A
relação do homem com a ilha era de grande intimidade. Ele ali estava desde bem
cedo e não havia com muita clareza em seu calendário o dia em que passou a ser
da ilha. Apenas tinha a certeza de que cada grão de areia daquele círculo era
seu irmão. Pelas manhãs, percebia como cada árvore estava mais verde, mais
seca, mais florida, mais frutificada, maior, menor. Caminhar por toda a extensão
da ilha não era muito sacrificante, pois ela não tinha mais que o tamanho de uma
caixa de sapatos. Rodava-a e via a água em volta aparentemente sempre preta e
tudo por dentro do espaço sempre denso. Mas ele tinha a impressão de estar
sozinho na ilha e desconhecia a forma pela qual dela fugiria. Não sabia nadar.
Dormia
e acordava de forma mecânica e sonhar era de certa forma um privilégio, porque
passava tudo tão rápido quando fechava o olho que parecia ser a vida o sonho
verdadeiro e o sonho em si os dias sem sentido. Sabia ser um alívio dormir,
porque despertado ele pensava nos motivos e nas razões para estar ainda de pé
em um lugar onde nada poderia ser construído, nada poderia ser produzido, nada
poderia existir além dele, nada além dali reverberava. Ele por si mesmo naquele
círculo vazio. Uma casa não poderia existir porque como se constrói uma casa?
Uma profissão não poderia ser exercida porque trabalhar para quem, com o que,
para ganhar o que, para trocar por o que? Um mundo novo não poderia nascer
porque com quem se multiplicar? Estudar o que, por meio de que plataforma, para
transmitir a quem? Vestir-se para não envergonhar a quem, se ele era apenas um?
Ele era inútil.
Ele
de branco transformou-se em vermelho. A pele doía pelo sol direto no corpo. Sem
proteção, esteve aberto ao câncer cotidiano. Roupa era apenas aquela: calça,
chinelo, camiseta. O tempo definhava tudo e a vestimenta era a mais explícita
das decomposições. Mais pelado, mais sensível. Os dentes caindo paulatinamente,
comendo aquelas frutas apenas. Caso se comesse, seria salgado, porque o sal
daquele mar já era tão dentro dele, onde se banhava com cuidado dia e noite. Não
sabia mais falar, não tinha ninguém para conversar, e o cotidiano mudo
danificou suas cordas vocais, as deixando enrugadas, secas, inauditas. O mundo,
aquele mundo, foi fazendo todo o sentido para seu cérebro: aquela ilha era o
mundo, ele era o homem daquele mundo, aquelas árvores eram as plantas do mundo,
a água em volta era toda a água que aquele mundo suportava e não houve nada
antes e não haverá nada depois da passagem do homem do mundo pela ilha, que era
o mundo.
Nenhuma
pedra. A ilha era só areia e aquela vegetação densa, porém esparsa, que vivia.
Fofa no meio e um tanto consistente apenas onde a água batia. Nenhum peixe
encalhou na areia enquanto o homem esteve na ilha. Não sabia nem se peixe tinha
naquele mar. Não sabia o que era um peixe, pois o viu apenas em sua vida
pré-ilha, mas não existe mais sua vida pré-ilha (hoje ele é completamente uma
ilha). A ilha era apenas um grande campo de existência passiva. Eram as plantas
as únicas beneficiárias da ilha. Ela as sustentava. Do seu sustento, elas
cresciam e delas iam nascendo outras, mas o homem não sabia mais como uma planta
crescia e com que objetivo e como vão nascendo outras árvores do nada do chão
vacilante. Plantas e ele o único animal.
Foi
escurecendo naquele dia, mas qualquer dia poderia ser aquele dia porque não fazia
diferença os dias porque afinal todos os dias são dia e noite e todos os dias há
o sol e há a lua e todos os dias aquele mar estava ali mas era ele o diferente
todos os dias porque cada dia era menos um dia e cada vez mais morto ele estava
porque não entendia um motivo para ser. Mas aquele dia escureceu. Ele escureceu
mais do que jamais escurecera antes. Deitado depois de comer uma banana que
havia caído, ele virou-se, mas não fechou os olhos e a areia entrou na sua
vista e ele afundou mais a cabeça sentindo todo aquele ardor e ele chafurdou na
dor experimentada e incompreendida. Assim, assim. Apenas um fim e não um meio.
Seu
nome qual era, ele desconhecia. Ele não se chamava como quem chama “Abigail!”,
porque ele já é ele. Então, é inútil um nome. Por mais que não se expressasse
mais verbalmente, por um tempo ainda pensava as palavras, o nome das coisas.
Mas depois não sabia nem mais o que era um “pé”. Prostrando-se, virou um
acessório daquela ilha. Uma árvore, ele é. Seu nome hoje, na ilha: “planta”.
Cresceu planta.
Hoje:
“O ClimaTempo informa que a previsão para este fim de semana é de chuva intensa
e maré alta.” A caixa de sapato foi entrando dentro da água e o homem – agora
planta – não pôde fazer nada. Morreu afogado porque não sabia nadar no mar sem
peixe e aparentemente preto.
Amanhã:
Encontraram a ilha depois que a maré baixou. Nela, no entanto, viram apenas a
areia. O nome dessa ilha? Porque o narrador não sabe, a personagem não sabe, o
leitor não sabe, mas eu sei: Ilha...
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