“As coisas perdidas ou inalcançadas
foram as únicas que possuí” (Maura Lopes Cançado)
“Meus trabalhos agora são tudo o que eu
tenho mesmo: minha autobiografia, meu diário” (José Leonilson)
“A capacidade de testemunhar e o ato do
testemunho envolvem em si mesmos uma qualidade curativa e já pertencem, por
caminhos obscuros, ao processo de cura” (Shoshana
Felman)
1.
INTRODUÇÃO
O
que me impede, aqui e agora, de escrever sobre José Leonilson Bezerra Dias
(1957-1993)? Há semanas estudo sua obra, há dias sonho com seu nome: sou
perseguido diariamente por seu fantasma, mas algo aqui não me permite dizer,
objetivamente, o que eu quero dizer sobre ele. O que me impede, aqui e agora?
Quem sou eu, aqui e agora? José Leonilson seria quem? Eu seria José Leonilson?
Guido, 1.60m, 50kg? El Puerto. Algo me falta e é essa falta que eu clamo
preencher com a falta exibida por José Leonilson em seus trabalhos artísticos e
nos filmes produzidos sobre ele: é essa dor sem nome, esse grito sem som, esse
pedido por misericórdia de um Deus desconhecido que eu peço e que ele também
sempre pediu. Ser homossexual e morrer de Aids. Contar a sua dor em seu
trabalho artístico. “Truth/fiction”, já fez José Leonilson. Então, como posso
começar a dizer algo claro e sem interferências da minha própria memória
afetiva sobre alguém que em seu trabalho sempre lidou de forma titubeante entre
as proposições cartesianas do sujeito, hoje já ultrapassadas? É o traço
mnemônico histérico-traumático de José Leonilson Guido Arosa que aqui eu busco
e que eu aqui encontro.
Quando, em janeiro de 1990, o
artista plástico homossexual – é importante frisar “homossexual”, pois
“homossexuais” nós somos e isso nos define: “somos” e não “estamos” homossexuais
– cearense José Leonilson Bezerra Dias começou a gravar o seu dia a dia em
fitas cassete, o objetivo era transformar aquele diário íntimo em um livro:
“(Quando comprei o gravador) queria gravar vários pensamentos para chegar em um
livro” (LEONILSON In NADER, 2014).
No entanto, esta empreitada final nunca realizou-se e suas gravações foram
armazenadas em São Paulo por meio do Projeto Leonilson, com apoio do Itaú
Cultural. Já nos anos 1990, essas fitas foram utilizadas para a realização do
curta-metragem “Com o oceano inteiro para nadar” (expressão retirada de uma
fala de José Leonilson em suas fitas) e, mais recentemente, em 2014, o mesmo
material serviu como base para a realização do longa metragem
documento-experimental “A paixão de JL”, do diretor Carlos Nader, sob a mesma
realização do Itaú Cultural em conjunto com o Projeto Leonilson, ganhando
vários prêmios e sendo exibido nacional e internacionalmente: dentre os prêmios
destaca-se o de melhor documentário no festival “É tudo verdade”, de 2015. Em cartaz,
gratuitamente, no Espaço Itaú de Cinema, em várias cidades do país, desde fevereiro
de 2016, “A paixão...” trouxe José Leonilson Bezerra Dias, José Leonilson, JL,
José, Leo, nós, novamente à baila, para as novas gerações, principalmente aos
nascidos entre os anos 1980 e 1990, que ainda não haviam tido a oportunidade de
se familiarizar e se afetar pelo trabalho de Leo.
Vou tentar, agora, ser o mais
objetivo possível: tenho por intenção analisar, neste ensaio, a obra de José
Leonilson e os trabalhos artísticos e acadêmicos realizados sobre ele, para
entender a questão da subjetividade em sua obra, a separação entre real e
ficcional e, principalmente, inseri-lo no contexto da arte testemunhal, aqui
entendida, portanto, como a arte produzida a partir do trauma – de ser
homossexual e de se ter Aids. Para isso, irei analisar, separadamente e com
mais cuidado, ainda que não apenas: o filme “A paixão de JL” (indo junto “Com o
oceano inteiro para nadar”) e a forma com que ele é conduzido, evidenciando as
transformações na fala do artista para antes e depois da descoberta de sua
soropositividade; os trabalhos do artista (em galerias ou em periódicos)
realizados nos períodos anterior e posterior à descoberta de sua
soropositividade; e, por fim, todo discurso produzido por ele com o intuito de
se explicar, tendo como pano de fundo a produção de seus desenhos e bordados (e
o que significariam estes produtos diante do contexto-Leonilson). Entender,
principalmente, a forma com que este artista plástico peculiar utilizou-se da
palavra escrita (seja em seus diários; seja em seus desenhos; seja em seus
bordados; seja até mesmo a palavra não escrita, mas dita em suas fitas) em sua
vida-obra, em sua truth-fiction, em sua autoficcção, em seu testemunho – real e
traumático, mas libertário pelo ato de fala.
