“Conter os fluxos desses novos movimentos sociais, que não só organizam a luta, mas também produzem riqueza – eis o objetivo do capital.” (MALINI, 2003: 154)
O objetivo deste artigo acadêmico é demonstrar, através de dados concretos e argumentação teórica, o embate entre a tentativa de o Estado punir e formalizar as produções culturais e de informação por parte da população, em contraste ao mercado capitalista formal produtor de conteúdo. Desta forma, diante do cenário contrastante visualizado por meio do advento da internet, local onde a circulação de informação é feita de maneira mais livre e irrestrita, o Estado e o mercado do capital simbólico viram-se diante de um problema. De um lado, o mercado pressionando o Estado para punir os responsáveis pela veiculação de conteúdo na rede sem o devido “copyright” e de outro o Estado criando mecanismos para a punição deste nicho virtual.
Com isso, o fato concreto desenvolvido neste trabalho é o projeto de lei (PL) 84/99, para crimes cibernéticos, confeccionado em 1999, pelo deputado Luiz Piauhylino, do Partido da Social Democracia Brasileira de Pernambuco (PSDB-PE) e modificado por Eduardo Azeredo (PSDB-MG), conhecido também como “AI-5 digital” ou “Lei Azeredo”. O aporte teórico para o contraponto em relação a esta lei são argumentos desenvolvidos sobre a política e economia da cultura dentro do contexto atual do ciberespaço, a partir de estudiosos como Jacques Attali, Jean-Pierre Warnier, Suzy dos Santos, Marcio Tavares d’Amaral, Giuseppe Cocco, Richard Barbrook, dentre outros.
1. A era do compartilhamento: computador pessoal somado à internet como fornecedor de conteúdo e informação
Segundo o Museu da História do Computador, fundado em 1996 na cidade de Boston (Massachusetts – Estados Unidos), o primeiro computador pessoal (mais conhecido como “PC”, sua sigla em inglês que significa “personal computer”) foi lançado em 1971, sendo anunciado por US$ 888, e possuía capacidade de memória de 256 bytes. Porém, sua popularização deu-se apenas durante os anos 1980 e, principalmente, 1990, através de empresas como Microsoft e Apple, dos estadunidenses Bill Gates e Steve Jobs, respectivamente. A internet, por sua vez, veio primariamente por iniciativa dos Estados Unidos da América (EUA) durante a Guerra Fria (1945-1991) com a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Nos anos 1960, temendo que um ataque soviético às bases militares estadunidenses pudesse deixar informações sigilosas vulneráveis, foi idealizado um modelo de troca e compartilhamento de dados que permitisse a descentralização dos mesmos. Com isso, a ARPA (Advanced Research Projects Agency), órgão do Departamento de Defesa dos EUA, criou o sistema de rede ARPANet, em 1962, embrião do que hoje se conhece por internet. Completamente desviada de seu intuito inicial, já que um ataque frontal nunca ocorreu entre as duas potências, a internet começou a popularizar-se, tomando o rumo da casa das pessoas, com o surgimento, em 1992, do sistema “World Wild Web” (WWW), pelas mãos do cientista Tim Berners-Lee, e sua explosão em 1994 (MALINE, 2003: 168). Foi, então, com o decorrer dos anos 1990, que a internet começou a ser mais difundida, aliada à propagação dos computadores pessoais. Passada a bolha especulativa da rede, em 2000, e a era da internet discada, os primeiros anos do século XXI vieram para massificar a web e torná-la sinônimo de globalização e cultura.
