1. INTRODUÇÃO E RELEVÂNCIA DO ESTUDO
A partir do final dos
anos 1800, a homossexualidade deixa de ser considerada prática isolada
(sodomia) e passa a ser vista como fator determinante na constituição do
sujeito[1],
sendo o homossexual inserido em um discurso médico, criminal e racialista, estando
então dentro de uma rede patológica. Desta forma, o homossexual fica relegado,
com respaldo científico, aos usos políticos e sociais dos atos de isolamento e
aniquilação. É nesta perspectiva da comprovação científica da exclusão que o
século XX pôde presenciar a prática sistemática da barbárie institucionalizada,
independente de regime político ou econômico. Sendo assim, esta pesquisa tem
por intenção analisar duas obras de testemunho homossexual, uma produzida pelo
cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) e outra pelo francês Pierre Seel
(1923-2005): respectivamente “Antes que anoiteça”[2]
(lançado em 1992, na Espanha) e “Eu, Pierre Seel, deportado homossexual”[3]
(lançado em 1994, na França).
Arenas descobre-se com
Aids, nos Estados Unidos – para onde se refugiara no começo dos anos 1980,
fugindo das torturas, prisão e exclusão social do governo de Fidel Castro – e é
a partir de então, acreditando na certeza da morte (e diante do trauma que foge
à compreensão em linguagem que foi a epidemia em seus anos iniciais para o
cidadão homossexual), que o escritor começa a gravar fitas (assim como o fez o
artista plástico homossexual brasileiro José Leonilson[4])
relatando os anos de clandestinidade em Cuba, quando foi proibido de escrever,
por seus textos terem sido taxados de contrarrevolucionários e homossexuais. As
gravações iniciais são realizadas durante suas primeiras internações para, em
seguida, Arenas transcrevê-las. Além do relato de “luta e esperança” política e
identitária que o escritor se propõe a realizar com seu livro-epitáfio, também
pode-se ver no relato uma tentativa de contemplar o horror que foi, para ele,
ser soropositivo. Como se irá detalhar com mais cuidado na segunda parte deste
projeto – a que se reporta à questão do real traumático e da narrativa como
forma de cura – encontramos a Aids, no texto de Arenas, na verdade onde ela
naquele texto menos existe, mais faz falta, mais está no vazio, pois representa
o trauma maior, o indizível, o horror impossível de se mensurar em palavras, já
que abjeto em demasia: “Percebo que estou quase chegando ao fim deste
apresentação, que na verdade é o meu fim, e não falei da Aids. Não posso fazer
isso, pois não sei o que é. Ninguém sabe, com toda a certeza” (ARENAS, 2009, 15).
“Antes que anoiteça” é,
então, finalizado em agosto de 1990 e o autor suicida-se em dezembro, sendo o
livro publicado, na Espanha, dois anos depois[5].
No entanto, como relata o escritor Caio Fernando Abreu (que o leu na Europa, em
1992) em texto para “O Estado de S. Paulo”, de 27 de novembro de 1994, a
recepção da obra no Brasil foi difícil: “Voltando ao Brasil, quis traduzí-lo.
Ninguém quis. Muito deprimente, diziam, pouco comercial” (ABREU, 2006, 129). A
obra sai então, finalmente, em 1994, pela Editora Record. Apesar de tudo, na
edição de 2009 do texto – após, portanto, alguns anos de imersão (ainda que
reles), da obra do cubano no Brasil – a editora falha na diagramação e exclui a
última frase do livro: “Cuba será libre. Yo ya lo soy”, presente ao fim da
carta de despedida do escritor, na iminência de seu suicídio. O fato, unido a
não reedição de suas poucas obras publicadas em português e na quase exclusão
da maior parte de seus trabalhos no Brasil, mostra que ainda deve-se estudar muito
sobre e a partir da obra de Arenas.
Já o francês Pierre
Seel – que ao longo da vida buscou uma carapaça heteronormativa –, em 1941 foi
deportado para um campo de concentração, após ser fichado pela polícia por
frequentar um parque onde havia encontros gays, e no campo presenciou a morte
de seu companheiro comido vivo por cães, dentre outras atrocidades. “Eu, Pierre
Seel, deportado homossexual” é considerado o primeiro relato testemunhal em
livro de uma vítima homossexual francesa da Segunda Guerra. O livro foi lançado
no Brasil apenas em 2012, como parte do mestrado de Tiago Elídio, na Unicamp,
defendido em 2010[6].
