavô. Não sei ainda quem ele
é. Aquelas pedras daquela casa em que me hospedei teriam me dado alguma
informação sobre ele? Mas e sobre o meu avô, filho deste assassinado, órfão
desde os seis anos, em 1936, até sua morte, em 1997? Quem meu avô é? Imigrante,
meu avô. Mas eu não lembro-me dele. Não há em mim memória alguma sobre ele.
Sofro por esta lacuna. Como retomá-lo, como revivê-lo? Como posso eu dizer que
“sou espanhol” se nem ao menos eu me lembro da voz do homem que me deu o
direito de ter hoje um passaporte europeu?
Meu avô é o homem que
eu encontrei dentro de uma gaveta esquecida. Ele é quem eu achei dentro do diário
de viagem escrito entre 08 de agosto de 1992 e 16 de outubro de 1992. Aquele
homem que voltava pela primeira e última vez à terra natal, depois de uma
ausência de 41 anos. Um espanhol no Brasil, que lutou como vendedor e construiu
família e lar e tentou falar o português da melhor forma possível. Um
sobrevivente. O diário me diz: “mas tudo estava mudado; entramos por Vilaboa,
não conhecia nada e tudo que eu imaginava era diferente”. Ele também não
reconheceu o que eu também não reconheci? Ao fim, já indo embora (sem saber que
nunca mais voltaria), escreveu: “Não conseguimos dormir (...) nos preparamos e
despedimos com muito choro, todos choramos”. Eu também chorei ao, em 2011, ir
embora, mas não porque poderia ser a última vez, mas porque aquela era minha família
que eu estava deixando. “Os netos estavam com muitas saudades”, escreveu meu
avô sobre sua chegada ao Brasil. Eu estou sim, com muitas saudades – saudades
de alguém que mal me lembro. E da Espanha, que mal conheço, mas que a ela
pertenço.
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