Os anos 2000 são, portanto, os de grande expansão e multiplicação de conceitos sociais e utilidades práticas do computador pessoal, que não pode mais ser desconectado da rede mundial de computadores, a internet. Sob esta discussão, no que diz respeito à linguagem comportamental que o computador trouxe ao ser humano, vê-se uma grande transformação em sua utilização. Antes, o computador era visto como um móvel. Ou seja, ele localizava-se em locais públicos da residência, como a sala de estar, e era utilizado por todos. Em uma discussão mais atual, com a banalização do computador, ele passou a ser, como a televisão, acomodado nos quartos das residências, em quantidades muitas vezes superiores a uma unidade, levando a risca sua alcunha de “pessoal”. Ao se avançar mais neste aspecto, os micro-computadores surgem para ser a extensão do computador que a pessoa possuía em casa, mantendo-a conectada constantemente. Antes, discutia-se a internet discada, hoje se está inserido no contexto do “wi-fi”, que opera, grosso modo, sem fio. De acordo com dados divulgados em agosto de 2011 pela F/Nazca, no Brasil há 81 milhões e 300 mil internautas, considerados a partir dos 12 anos de idade. Já segundo o Ibope/Nielsen, há 73 milhões e 900 mil a partir dos 16 anos. O principal local de acesso é a lan house (31%), seguido da casa (27%). O Brasil já é considerado o quinto país de maior acesso à internet. O Ibope informou que, de outubro de 2009 a outubro de 2010, 87% dos internautas acessavam semanalmente a rede. Por fim, a internet tornou-se o terceiro veículo de maior alcance no país, atrás apenas do rádio e da televisão. Em junho de 2008, dez milhões e quarenta mil pessoas tiveram acesso à banda larga, um ano e meio antes do previsto.
Sendo assim, percebe-se que a internet tornou-se um potencial propagador de comunicação no mundo, que foge aos que já eram conhecidos tradicionalmente, como televisão, rádio e jornal. Tendo o computador como o meio e a internet como a mensagem, houve grande profusão da informação e descontrole por parte do mercado e do Estado de gerenciamento de seu conteúdo. Antes reservado aos entendidos da computação, informática e programação, hoje a internet é feita por todos e para todos, resguardadas aí características sociais do acesso à web por meio da população menos favorecida economicamente. Em seus sites, por correio eletrônico e mídias sociais, circula o bem imaterial e virtual da informação, permeando a noção de que o acesso ao conhecimento e ao mundo é irrestrito.
Em entrevista ao estudante Vinícius da Cunha, em julho de 2010, o filósofo e professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Márcio Tavares d’Amaral fez considerações sobre o fato da possibilidade de haver um novo iluminismo com a era da internet, no que afirma:
“A característica do Iluminismo foi a ideia de que a razão, sozinha, seria capaz de iluminar o mundo inteiro. A internet tem essa pretensão também. A internet tem a pretensão de estar no mundo inteiro, com a troca velocíssima de informação. Mas a internet não tem a pretensão de explicar o mundo, ela é um mundo em si, com simulação e simulacros. Um paralelo formal entre iluminismo e internet pode ser feito, sem dúvida, mas os conteúdos não são os mesmos.” (AMARAL, 2010)
Nestes anos, a noção de informação, conteúdo e produção livres e irrestritos foram as que mais se ateram ao domínio da web, no que a professora e diretora da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ Ivana Bentes considera por “midialivrismo”. Nesta discussão, não se pode deixar de lado o fenômeno das mídias ou redes sociais, ocorrido no mundo a partir de 2004. Pode-se considerar a internet antes e depois das redes sociais, ou o mundo antes e depois das redes sociais. Pelo menos, neste caso, o mundo da camada jovem e adulta economicamente ativa de um mundo ocidental capitalista. Redes sociais são comunidades virtuais de encontro de amigos, familiares e pessoas para, principalmente, compartilhar gostos e experiências. Foi, então, que, em 2004, houve o surgimento de redes sociais como “Facebook” e “Orkut”. No Brasil, entre 2004 e 2009, reinou absoluta a rede social criada pelo turco Orkut Büyükkökten. Ainda que o Facebook em 2009 tenha dado início a uma política mais incisiva de entrada no país, demorará alguns anos para que a rede social criada pelo estadunidense Mark Zuckerberg, em Harvard, o ultrapasse. Segundo dados de 2010 do Laboratório de Web Comunicação da ECO/UFRJ, o Orkut no Brasil ainda era oito vezes maior em quantidade de usuários que o Facebook. Mas a revista “IstoÉ Dinheiro”, em reportagem de agosto de 2011, afirma que o Facebook ultrapassou em agosto deste ano o Orkut. A rede social estadunidense haveria passado de 4 milhões e 200 mil usuários em julho de 2009 para mais de 29 milhões em agosto de 2011, enquanto que o Orkut estagnou-se. Estes são números que, segundo a revista, foram computados pelo Ibope, ainda que à época o órgão não os houvesse confirmado.