Tal como escritores que passaram pelo trauma de Auschwitz afirmam que
provavelmente nunca teriam escrito caso não houvessem sido vítimas e
testemunhas[7]
de violência tão profunda, Seel expõe este seu texto. Transpassado pela questão
do silêncio (“Sempre essa camuflagem, essas meias-verdades, essa obrigação do
segredo”, 2012, p.95) e da vergonha (“Essa vergonha, feita de mil vergonhas”, Ibidem, p.131), o relato escrito existe
por meio do relato oral do francês ao jornalista Jean Le Bitoux.
O objetivo, portanto,
principal desta pesquisa, é demonstrar a possibilidade de se pensar os
testemunhos provenientes do cubano Reinaldo Arenas – “testimonio”, inserido em
um contexto de autoritarismo na América (seja autoritarismo comunista em Fidel
Castro como também capitalista nos Estados Unidos, onde o escritor afinal de
contas matou-se) – e do francês de origem alsaciana Pierre Seel – da “Shoah”[8],
inserido no contexto do autoritarismo da Europa que culminou na Segunda Guerra
Mundial – como na verdade inseridos em um contexto maior e sem fronteiras da
consequência da experiência traumática, como pondera uma das notas de rodapé do
livro de Pierre Seel:
Tony Lainé: “Os
grandes traumas da história têm, de modo considerável, destinos idênticos
àqueles que afetam um indivíduo. São enterrados, tapam-se as brechas, mas desde
o momento em que a memória os afasta, permanecem inalterados, com a carga
emocional que lhe é associada intacta” (Prefácio da obra de George Eisen, Les Enfants pendant l’holocauste,
Calmann-Lévy, 1993, p.10). (SEEL, 2012, 160)
Sendo assim, quer-se articular
no trabalho a forma como o sexo é interferido (e interditado) pela política e
como a literatura alcança de forma distinta (mas semelhante) os autores
Reinaldo Arenas e Pierre Seel. Quando, aqui, se afirma em alcançar de maneira
distinta, pretende-se por destacar que Arenas durante toda a sua vida, em Cuba,
foi um escritor que utilizou-se da palavra para contestar o regime que o oprimia
e que entendia o ato de escrever como necessário e indispensável para a vida. O
próprio título “Antes que anoiteça” é uma forma de dizer ao leitor que ele
precisou contar sua vida, seu trauma, e escrever toda sua obra, enquanto ainda
houvesse “luz” para que ele pudesse dizer, traduzir em palavras suas vivências.
Quando anoitecesse não seria mais possível contar (este livro que ele iniciou a
escrita nos anos 1970, enquanto se escondia da polícia dentro de um parque
público e onde, portanto, ficaria impossibilitado de escrever quando
escurecesse por conta da pouca luminosidade do local). Foi com um tipo de noite
metafórica (a da perseguição política) que o relato se iniciou (e que ele
retomou apenas quando descobriu-se com Aids) e que terminou com outro tipo de
noite, a da noite/morte metafórica proveniente da doença sem nome, do trauma
sem rosto e sem palavras. Foi a partir do momento em que Arenas não teve mais a
possibilidade de escrever por estar debilitado e quando ele não pôde mais viver
sua sexualidade plenamente (no livro ele afirma que viu-se morto quando, em um
banheiro público, os jovens não olharam mais para ele em seus jogos sexuais)
que escureceu para sempre. “É de noite” (ARENAS, 2009, 375), finaliza. Ele,
então, morreu, para a escrita, para o sexo (“A vida é risco ou abstinência”[9]),
para a vida, mas ainda não para contestar politicamente (pois ele morreu, mas
proibiu que seus livros fossem publicados em Cuba até a morte de Fidel).
Por sua vez, no caso de
Pierre Seel, vê-se um texto pontual, permeado pela voz do silêncio, que tentou
ser quebrada oficialmente apenas uma vez, anos após o acontecimento traumático.
O francês viveu o início de sua vida sexual tentando dar vazão ao seu desejo,
mas foi a partir do constrangimento causado pela polícia/política que ele se
afundou em um jogo pérfido de silenciamento e vergonha: após ter um relógio de
família roubado quando estava em um parque público onde havia encontro de
homossexuais, Seel aos 17 anos se encaminha à delegacia, mas é lá que ele
descobre, tempos depois, ter sido fichado como “homossexual”. Após ser
repreendido pelo policial por frequentar o referido parque, Seel destaca:
“Entrei na delegacia como cidadão roubado, saí de lá como homossexual
envergonhado” (SEEL, 2012, 30). Seu relato testemunhal, a partir daí, se apaga
de encontros amorosos com outros homens e se recheia de vergonha. Ele,
diferente de Arenas, deixa de viver sua homossexualidade e de seu relato a
experiência homossexual é apagada, dando lugar apenas ao desejo de justiça,
proveniente de seu desabafo, já idoso, a um intermediário jornalista. Enquanto
Arenas sempre gritou (ainda que tenha encontrado o grande silêncio na Aids),
Seel só no fim conseguiu exprimir seu grito (ainda que tenha sido um grito sussurrado,
um grito recheado de silêncio). A tentativa de cura por meio da narração fez-se
para ambos e o silêncio e a vergonha teve reverberação nas duas obras.
