Eu realizei uma pesquisa sobre a
natureza da experiência artística em geral, e sobre a arte do século XX em
particular – Alair Gomes (documentário “Morte de Narciso”, sobre a obra de
Alair);
Pois a beleza, Fedro, grava bem
isso, apenas a beleza é simultaneamente divina e visível; ela é, portanto, o
caminho do sensível, ela é, meu pequeno Fedro, o caminho pelo qual o artista
alcança o espírito – Thomas Mann (livro “Morte em Veneza”).
O
fotógrafo Alair Gomes (1921-1992) dedicou cerca de 30 anos de sua vida – desde
os anos 1960 até sua morte – a fotografar o homem em suas variantes. Engenheiro
por formação e professor universitário, Alair – originário de Valença, no
estado do Rio, e radicado até o falecimento na capital fluminense –, de sua
janela no bairro de Ipanema, à beira-mar, e dentro de seu estúdio em casa, pôde
ter uma visão privilegiada de seu mais caro objeto de adoração, sua mais cara
obra de arte – o corpo do homem (em seu pelo, em seu falo, em seu ânus, em sua
virilidade, em sua eternidade endeusada e bela de escultura greco-romana). Desta
forma, pretende-se com este artigo fazer uma análise de toda trajetória
sentimental, artística e, também, política de Alair Gomes, tendo como ponto de
partida a mostra mais recente realizada no Brasil sobre seu trabalho, em 2015.
Considerado um dos
principais difusores da arte homoerótica no Brasil, o fotógrafo registrou
dezenas de imagens de corpos masculinos em situações como: exercitando-se na
orla da praia, banhando-se no mar da Zona Sul, conversando entre si na calçada
de Ipanema, em competições esportivas, dentro do estúdio em poses sinuosas e,
em contraste, a estátua mesma, a própria coisificação de sua obsessão. Em um
contexto de expressão marginal, Alair teve dificuldades tanto em ser
reconhecido enquanto artista em seu país, como também em se considerar um artista
por meio de seu ofício. De acordo com Maurício Bentes, artista plástico e um de
seus assistentes mais importantes, Alair percorreu um caminho extenso até poder
vislumbrar seu trabalho como arte. Bentes destaca que apenas a partir de
exercício de descobrimento e diálogo entre artistas da oficina de cultura do
Parque Lage que Alair pôde vislumbrar-se como produtor de conteúdo relevante,
exibindo a partir de então suas imagens para o público: “Eu fui um dos que
ajudou a entender essa obra como obra artística – que era uma coisa que ele
fazia pessoalmente, só para ele mesmo” (LACERDA, 2003). Já Eder Chiodetto,
curador da última mostra sobre Alair, ressalta que, em vida, o fotógrafo
consegue fazer apenas algumas exposições, mas que só após sua morte que um
curador francês conhece seu trabalho e o leva para uma grande exposição em
Paris, na Fundação Cartier: “(é então que) a obra dele começa a ser de fato reconhecida,
inclusive no Brasil” (CHIODETTO, 2015c).
Sendo assim, tendo como
ponto de partida a dita marginalidade da obra de Alair Gomes, vide seu conteúdo
explicitamente erótico e homossexual, que este trabalho irá focar analiticamente
a exposição “Alair Gomes: percursos”, com a intenção de problematizar a imagem
de corpo que o artista pretendeu registrar em suas imagens. Realizada na Caixa
Cultural de São Paulo, entre julho e outubro de 2015, a mostra teve por meta
fazer um trajeto – como o nome já supõe: percurso – da obra de Alair, desde seu
princípio até seu fim. Trajeto esse que tanto nos remete ao do artista enquanto
artista, como também ao corpo enquanto caminho – corpo este analisado a partir
de seu detalhe e de seu contexto: desde seu mínimo até seu máximo (o pelo que
encontra o suor/gozo, dentro do estúdio, até o caminhar do desconhecido com rosto
impossível de se identificar pela distância). Obra essa que nos põe de frente
ao homem moderno banal que percorre em seu cotidiano um lugar mortal – a praia
da Zona Sul de Ipanema – e do homem endeusado/angelical em escultura e em santo
cristão diante de uma ancestralidade divina/heroica que leva o corpo à sua
eternidade estética e pura: eternidade essa que resvala nas tentativas de
pureza e pujança da obra de arte.
Esta conexão entre o
belo greco-romano e o corpo masculino pode ser explicada diante de algumas
perspectivas. Engenheiro – e, portanto, conhecedor de matemática, assim como da
filosofia – Alair conectou-se logo e para sempre ao estudo do estético, da
forma: da eternidade por meio desta perfeição dada pela forma. Segundo o
embaixador Paulo Franco, já em 1945, quando conheceu Alair, ele era um
estudioso da filosofia:
Ele já tinha um imenso interesse
por filosofia e ele tinha formação em matemática porque era engenheiro e isso
facilitou muito os estudos de física e ele se orientou um pouco para a
filosofia das ciências. Daí, toda a ideia que ele explorou que a indeterminação
da física moderna permitiria, vamos dizer, uma brecha na qual se poderia entrar
a liberdade e a criatividade humana (LACERDA, 2003).