De acordo com pesquisa do Ibope divulgada em junho de 2008, o Orkut havia recebido no país, no mês de abril daquele ano, cerca de 15 milhões e 200 mil acessos. Para a revista “IstoÉ Dinheiro”, em julho de 2011 o Orkut já tinha 29 milhões de usuários únicos. Em 2010, segundo o site “The Web Information Company”, o Brasil representava 48% do total de usuários da rede social no mundo, ganhando de Índia, com 39.2% e Estados Unidos, logo atrás com apenas 2.2%. Mas no âmbito das redes sociais há outras meninas dos olhos, como “Twitter”, micro-blog de compartilhamento de mensagens instantâneas com 140 caracteres, e “YouTube”, site de troca de vídeos. Nele, há uma grande maioria de vídeos musicais. Por meio de dados divulgados pelo próprio site em novembro de 2011, dos dez vídeos mais acessados de todos os tempos no YouTube, oito são clipes musicais (649.623.894 visualizações deixaram em primeiro lugar a música “Baby”, de Justin Bieber).
Celebridades brasileiras que aderiram ao Twitter possuem milhões de seguidores, como o jornalista William Bonner (2.330.436 seguidores) e o comediante e apresentador Rafinha Bastos (3.557.316 seguidores). Já celebridades internacionais são mais seguidas, como Justin Bieber (14.986.347 seguidores) e Lady Gaga (16.476.643 seguidores), por exemplo. O jornal “O Globo” divulgou em seu site em 30 de novembro de 2011 que o Twitter possui 2 mil e 400 anunciantes, dentre eles as marcas de automóveis Audi, Volkswagen e o estúdio de cinema Paramount. É neste cenário de compartilhamento contínuo, irrestrito e gratuito de músicas, livros, filmes etc. por meio de redes sociais e sites, que o mercado começou a perder sua fatia do bolo e o Estado tomou iniciativas de coerção ao que se chama de mídia livre.
2. Estado e mercado em contraste à lógica da internet
Diante destes números, percebe-se que o Brasil aderiu à internet de maneira ampla e que o brasileiro é grande adepto das redes sociais, principal local de compartilhamento de arquivos e informação. No que diz respeito a este aspecto, deve-se compreender a lógica da economia da cultura ligada ao que se compreende pela função social da internet. De um lado, há o âmbito do concreto controlável pela economia e pelo Estado sob suas ideologias, ao passo que pelo outro há o conceito de internet como um território considerado irrestrito e livre, ainda desconhecido, onde a experimentação tem lugar e o ser humano tem a capacidade de encontrar o território “do livre comércio” (ATTALI, 1997). No que Jean-Pierre Warnier reflete, acerca de política da cultura:
“Estes são os três aspectos de qualquer política cultural: a) desenvolvimento econômico, b) promoção e controle da informação-comunicação, c) socialização dos indivíduos e transmissão do patrimônio cultural e de identidade. A globalização dos fluxos mediáticos e mercantis atinge diretamente as políticas culturais dos grupos, das coletividades e dos Estados, de maneira que, desde o surgimento da mídia, a questão de uma política mundial da cultura foi colocada.” (WARNIER, 2003: 98)
Por sua vez, em artigo publicado no periódico francês “Le Monde”, em agosto de 1997, o economista Jacques Attali considera a internet como um “sétimo continente”:
“No interior deste continente, vazio de habitantes reais, desenvolver-se-á um gigantesco comércio entre os agentes virtuais de uma economia de mercado pura e perfeita, sem intermediário, sem imposto, sem Estado, sem encargos sociais, sem sindicatos, sem partidos políticos, sem greves, sem mínimos sociais. A internet se torna (...) um lugar isento de nossas carências, um espaço livre de nossas heranças, um paraíso do livre comércio, em que se poderá enfim construir um novo homem, limpo, liberado do que o suja e o limita,” (ATTALI, 1997)