Portanto, almeja-se a)
demonstrar o modo como Reinaldo Arenas e Pierre Seel utilizaram-se da e viram a
literatura como forma de expurgar o mal; b) entender a possibilidade de se
pensar a teoria da literatura de testemunho homossexual independente da
separação conceitual entre Shoah e testimonio; c) diferenciar teoricamente os
conceitos que compõem a narrativa do eu, como a literatura de testemunho, a
autobiografia e a autoficcção; d) estudar o trauma homossexual como relegado
ainda a segundo nível das discussões teóricas da literatura de testemunho.
Como destaca Blanchot: “O beijo dos
amantes destrói a sociedade”[10].
É esta autenticidade de vida, de homossexualidade (seja de que forma for) que
encontra resultado no grito, no testemunho, na representação literária destas
vítimas, que estes dois relatos veem-se relevantes para o debate da emancipação
do sujeito homossexual e da compreensão de como a sociedade o aniquilou ao
longo dos anos.
2.
PRESSUPOSTOS
TEÓRICOS
Estes dois autores
vivenciaram, no contexto europeu e americano, experiências-limite[11] que
desembocaram em seus relatos-gritos publicados nos anos 1990. O objetivo,
então, em analisar ambas as obras comparativamente, é encontrar pontos de
convergência, a partir da homossexualidade renegada pelo mundo e até mesmo pela
própria economia simbólica da literatura de testemunho[12],
que aproximem as teorias sobre o testemunho literário da Shoah
(majoritariamente sobre os judeus na Segunda Guerra) – que prioriza a cisão do
sujeito atingido pelo trauma e a questão da memória – e o testemunho da América
Latina, conhecido por “testimonio”[13]
(que relata de forma mais ampla a questão das camadas oprimidas campesinas e
indígenas) – que por sua vez enfoca o relato histórico e jornalístico da
testemunha diante das mazelas do subdesenvolvimento (geralmente o relato tendo
um mediador jornalista ou antropólogo).
Com estas separações
didáticas sobre os testemunhos do contexto do pós-Segunda Guerra Mundial e do
autoritarismo da América Latina, quer-se entender também como que Arenas e Seel
fogem a estes paradigmas teóricos, vide que o relato de Arenas é iniciado
(dito) e finalizado (escrito) pelo próprio autor (sem intermediários
superiores) e é permeado em grande parte pelas consequências do trauma
(dizer/não dizer a Aids, contar para ultrapassar, dizer para manter-se vivo),
enquanto que Seel “existe” a partir de seus depoimentos a um jornalista, que dá
forma ao livro, ao passo que ao mesmo tempo o texto é recheado de notas de
rodapé que tem por intenção dar uma historicidade relevante à fala do alsaciano
deportado[14].
Deseja-se estudar também a forma como estes dois autores – que viveram e
produziram diante de contextos e motivações diferentes, mas semelhantes em seus
efeitos traumáticos – articularam em seus relatos da Shoah e da América Latina
o sexo/sexualidade que define, a política (seja capitalista ou comunista) que
condena e a produção literária (seja ela produtiva e constante ou cindida e
pontual) que tem por intenção expurgar o mal.
É preciso estudar
também com muito cuidado a crítica feita, por exemplo, por Sánchez (2012), de
que a narrativa homossexual perpetua a homofobia do discurso
heteronormativo. O gay que se narra e
narra sobre os seus está transpassado pelo discurso patológico e traumatizante
e seria muito difícil para quem recebe este discurso como prioritário não ser
atingido com vigor por ele. Deve-se, com isso, entender a narrativa gay não
como perpetuadora do preconceito, mas como índice do que o preconceito é capaz
de fazer no sujeito homossexual.