2.
EL
PUERTO
Infelizmente,
não sou capaz de continuar. É difícil demais. Preciso ser subjetivo. Sucumbi
diante de minhas tentativas científicas de produção. Mantenho o início do
trabalho exposto aqui não para ratificar uma total falta de sentido em meu
artigo, mas para dizer: tentei fazer algo. José Leonilson me espanta demais,
porque ele sou eu e todos nós somos José Leonilson em nossas desgraças
cotidianas. Farei, agora, o que sei: contar como o conheci e o que ele
representa para mim. Subjetivamente, eternamente.
Foi
durante um festival de cinema homossexual no Rio de Janeiro, em julho de 2015,
que tive a oportunidade de assistir “A paixão de JL”. Sem ter muita ideia do
que poderia esperar, fui ao Cine Odeon, enorme e quase vazio, para conhecer o
que até então para mim não havia passado de um trailer onde um rapaz com voz
embargada contava um sonho seu. Fui com um amigo. Começou o filme. Logo de
cara, era eu e um enorme “Truth/fiction” (trabalho de JL) diante de mim. Isto é
o que eu também faço, percebi. Passou o documentário – apenas a voz de José
Leonilson, sendo o pano de fundo ora um gravador, ora filmes e clipes musicais
que o próprio artista menciona, como “Meu pé esquerdo” e Madonna – e eu
impressionei-me, mas ainda conseguia conter minhas emoções na ordem do
compreensível. O que eram aqueles pedidos de amor, de namoro, de compreensão,
de vergonha, de família, de vida e de morte, que o artista suplicava em seu
diário íntimo falado e em sua obra ali representada? Porém, como todo trauma, o
baque forte demais a gente só sente depois. No caminho do ponto de ônibus,
achei que o amigo que estava comigo ria. Mas não: chorava. Disse: que bobagem,
para de chorar. O que vimos é triste, mas sigamos em frente. No entanto, ao
manter um diálogo sobre o filme, já estando nós dois no ônibus, comecei eu a
chorar enlouquecidamente. Era eu, frente a mim mesmo, a partir da sombra de um
homossexual morto, após ter sido exibido a mim toda sua via crucis do corpo,
homossexual e soropositivo. O filme mais triste que já vi em toda minha vida,
eu tive certeza. Mas o que fazer com toda essa catarse? O que fazer com tanta
informação amorosa sobre Leonilson? Estudá-lo.
Fevereiro de 2016 e, finalmente, o
documentário entra em cartaz, gratuitamente, em apenas um horário por dia, no
Espaço Itaú de Cinema. Retornei e revi três vezes aquele purgatório em vida,
que se pretendia libertário, que foi a obra de JL. Sofri igual, mas então eu já
estava na fala do paciente analisado pela psicanálise, que entende de forma
hermenêutica seu problema: o meu problema, o problema de Leonilson, estava agora
sendo por mim analisado a partir de um viés terapêutico-discursivo. O choro já
havia ficado para trás. Mas como o trauma se configura por ser denegado ao
longo dos anos e voltar depois com força total a partir de um evento
catalisador, eu estava diante de um grande impasse: revi José Leonilson, quis
estuda-lo, mas não conseguia escrever absolutamente nada de coerente sobre sua
obra. Seria eu não conseguindo defrontar-me comigo mesmo? Lia, lia, lia, cada
vez mais. E cada vez mais sonhava com ele. Entreva nas salas de cinema em sonho
e pedia um ingresso para ver Leonilson. Diversas vezes esse sonho: diversas
vezes um tormento. Nenhuma linha por mim escrita, em sonho mais e mais dia
retornado, um livro diferente amanhã sobre ele portanto lido. Que piedade é
essa que em Leonilson eu quero encontrar? Minha terapeuta me disse: “Você
estuda intensamente a Aids para daqui a quarenta anos não morrer de Aids”.