Homossexual praticante, a presença do
corpo atlético e belamente definido também foi constante em seu ofício,
iniciado quando ele já beirava os 50 anos (e, portanto, a velhice – quanto mais
a idade avançava, mais ele queria ir de encontro à juventude captada em seus
registros, tal como um movimento antropofágico de alimentação pela beleza). Portanto,
a conexão entre um estudo da filosofia e suas conclusões sobre o fazer
artístico (bases dos estudos sobre poesia, literatura, política, ética etc.
estão baseados nos filósofos clássicos gregos) levam à relação entre a homossexualidade
e cultura da Grécia Antiga, principalmente, que até hoje permeia a concepção de
corpo saudável e desejável (que se deseja em outrem e que se é desejado para
si) e a visão que o público geral tem daquele período: época em que era aceita
socialmente a relação gay. A realidade é um pouco conflitante, já que havia a
relação entre o homem mais velho e o mais novo, mas com o intuito de instrução
e pedagogia. Caso um homem adulto quisesse, por exemplo, manter uma relação
sexual estável (principalmente passiva) com outro, isto seria mal visto
(SPENCER, 1999, 40-65). Mas em linhas gerais, aquele período estereotipou-se
como de complacência para a homossexualidade. A questão do esporte (as
primeiras Olimpíadas – o exercício – o corpo desnudo para luta diante do povo)
são temas retomados no século XX (primeiras Olimpíadas do tempo moderno) e
caros também para a obra de Alair (a imagem do atleta e da beleza do atleta). Segundo
Bentes, Alair transformou seu Arpoador em sua Olímpia particular, retomando
aquela época para o hoje – sendo esta sensação de anterior com atual, em
contraste e em consonância exacerbada por meio das exposições em que a
fotografia de uma estátua grega (ou até de uma armadura medieval) é posta ao
lado da foto de um corpo desnudo masculino: “(Alair) valorizava o Eros como o
primeiro deus, mesmo, como o primeiro sentimento divino e chegava quase a ser
tântrico, de uma certa maneira, mas na verdade era um hedonismo muito clássico”
(LACERDA, 2003).
O corpo nu que é
representado tal como a estátua grega, tal como a pintura renascentista, tal
como a fotografia do século XX que ele não buscou representar como
escultura-pintura (pois acreditava que a fotografia era menor), mas que no fim
conseguiu sobrepor a estas duas iniciais formas de arte (a fotografia para além
da escultura e pintura, na representação do corpo belo): “(Alair) começa
dizendo que ele não vê a fotografia como arte. Ele fala: acho que uma
fotografia única nunca pode competir, por exemplo, com uma pintura, com uma
imagem que vai sendo construída ponto a ponto, pincelada a pincelada, por um
artista, por um pintor” (CHIODETTO, 2015b). A fotografia que Alair vê como uma
devolução mecânica do real teria dificuldade em ser vista como arte por uma
obra única, completa o curador e, então, com seu sequenciamento – evento em
determinado tempo, o fragmentando e após reunindo – leva sim a uma maior beleza
da arte de fotografar. Tais sequências receberam nomes e foram organizadas de
modo a transmitirem essa correspondência constante entre o belo – a arte – o
corpo – o perfeito, do greco-romano ao barroco: “(...) sequências de imagens
que ele elaborou inspirado em sinfonias e sonatinas e em altares religiosos,
como na composição em trípticos”, destaca o catálogo de “Percursos” (CHIODETTO,
2015a). Sinfonias e sonatinas jogam com o harmônico – o corpo do jovem que
Alair fotografa é harmônico: se encaixa no molde do musculoso, do rosto que Da
Vinci projetou como geometricamente (matematicamente) organizado. Os trípticos
– conjunto de três imagens em sequência de determinado momento da vida do rapaz
belo – nos leva a se ajoelhar diante da imagem e rezar por ela, pedindo por sua
beleza e sua deslumbramento, tal como podemos nos ajoelhar e rezar diante da
imagem tríptica religiosa: o corpo como objetivo religioso de adoração, reza e
devoção obsessiva.
Com 300 imagens
trazidas do acervo do artista guardado na Biblioteca Nacional, no Rio de
Janeiro, a mostra é um recorte de um total de 150 mil negativos e 15 mil cópias
que desde a morte do engenheiro-fotógrafo tornaram-se de domínio público.
