Graciliano Ramos, nesta crônica escrita nos anos 1940, tendo como pano de fundo uma leitura cotidiana de anúncio em jornal, problematiza religião, fé e seus milagres. Uma mulher, então, agradece Nossa Senhora pela graça concedida em madrugada conturbada. Sem saber mais nada do anúncio, o cronista faz conjecturas em cima das possíveis razões que levaram a senhora a ficar tão aflita. Ele, então, em “Um milagre”, faz uma reflexão sobre o que leva alguém a ter fé e crer em milagre provindo da mesma. Utiliza, ambos – tanto ele, quanto Clarice Lispector, como explicitado mais adiante –, não humor puro e simples, mas ironia rebuscada, deixando latentes conclusões profundas ao leitor. No último parágrafo desta crônica que a ironia fica mais evidente, haja visto que afirma que provavelmente quem não rezou, acreditou, pediu nada a Deus e companhia, igualmente deve ter se salvado (determinismo e descrença remanescente de sua obra literária). No entanto, percebe-se toques irônico-sarcásticos em toda narrativa, primeiramente com o simples fato de um anúncio ter sido utilizado para veicular algo tão inco-mum, assunto tão profundo para um meio tão simples.
Já Clarice Lispector, em seu trabalho aqui analisado, dos anos 1960, tem em si mesma a personagem principal, como em toda a sua literatura, na verdade. Desenvolve-se em cima de sua descrença e afirmação de que milagres, com ela, não acontecem. Apesar disso, diz que viu que milagres com ela podem vir a acontecer porque sempre folhas caem em cima de sua cabeça, como se ela fosse a escolhida. Junta-se, aí, a banali-dade de folhas que caem de árvores em cima da cabeça de pessoas a uma grande ironia que se afirma no fato de milagres (algo, segundo a Igreja, não tão comum de acontecer e de se provar) serem provindos a partir disso. Mais adiante, torna-se mais que irônica, e sim sarcástica, ao dizer que, quando uma folha resolveu cair não em cima de sua cabeça, mas em seus cílios, achou “Deus de uma grande delicadeza.”, de quem sempre duvidou. A grande epifania.
No que tange uma comparação entre as crônicas, Clarice mostra-se mais, como é comum a ela, definitivamente. Isso de mostrar-se a aproxima do que é a crônica e seu cronista: falar de suas experiências a partir de seu cotidiano. Graciliano problematiza mais sutilmente, enquanto ela é mais voraz, ainda que os dois cheguem a vislumbramentos tão consternantes quanto. Ambos, como dito, possuem grande ironia (mais mordaz que humor), característica da crônica, a partir de sua brevidade. A conclusão que se chega da leitura delas é idêntica, ainda que através de elementos supostamente distintos: um de afastamento (crônica de Graciliano) e outro de aproximação (crônica de Clarice). Ele afirma que mesmo quem dormiu e não pensou em Nossa Senhora devem não ter morrido, não tendo recebido portanto nenhuma graça, sendo salvos por outros motivos. Ela diz que Deus foi de uma grande delicadeza quando, conhecendo sua obra e interpretando sua crônica, vê-se que ela duvida deveras de sua existência e de sua atenção para com ela (Clarice como uma eterna Macabéa). Para eles, assim, Deus, fé e religião são termos vagos, de difícil determinação e bem particulares, sendo “Um milagre” e “O milagre das folhas” uma crítica à sociedade passivamente catequizada.
Mas como a partir destas duas crônicas pode-se problematizar o conceito em si de crônica? Deus, religião, fé e milagres são temas, há de se convir, latentes em qualquer pessoa e presentes na vida de todos. Portanto, pertinentes a uma crônica. Agora, ao mesmo tempo, tais são problemas metafísicos presentes constantemente na literatura, o que os faz serem encontrados em grandes obras. Com isso, tais não seriam condizentes com a “brevidade” e ar “de coisa sem importância” da crônica. Em contrapartida, grande parte da “alta literatura” não é feita a partir de experiências próprias e cotidianas de seus autores?
Qual seria a resolução deste paradoxo? Tem-se nas crônicas analisadas uma partida: cotidiano (notícia de jornal e folha nos cabelos) e eterno (milagre, Deus, fé, religião). A crônica é, portanto, um meio para discutir-se grandes temas, de qualquer área. Na soma do superficial (mais explícito) com a ideia mais profunda (menos explícita) resulta-se em geração de grande reflexão no leitor, despretensiosamente. Mas muito desta fórmula é encontrada dentro da literatura extra-jornal. Isso acontece em razão da literatura moderna brasileira. Nela há mais simplicidade e experimentação, afastando-se de grandes afetações. O cotidiano é trazido para o livro. Com a maior democratização da literatura, há acesso mais livre entre a mesma pessoa que escreve crônicas e livros, chegando ao ponto de um livro ser uma grande crônica e uma crônica um grande livro.
Bibliografia:
1 SANTOS, Joaquim Ferreira. (org.) As cem melhores crônicas brasileiras. Ed. Objetiva LTDA. 1ª ed. 2005;
1.1 RAMOS, Graciliano. Um milagre. In: ____. Linhas tortas: obra póstuma. 11ª ed. Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1984. p. 123-124;
1.2 LISPECTOR, Clarice. O milagre das folhas. In: ____. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 165-166;
2 CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: ____. Recortes. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. p. 26-34;
3 BOSCO, Francisco. O ensaio e a crônica. In: Segundo caderno, p. 2. Jornal "O Globo". Rio de Janeiro: quarta-feira, 07 de julho de 2010, ano LXXXV, nº 28093.
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