Desta
forma, pretende-se trazer à luz: 1) a problemática da teoria da literatura de
testemunho vide seu confronto em relação à autobiografia e à autoficção[15] e
entre o autoritarismo da América Latina e a Shoah[16];
2) a literatura de testemunho diante de sua abrangência que recai no literário,
no psicanalítico e no histórico; 3) a literatura de testemunho que deve ser
entendida diante de três perspectivas: em seu sentido jurídico e de testemunho
histórico, no caráter de sobrevivência a um evento-limite e um atravessar a
morte e, por fim, em um “teor testemunhal” que permeia grande parte da
literatura do século XX (SELIGMANN-SILVA, 2003, 8); 4) a relação entre as
extensas repressões aos homossexuais: desde os campos de concentração até a
Aids; 5) a importante questão sobre a baixíssima divulgação e propagação
editorial de testemunhos de vítimas homossexuais da barbárie seja no contexto
da Shoah, seja no da América Latina; 6) os efeitos do trauma e as capacidades
de lembrar e esquecer presentes nos relatos de testemunho homossexuais que
permeiam a narração do eu cindido pela era dos choques e das catástrofes.
Questionar, deste modo, a maneira como o indecifrável, mas investigável, foi
apresentado por estes dois autores (que apesar de “traumatizados” em momentos
históricos distintos, convergem em seus relatos testemunhais homossexuais a
vergonha/silêncio provenientes do biopoder). Entender como eles transformaram
em texto (terapia) o enigma inenarrável que foi a tortura forte demais contra o
homossexual.
3. METODOLOGIA
Deve-se entender a
literatura de testemunho como a narrativa do real traumático e esta pesquisa
pretende-se ter por foco a literatura do trauma homossexual, que crê-se não ter
ainda recebido o devido enfoque. Sendo assim, pensar esta literatura do trauma
é pôr-se diante de um paradoxo, posto que o trauma traz em si questões que
envolvem esquecer e rememorar repetidamente; querer contar e não conseguir
dizer (“double bind”). Ou seja, o trauma é algo inenarrável, pois não traduzido
por meio da linguagem: é um evento tão extremo, que transcende a capacidade de
explicação por meio do traumatizado. O trauma, o fora do tempo, é entendido
como passado que sempre retorna como presente e, no sonho do traumatizado, como
destaca Freud, não é a realização do desejo que se manifesta, mas a repetição
da cena traumática (FREUD, 2010, 144). Entre certo distanciamento da cena
traumática e a rememoração do trauma, como no caso de Pierre Seel, vê-se o
trabalho, na escrita de Arenas, de dar conta do trauma que acontece ao mesmo
tempo em que ele se dá. Diz-se isso tendo em vista a Aids e este não distanciamento
entre o evento traumático. Sua elaboração como vivência é destacada, de certa
forma, na afirmação de que o distanciamento entre tempo presente e ficção, na
contemporaneidade, tornou-se impossível[17].
No entanto, a narrativa
da experiência – ainda que difícil, ainda que limítrofe, ainda que cindida –
proporciona certa cura: “a capacidade de testemunhar e o ato do testemunho
envolvem em si mesmos uma qualidade curativa e já pertencem, por caminhos obscuros,
ao processo de cura”[18].
Forma esta de entender-se o contar como terapia também explicitada por Arenas –
“Mas era um consolo contar tudo” (ARENAS, 2009, 213)[19]
–, e por Seel, em um contexto usual no testemunho, o de fazer-se justiça – “E
quanto a mim, depois de décadas de silêncio, decidi falar, testemunhar, acusar”
(SEEL, 2012, 58). Esta narrativa também é necessária como um “atravessar a morte”,
para suplantá-la. A linguagem é capaz de não curar a ferida que aberta ainda
jorra sangue (vide o suicídio de Reinaldo Arenas e o provável suicídio de Primo
Levi), mas ela proporciona uma válvula de escape ao grito.
Refletir sobre esta
incapacidade de dizer (não conseguir dizer o trauma chamado Aids, por Arenas, e
manter-se no silêncio e adentrar uma vida heteronormativa pela obrigação de corroer-se
no segredo, por Seel) e sobre a necessidade de contar, é retomar questões muito
importantes para a literatura do século XX, produzida por meio do real
traumático. Como destaca Benjamin, “já se podia notar que os combatentes tinham
voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências
comunicáveis e não mais ricos” (BENJAMIN, 1996, 115). Este fato nos revela que
a experiência traumática que o século XX nos lega é permeada pela incapacidade
de ser posta em linguagem, de ser retransmitida, pois assustadora e abjeta
(conceitos freudianos de Schreck e Unheimlich). Ainda segundo Benjamin
(retomando Freud), o estímulo que se dá por traumático é aquele não registrado
pelo consciente. O choque, desta forma, quanto mais constante, mais irá
requerer o consciente “no interesse em proteger contra os estímulos” (BENJAMIN,
1997, 109). Esta “racionalização”, de acordo com o autor, seria o desempenho
máximo da reflexão que faria do incidente uma vivência. “Se não houvesse
reflexão, o sobressalto agradável ou (na maioria das vezes) desagradável
produzir-se-ia invariavelmente, sobressalto que, segundo Freud, sanciona a
falha de resistência ao choque” (Ibidem,
111). Benjamin articula, então, na figura de Baudelaire, a capacidade de ter
assimilado o choque e sua tentativa de depreendê-lo “na imagem crua de um
duelo, em que o artista, antes de ser vencido, lança um grito de susto” (Ibidem, Idem). É esta batalha contra a
falha de resistência ao choque que, aqui, entende-se como a capacidade de curar
que a narrativa proporciona.