Morro simbolicamente dela todos os dias e todos os dias me reinvento a partir
dela, seja em sua ausência ou presença. Eu busco incansavelmente, agora,
compreender o que me amedronta.
Levanto
a cortininha de “El Puerto”, onde lê-se “Leo, 35, 60, 1,79” e vejo um espelho.
“São três os números de Leonilson” (PRATES e SANT’ANNA, 2007), dirá um livro
para crianças sobre artistas brasileiros. Qual a cara da Aids? O esquálido,
auschwitziano, homossexual? Ou eu, banal e cotidiano? Qualquer um? Gordinho,
tal qual Herbert Daniel? O que significa meu medo da Aids, da doença? Eu posso
morrer atropelado mês que vem, ou de câncer ano que vem, e morrer assim seria
diferente do que morrer em consequência da Aids? Fala Leonilson:
“É, minha idade,
meu peso, minha altura. Ele chama ‘El Puerto’. Eu fiz teste de HIV e deu
positivo há um ano atrás. E eu não senti nada. Você imagina? Eu já vi vários
amigos em desespero, e eu não. Eu não senti ab-so-lu-ta-mente nada. Falei:
‘Mais um fato na minha vida’. Depois do teste, já fiquei desesperado, ainda
fico deprimido. Mas o que eu sei é que minha qualidade de vida tem que ser a
melhor possível. (...) Antigamente, eu passava meus limites. Hoje, se estou
cansado, nem me levanto da cama. Também penso que me tornei muito mais
receptivo. Não sei se eu tenho mais seis meses, dois anos ou vinte. Então, não
por dó nem piedade, minha relação com as pessoas melhorou muito. (...) Nunca
gostei muito de me olhar no espelho. Nem tinha espelho no meu quarto, evitava o
espelho do banheiro. Para que se olhar no espelho? Não há nenhuma necessidade.
Eu estava no centro da cidade e comprei este espelhinho. Quando cheguei em
casa, pintei de laranja bem forte. Comprei um pano listrado... Usei a palavra
‘porto’ por causa da receptividade. O porto recebe. O Leo com 35 anos, 60
quilos e 1,79 metro é um porto que fica recebendo. Acho que hoje eu recebo
muito mais do que dou, porque preciso canalizar minhas energias para minha
intimidade. É isso, simplesmente. Precisava fazer um objeto com estas
características para mim. (...) Aliás todos os trabalhos são objetos de desejo”
(LEONILSON apud LAGNADO 1998,
98-100).
Portanto,
“esse confronto todas as manhãs com a minha nudez no espelho era uma experiência fundamental” (GUIBERT apud BESSA, 2002, 206). Leonilson
olhou-se por meio de sua obra e nos fez olharmo-nos diante de nós. Qualquer um
se ver nesta obra em específico quer dizer que “nós não devemos cair na
armadilha de traçar uma vida com o momento da morte... como alguém morre não
diz nada como ele viveu” (WHITE apud
REIS, 1998, 79).
Diário íntimo, com datas, para
salvar os dias (Walmir Ayala): Leonilson grava seu dia a dia e diz sempre as
datas: “Hoje, dia... bombardearam Bagdá”. No fim da vida, porém: “Não sei que
dia é hoje. 14 de novembro, não é?” Não se sabe mais o dia certo, o passo fica
incerto, o encerramento já está próximo. O filme assim vai chegando ao fim.
Diário – desenho – bordado – palavra – poesia – lugar do amor e do desejo.
3.