Contrastando com a mostra realizada em 2012 na Bienal de São Paulo para
homenagear os vinte anos de morte do artista, esta de agora na Caixa traz duas
séries inéditas ao público, como a realizada em 1969, na Praça da República –
um de seus poucos registros da capital paulista – e uma série de atletas em
situações esportivas na orla de Ipanema. Esta da Praça da República é uma série
que revela o cotidiano dos hippies no local, em um retrato da cultura jovem da
época que, inicialmente, pode passar a impressão de se desconectar com o
restante da obra miticamente erótica, mas na verdade coloca em cena uma
potência de liberdade política e sexual muito forte: não é o corpo estático tal
qual Pigmaleão e admirado tal qual Narciso admira-se, mas em circulação e
comunicação entre si. Como destaca o curador Chiodetto:
Dentro desse espírito libertário
da contracultura, do sexo livre, da pílula anticoncepcional, dos homossexuais,
como ele, poderem se manifestar publicamente de uma forma menos reservada: o
trabalho dele vem nesse contexto. Até por isso que a gente abre a exposição com
essa série inédita dos hippies na Praça da República (...) porque para mim, é
muito importante contextualizá-lo dentro de sua época: é um ser poético e
político, pensando seu tempo (CHIODETTO, 2015c).
Tendo encontrado,
então, a beleza da fotografia por meio do sequenciamento – marca característica
de sua visão sobre os homens da praia de Ipanema –, Alair quis mostrar ao
mundo, por meio de seus estudos filosóficos e estéticos, essa comparação entre
o amor (pelos homens) e o divino (o heroico, que salva / o erótico, que salva /
Eros, herói, erótico), em assimilação já realizada pela filosofia grega antiga:
A convergência semântica entre
amor e herói, que já está presente em uma etimologia imaginária do Crátilo platônico, no qual Sócrates, de
maneira jocosa, deriva a palavra herói de amor, ‘porque os heróis são gerados
por Eros’, realizou-se verossimilmente no âmbito da ressurreição neoplatônica
dp culto popular dos heróis e da demonologia teúrgica (AGAMBEN, 2007, 195).
Divino maravilhoso esse
que ele buscou e encontrou, mas que em determinado ponto o engoliu. Catalisador
decisivo para o crescimento da beleza do mundo, Alair projetou em sua obsessão,
em seu ser amado (Alair trabalhando a partir da linguagem do apaixonado, do ser
enamorado à la Barthes), sua necessidade de vida. Tendo começado a fotografar a
beleza e a juventude a partir de seu início de velhice, o fotógrafo acompanhou,
com o passar dos anos, o avanço de uma juventude e de uma cultura queer que foi
sendo engolida pelas desgraças da vida – pela desgraça de uma velhice que chega
cedo demais. Nos anos 1960 foi registrada pelas lentes de Alair a efervescência
da contracultura, do hippie, do amor livre, da emergência gay, das drogas como
libertação. Já no fim dos anos 1980, com o assentamento de uma epidemia de Aids
que maldosamente maculou uma geração, Alair encontrou seu fim. O fim de sua
beleza como obra de arte morreu junto do ápice de um momento onde a beleza do
homem gay estava sendo posta à prova. Assassinado por um de seus namorados –
segurança de uma boate – Alair encontrou o fim de seu percurso em 1992. Morto
tal como Pier Paolo Pasolini (que fotografou o belo da mesma forma – ainda que
de modo diferente). Os que sempre buscaram o belo, em todo momento, foram
boicotados por ele. A obra de arte que Alair correu atrás – ele o homem mais
velho, que inicia pedagogicamente o mancebo no mundo do conhecimento (tal como
o crioulo homossexual e mais velho em “Bom-crioulo”, de Adolfo Caminha, de
1895, considerado o primeiro romance brasileiro homossexual, iniciou seu jovem
branco e amado / tal como na Grécia Antiga). Encontrando a juventude em sua
velhice progressiva. Alair foi assassinado por uma de suas fotografias, em seu
apartamento de Ipanema de frente à praia, em 1992 – a juventude o matou, assim
como morreu Oscar Wilde diante de seu retrato; assim como, em “Morte em
Veneza”, Gustav Aschenbach morre diante de sua bela obra de arte; assim como
Frenhofer morre após ter queimado sua tela da perfeição de Balzac; assim como o
Bom-crioulo de Adolfo Caminha mata seu objeto amado diante da traição.
Bibliografia
AGAMBEN,
Giorgio. Estâncias
– a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1ª ed, 2007;
CHIODETTO,
Eder. Catálogo “Alair
Gomes: percursos”. São Paulo: Caixa Cultural, 2015a;
__________________. Entrevista à Revista Brasileira. Brasil, 2015b. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=MTaGQ7WbfTc>;
__________________. Entrevista ao programa “Metrópolis”, da TV Cultura. Brasil, 2015c.
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=CrBnyjry380>;
LACERDA,
Carlos Luiz. A
morte de Narciso. Brasil, 2003. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ZCqIrY3sxwA>;
SPENCER,
Colin. Homossexualidade,
uma história. Rio de Janeiro: Record, 1ª ed, 1999;
Imagem feita por Alair Gomes – o corpo
como índice (Symphony of erotic icons)
Nenhum comentário:
Postar um comentário