A consequente
racionalização de uma poética proveniente do trauma é a causa, aqui articulada,
da famosa consideração de Adorno, ética e estética, que retém-se em Auschwitz
mas que pode ser ampliada aos genocídios que macularam a humanidade de uma
forma geral: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói
até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas”
(ADORNO, 2002, 61). No entanto, em texto posterior, Adorno faz uma ressalva, a
de que “a dor perene tem tanto direito à expressão, como o torturado ao grito;
por isso pode ter sido errado afirmar que não se pode escrever mais nenhum
poema após Auschwitz” (ADORNO, 2009, 300). Este grito seria, então, o susto de
Baudelaire, Arenas e Seel.
Compreendida,
desta maneira, a questão de uma literatura do século XX permeada pelo trauma,
pretende-se agora frisar, na tentativa de esclarecer as intenções metodológicas
deste projeto, o viés da realidade traumática. Ou seja, de uma realidade
possível de emergir, proveniente de um texto que pretende-se real mas que
atravessado pela subjetividade e pelas complicações referentes à experiência
traumática, intraduzível e traduzível ao mesmo tempo. Aqui, entende-se o trauma
generalizado como o trauma de ser homossexual. Com isso pretende-se afirmar não
que ser homossexual seja trauma, mas que como a sociedade vê o homossexual como
desvio, o cidadão homossexual recebe esta informação e a trabalha em sua vida
como trauma. Desta forma, em um texto literário que não mais é o de afastamento
– o de um texto (obra) independente, que aparentemente não recebe interferência
de seu contexto (autor) – mas sim de aproximação – um texto que está sempre e
em todo momento referindo-se ao seu contexto – temos uma afirmação lapidar que
destaca essa capacidade de a literatura ser vida e de a vida ser literatura:
“Da escrita à vida e da vida à escrita, a via é certamente de mão dupla, ou,
mais do que isso, de encruzilhada, havendo tanto as muitas intensidades do
vivido na escrita quanto as da escrita no vivido”[20].
Sendo assim, busca-se,
portanto, nestes testemunhos literários, encontrar o teor real, o resto, a
sobra de vida que existe em um testemunho[21]
onde a testemunha está morta, pressuposto da lógica do carrasco (destruir a
vítima até o ponto em que ela acredita-se como o próprio algoz)[22].
O narrar é, portanto, o sopro de vida, a atitude que faz da testemunha
reafirmar-se como vítima e pedir por justiça. A intenção de trabalhar aqui a
questão do real traumático é necessária para desviar os discursos negacionistas
que conferem à narrativa testemunhal e autobiográfica um teor tão subjetivo que
impossível de se mensurar na esfera da realidade. Como afirmou-se aqui sobre o
indizível da Aids, do campo de concentração, do cárcere e da homossexualidade
em si, destaca-se: “O testemunho, portanto, é muito mais lacuna que propriamente moldura, muito mais índice do que símbolo?” (SELIGMANN-SILVA, 2003, 20) e “O testemunho
não se interessa por fatos (...), mas pela lacuna que subsiste entre os fatos e
sua verdade experiencial” (PENNA, 2013, 71). Este índice, essa literatura que
revela mais ao vermos as pegadas e não o pé que pisa, é a literatura de um
“homem sem qualidades”, deste “homem inumano”, de alguém que na escrita
pretende vagamente encontrar-se.
Este é o sujeito
testemunhal: ele é potência, ele não é essência (Ibidem, 78). Pensar a realidade do testemunho, da
experiência-limite – já que não há realidade fora de Auschwitz (e seus
correspondentes); não há realidade fora da Aids; não há realidade fora do baque
forte demais – é pensar na “metarrealidade que a destruição da realidade é”[23],
absolutamente, como pretendem nos fazer ver os relatos de Arenas e Seel. É,
então, no lastro de verdade, nesta outra realidade existente a partir da morte
da realidade que deve-se pensar o testemunho: “O testemunho será assim, em outras
palavras, compreendido não como uma modalidade de enunciado sobre mas como uma
modalidade de acesso àquela verdade”[24].