FRAGMENTOS
DE UM DISCURSO EXTREMAMENTE AMOROSO
Trechos
de discursos que esclarecem a trajetória-Leonilson:
a) “Única
coisa que eu quero é trabalhar direito e encontrar alguém para dormir comigo”
(José Leonilson, em “A paixão de JL”);
b) “Eu
tenho medo da Aids. Não estou a fim de morrer sofrendo, desgraçado. A praga
está aí pronta para te pegar. Mas isso faz com que nossa consciência fique mais
forte (...) Com o oceano inteirinho, pronto para eu nadar” (Ibidem);
c) “Minha
mãe me olha com olhos de quem sabe. Mas eu não teria coragem de contar que sou
gay” (Ibidem);
d) “Eu
queria tanto ser um bom filho. Eu queria tanto não ser nenhum desgosto. Mas eu
também queria tanto ser feliz. Ter alguém para namorar” – em seguida, exibição
do desenho acompanhado da expressão “Always causing familiar drama” (Ibidem);
e) “Chorei
vendo o cara na novela. Só uma pessoa maluca chora vendo um cara na novela” (Ibidem);
f) “Agora
eu estou super carente. Fico afins de quem chega perto de mim. Eu namoraria
ele, se ele quisesse” (Ibidem);
g) “Eu
não tenho medo. Na verdade, eu penso 24 horas no assunto. Mas penso mais em
como vou contar para minha família, que gosta tanto de mim” (Ibidem);
h) “Estou
gostando tanto do Eitan. Eu já contei (...) Me disseram que eu tinha que ter
esperança. Tenho medo de tomar AZT pelos efeitos tóxicos. Eu sei lá. Peço para
Deus para ajudar, ficar comigo meu anjo da guarda” (Ibidem);
i)
“Talvez eu nunca mais possa ter nenhum
namorado. Qual cara vai querer namorar um positivo?” (Ibidem);
j)
Diálogo entre a mãe e José Leonilson,
citado pelo próprio: “Mãe: ‘Eu queria acordar e poder mudar o mundo’. Léo: ‘Eu
queria acordar e estar morto’”. Depois de conversarem sobre Jesus Cristo ter
morrido pelo bem dos homens, Leonilson diz: “Então não adiantou nada” (Ibidem);
k) “Como
vou pedir para Deus segurar minha barra se ele deixou chegar a esse ponto?
(...) Como eu vou contar para minha família? Isso é que é o pior (...) É muita
crueldade. Eu não fiz nada para merecer isso” (Ibidem);
l)
“Como vencer o medo? Enfrentando-o”
(filme “As asas do desejo”, de Wim Wenders, exibido durante “A paixão de JL”);
m) “É
a ambiguidade. Minha vida é um diário. Toda minha atitude é esta. Eu também não
entendo direito isso. Se eu entendesse, acho que eu faria outra coisa”
(LEONILSON apud LAGNADO, 1998, 86);
n) “Eu
não extravaso com violência, nem com o uso do poder, mas acho que as coisas
calminhas cutucam tanto quanto um tiro na testa. Uma poesia gay, para as
pessoas, machuca muito” (Ibidem, 88);
o) “É
(a realidade da palavra é totalmente autobiográfica)” (Ibidem, 110);
p) “A
inclusão do fantasma e do desejo na linguagem é a condição essencial para que a
poesia possa ser concebida como joi
d’amour. A poesia é, em sentido próprio, joi d’amour, porque ela mesma é a stantia na qual se celebra a beatitude do amor” (AGAMBEN, 2007,
211);
q) “(...)
em um círculo no qual o fantasma gera o desejo, o desejo se traduz em palavras,
e a palavra delimita um espaço onde se torna possível a apreensão daquilo que,
do contrário, não poderia ser nem apropriado, nem gozado. É este círculo, em
que fantasma, desejo e palavra se entrelaçam ‘como as línguas se entrelaçam no
beijo’” (Ibidem, 212);
r) “A
linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro” (BARTHES, 1981, 64);
s) “O
amor é mudo, diz Novalis; só a poesia o faz falar” (Ibidem, 68);
Bibliografia
AGAMBEN,
Giorgio. Estâncias: a palavra e o
fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007;
BARTHES,
Roland. Fragmentos de um discurso amoroso.
Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1981;
BESSA,
Marcelo Secron. Histórias positivas: a
literatura (des)construindo a Aids. Rio de Janeiro: Editora Record, 1997;
__________.
Os perigosos: autobiografias e Aids.
Rio de Janeiro: Editora Aeroplano, 2002;
GANCIA,
Barbara; MESQUITA, Ivo. Leonilson: use, é
lindo, eu garanto. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2006;
LAGNADO,
Lisette. Leonilson: são tantas as
verdades. São Paulo: Projeto Leonilson / Sesi, 1998;
PRATES,
Valquíria; SANT’ANNA, Renata. Leonilson:
gigantes com flores. São Paulo: Editora Paulinas, 2007;
REIS,
Paulo Roberto de Oliveira. A construção
do desenho: sujeito, temporalidade e cartografia em Leonilson. Dissertação
de mestrado. Rio de Janeiro: Departamento de História, PUC-Rio, 1998.
Filmografia
HARLEY,
Karen. Com o oceano inteiro para nadar.
Rio de Janeiro: Sério Rio Arte Vídeo / Arte Contemporânea, 1997;
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