Portanto, ao definir
como objetivo desta pesquisa a hipótese do elo que permite dizer que há uma
“universalidade” na representação do trauma homossexual, e trabalhar de certa
forma como secundária a separação entre Shoah e testimonio, vê-se como
imprescindível analisar estas lacunas presentes nos textos de Arenas e Seel,
pois estas lacunas são o que definem – totalmente – seus testemunhos: é a
partir da Aids que Arenas trabalha seu livro/sua vida, ainda que ele tenha dito
que “o livro acabou e disse pouco sobre a Aids”. Vê-se a condenação e o ressentimento
a seu sexo em todo canto do texto, e isso é assim por conta da Aids, a maldita,
a não-dita: “mas o fato é que o prazer sexual se paga quase sempre muito caro;
mais cedo ou mais tarde, por cada minuto de prazer que vivemos, passamos depois
anos de sofrimento” (ARENAS, 2009, 236)[25]. Seel,
por sua vez, faz do silêncio que permeou sua vida e que fez com que seu relato
demorasse tantos anos para ser dito (silêncio imposto tanto pelo governo
autoritário nazista como pelo democrático francês), a marca registrada de seu
trauma, e é no silêncio que após o campo de concentração ele faz de sua homossexualidade
– em sua vida adulta não há referência a um novo amor homossexual para Seel
(ele apenas rememora seu namorado assassinado) – que o livro se estrutura[26]:
“Eu havia decidido apagar a minha homossexualidade da minha vida. Mas é
possível impedir a si mesmo de pensar?” (SEEL, 2012, 120). O livro reproduz o
diálogo entre Seel e um jornalista que o estimula a contar seu relato e é na
fala do jornalista que se lê: “É necessário testemunhar (...). O essencial é
dizer” (Ibidem, 134), enquanto Seel destaca
surpreso: “eu surpreendi-me por poder falar” (Ibidem, 135).
Portanto,
ao analisar comparativamente, no nível do discurso, ambas as obras finais-iniciais
de Arenas e Seel, pretende-se defender a hipótese da não distinção entre as
narrativas testemunhais; o objeto de estudo é, principalmente, o resto e a
falta que surgem nos relatos aqui estudados; e a teoria até aqui analisada
nesta seção visa abarcar estas intenções, fazendo desta correlação textual
entre teóricos que convergem questões da representação literária no fato
histórico e psicanalítico a meta a ser alcançada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como espera-se ter
ficado claro, este estudo tem por intenção articular duas obras de testemunho,
tendo como foco principal possibilitar uma análise da literatura do trauma
homossexual independente de separação entre a Shoah e o testimonio. A partir da
leitura comparativa entre as obras, vislumbrar todo arcabouço teórico que requer
a questão da representação literária, da história e da psicanálise que possam
auxiliar esta empreitada. Quer-se, com isso, preencher as lacunas que ambos os
textos tentam fazer emergir, para que possa-se compreender o resto de um grito
abafado que dois homossexuais, vítimas do sistema-mundo, tentaram fazer ser
ouvido.
Da
mesma forma, almeja-se dar chance a um campo do testemunho ainda pouco
explorado e viável editorialmente: o do texto homossexual. Inseridos em um
contexto dos Estudos Culturais e da propagação dos direitos civis gays,
analisar estes autores é igualmente dar voz a uma minoria (pode o subalterno
falar?) ainda com pouca voz: é tentar dar mais uma chance de inserir na
história os que foram barbaramente repelidos dela. Frisar também que o discurso
de “repulsa ao próprio sexo” empreendido pelo homossexual traumatizado (e
encontrado em Arenas e Seel) não pode ser visto como reverberação de homofobia
internalizada, como parece sugerir Sánchez (2012), mas sim entender o
homossexual que se nega querendo, na verdade, que alguém o estenda a mão para
afirmá-lo[27].
O estudo da representação literária do testemunho aqui empreendido visa tentar
compreender o que os autores aqui analisados disseram ser incompreensível:
“Para quem não passou por isso, não é possível compreender o que significa”
(ARENAS, 2009, 164). O testemunho, ato ético e estético, portanto, contra a
barbárie. O homossexual, ainda receoso de testemunhar, encontra em Arenas e
Seel uma possibilidade e é esta chance que o estudo aqui empreendido deseja dar
voz.
5.
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[1] “O homossexual do século XIX
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uma forma de vida” (FOUCAULT, 1980, 43);
[2] ARENAS, Reinaldo. Antes que anoiteça. Tradução: Irène
Cubric. Rio de Janeiro: Editora BestBolso, 2009;
[3] SEEL, Pierre. Eu, Pierre Seel, deportado homossexual.
Tradução: Tiago Elídio. Rio de Janeiro: Editora Cassará, 2012;
[4]
Depoimentos sobre o
percurso do homossexual com Aids gravados em fita cassete que serviram de base
para o documentário brasileiro “A paixão de JL” (2014), do diretor Carlos Nader;
[5] A partir principalmente de
iniciativa do casal de artistas cubanos Jorge e Margarita Camacho, refugiados
na Espanha, que foram os responsáveis pela publicação de Arenas no exterior
enquanto o cubano ainda sofria perseguições em seu país de origem;
[6] ELÍDIO, Tiago. A perseguição nazista aos homossexuais: o
testemunho de um dos esquecidos da memória. Dissertação de mestrado.
Campinas, SP: IEL-Unicamp, 2010;
[7] A questão do testemunho é ainda
mais complexa e desejosa de análise mediante o fato de que quem testemunha é
vítima e testemunha ao mesmo tempo, como destaca João Camillo Penna: “É o duplo
status de vítima e testemunha, o fato
de a autoridade da verdade se confundir com a da experiência, a
indissolubilidade entre parte interessada e parte desinteressada, entre
experiência da objetivação e enunciação subjetivante de fatos objetivos, que
confere a especificidade do testemunho” (PENNA, 2013, 91);
[8] Principalmente os teóricos
europeus não utilizam mais o termo “Holocausto”, de origem grega, por
significar “sacrifício pelo fogo” (como se os judeus, homossexuais, ciganos
etc. houvessem optado por um sacrifício indo em direção à morte durante a
guerra). O termo mais utilizado, agora, portanto, é “Shoah”, palavra de origem
hebraica que quer dizer “catástrofe”;
[9] OLIVARES, Jorge. Becoming Reinaldo Arenas. Durhan and
London: Duke University Press. 2013, 1;
[10] BLANCHOT, Maurice. A comunidade inconfessável. Brasília:
Editora UNB, 2013, 42;
[11] “A experiência-limite é a
experiência daquilo que existe fora de tudo, quando o tudo exclui todo o
exterior, daquilo que falta alcançar, quando tudo está alcançado, e que falta
conhecer, quando tudo é conhecido: o próprio inacessível, o próprio
desconhecido” (BLANCHOT, 2007, 187);
[12] Quando se afirma aqui sobre uma
“indiferença” da economia simbólica das edições de textos testemunhais para com
o homossexual, expõe-se com isso o fato de, por exemplo, relatos de judeus
perseguidos já serem publicados logo após a Segunda Guerra Mundial, como os
textos mais conhecidos – “Diário de Anne Frank” (1947) e “É isto um homem?”
(1947) – ao passo que o homossexual passa a narrar-se apenas a partir dos anos
1970 (com a disseminação dos Estudos Culturais e os movimentos minoritários) e
principalmente nos anos 1980, 1990 (a partir da epidemia de Aids que dizimou
milhares de homossexuais), vide o surgimento do movimento New Queer Cinema e os
relatos dos próprios autores aqui estudados, de 1992 e 1994. Este cenário de
“atraso” no direto ao grito homossexual (percebido principalmente no silêncio
durante toda a vida de Pierre Seel) dá-se por conta da ainda vigência de leis
contra os homossexuais na Europa e na América mesmo após a criação da ONU e da
Declaração Universal dos Direitos Humanos;
[13] Literatura de “testimonio”
considerada pelo cânone como “fundada” pela Casa de las Américas da Cuba
pós-Revolução de 1959 (SELIGMANN-SILVA, 2003, 32 e PENNA, 2013, 96). No
entanto, vale lembrar que é este mesmo país e esta mesma Casa de las Américas
que proporcionou o “apagamento” de Reinaldo Arenas e impediu o próprio relato
testemunhal dele, já que nos anos 1970 o autor não figurava da lista oficial de
escritores de seu país (ARENAS, 2009) e, quando preso pelo regime, seu nome
também não constava em nenhuma prisão (Ibidem,
249). É esta parcialidade do testemunho que deseja-se aqui frisar como mote para
um estudo crítico da questão;
[14] Esta relação entre o intelectual
e o oprimido que deseja exprimir seu grito e encontra um canal a partir do
jornalista/historiador/antropólogo é analisada por Penna, dentro ainda de um
contexto de testimonio (onde geralmente esta relação ocorre), frisando o desejo
de que a voz do oprimido se sobressaia a do intelectual: “O que é ocultado aqui
é exatamente o olhar do intelectual
que constrói seu objeto como objeto estético,
para que ele brilhe solitariamente, pleno em si mesmo, como voz grupal, objeto
abjeto (...) desejável da prática solidária” (PENNA, 2013, 128);
[15] “O testemunho não deve ser
confundido nem com o gênero autobiográfico nem com a historiografia – ele
apresenta uma outra voz, um ‘canto (ou lamento) paralelo’” (SELIGMANN-SILVA,
2005, 79);
[16] Uma aproximação
e problematização da separação entre as teorias literárias sobre o testemunho
da América Latina e da Europa é apresentada a seguir: “No meu entender, esta acepção do
conceito de literatura de testemunho, por considerar uma grande flexibilidade
quanto à forma do texto associada a uma natureza de experiências de aberto
embate ideológico, abre a possibilidade de analisar uma tendência da produção
literária latinoamericana do século XX em um contexto mais amplo, que
ultrapassa os limites geográficos do continente e aproxima-a à geografia
mundial da barbárie, impondo a necessidade de examinar as relações entre
violência, representação e formas literárias” (MARCO, 2006, 51);
[17] SELIGMANN-SILVA, Márcio. “O esplendor das coisas”: O diário como a
memória do presente na Moscou de Walter Benjamin. In: Escritos da
violência: o testemunho, volume 1. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2012, 266;
[18] FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do
ensino. In: Catástrofe e representação. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 17;
[19] O primeiro livro-testemunho do
brasileiro homossexual Herbert Daniel também explicita esta mesma capacidade
curativa e consolativa da narração: “Se estou, passo a me escrever. Velha
técnica que, se não alivia, consola” (DANIEL, Herbert. Passagem para o próximo sonho. Rio de Janeiro: CODECRI, 1982, p.12);
[20] PUCHEU, Alberto. Kafka poeta. Rio de Janeiro: Azougue/Faperj,
2015, 23;
[21] “Quando tudo foi dito, resta por
dizer o desastre, ruína da palavra, desabamento pela escrita, murmúrio que
sussurra, o que resta sem resto” (BLANCHOT apud
VECCHI, (Re)citando o extremo: o
olhar da Medusa, o finito e o infinito do horror. In: Escritas da violência:
o testemunho, volume 1. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, 239);
[22] NICHANIAN, Marc. A morte da testemunha. Por uma poética do
“resto” (reliquat). Ibidem, p.
43-44;
[23] Expressão retomada por Nichanian
a partir de Lyotard. (Ibidem, 34);
[24] FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do
ensino. In: Catástrofe e representação. São Paulo: Editora Escuta, 2000, 27;
[25] Esta interdição de se
compreender a Aids e de dizê-la é percebida também na troca de correspondências
entre Arenas, nos Estados Unidos, e sua mãe, ainda vivendo em Cuba. Em nenhum
momento o filho dirige-se diretamente à mãe afirmando ser portador de tal vírus,
no máximo dizendo “estar muito doente”. Já a mãe, em nenhum momento também encara
no filho o fato de ele ser aidético, referindo-se ao vírus ao mostrar-se
preocupada com um cunhado seu, que está infectado e dizendo ao filho para
cuidar-se muito e se precaver dos perigos. Ambos sabiam da Aids, mas ambos não
conseguiam dar nome a esse horror e a seus medos (OLIVARES, Jorge. Becoming Reinaldo Arenas. Durham and
London: 2013, 114-147);
[26] Este não falar mais nas relações
amorosas enquanto Seel foi casado e após sua separação da mulher, mas a sua
eterna rememoração do namorado de adolescência assassinado, faz pensar se na
verdade o francês está é não revelando ter se relacionado com homens enquanto
foi casado com uma mulher ou se ele de fato não saiu mesmo com eles. Este não
dizer encontra reverberação no memorialista Pedro Nava, que em nenhum de seus
livros comenta suas relações homoafetivas, mas que matou-se, na faixa dos 80
anos, em plena rua no bairro carioca da Glória, por conta de chantagens de um
garoto de programa. O que não está dito pode estar dito entrelinhas e ser definidor;
[27] Neste sentido, é a mesma lógica
empreendida por Penna, retomada de Arendt: a de que, por mais que exista a
vítima que adentrou em terrenos eticamente arenosos para manter-se viva no
campo de concentração nazista (podendo então ser comparada ao carrasco, algoz),
esta vítima tinha a possibilidade real de
morrer, enquanto o carrasco/algoz nunca teve essa possibilidade, definidora
(PENNA, 2013, 86).
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