O mercado fonográfico foi o que mais perdeu recursos financeiros com o advento das novas tecnologias. Com a possibilidade de encontrar músicas para baixar gratuitamente em sites da internet e também com o compartilhamento de milhares de vídeos em sites como “YouTube” e “Vimeo” contendo videoclipes e apresentações em shows de cantores e artistas, o mercado formal da música – com grandes empresas como Som Livre, Sony Music, Universal Music Group e EMI – encontrou mais uma barreira a seu desenvolvimento, antes reservada ao mercado paralelo da indústria do produto “pirata”, veiculado em bolsões de comércio popular, como Saara (Rio de Janeiro) e 25 de Março (São Paulo). Em entrevista ao portal da internet “Universo Online” (UOL), postada em 25 de fevereiro de 2011, o presidente da empresa de análises Russ Crupnick afirmou que as pessoas estão ouvindo mais música, enquanto pagam menos por ela. Da mesma forma, os especialistas estão deixando de culpar principalmente a pirataria pela diminuição da receita da indústria fonográfica e passam a perceber os serviços gratuitos de “streaming”, que em tradução livre pode ser considerado por “fluxo”, como em sites como o “YouTube”, “MySpace” e “Rhapsody”, como os principais culpados.
“O consumidor médio ouvia 19,7 horas de música por semana em 2010, contra 18,5 em 2009. Mas em 2010 apenas 50% dos consumidores pagaram por música, enquanto que em 2006 o percentual foi de 70%. Perdemos 20 milhões de compradores em apenas cinco anos. No ano passado, a venda de músicas digitais representou 23% do mercado. Nos Estados Unidos, apenas dois milhões de usuários pagam por música digital, enquanto que no mundo este índice girou em torno de 5%.” (CRUPNICK, 2011)
O último relatório, referente aos números do mercado da música de 2009, da Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD), revelou que o total de vendas de digitais no Brasil representou 58.7% do total, em crescimento de mais de 30% em relação a 2008. Já no mercado físico, que envolve tanto CDs quanto DVDs, as vendas totais sofreram uma queda de 6.82% comparada ao ano anterior. Em 2009, foram vendidas 25 milhões e 700 mil unidades. Já em 2008, foram 27 milhões e 600 mil. No entanto, o valor arrecadado foi maior, o que significa que o CD e DVD está mais caro: R$ 315.654.000 (2009) e R$ 312.268.000 (2008). Especificamente, a venda de CDs sofreu uma variação negativa de 2008 para 2009. Se em 2008 foram vendidas 22 milhões e 400 mil unidades, em 2009 o número diminui em 9.32%, indo para 20 milhões e 300 mil. Todos os dados disponíveis no relatório “Mercado de música brasileira 2009” foram valores reportados pelas maiores companhias fonográficas operantes no país à ABPD. Segundo este mesmo relatório, os principais artistas vendedores de CDs e DVDs em 2009 foram o padre Fábio de Melo, os cantores de música sertaneja Zezé di Camargo & Luciano e Victor & Léo, assim como Roberto Carlos, Ivete Sangalo e a apresentadora Xuxa. Paulo Rosa, presidente da Associação, enfatiza o que considera por crescimento do mercado no período, ainda que pequeno, mas enfatiza os desafios, a seguir especificados:
“Uma questão, entretanto, tem que ser imediatamente abordada para o bem do futuro do mercado musical brasileiro: o compartilhamento ilegal de arquivos através de redes p2p (peer-to-peer), bem como a disponibilização ilegal de links para música protegida por direitos autorais principalmente em redes sociais como Orkut. Não se trata aqui de lutar contra milhões de internautas brasileiros, mas sim de encontrar-se o equilíbrio entre o acesso à música e o direito de autores, artistas e produtores de música de serem remunerados de forma justa pelo uso de seu conteúdo na Internet.” (ROSA, 2010)
É neste contexto de perda de mercado e aumento do consumo de conteúdo por meio da internet que se dá o embate destas esferas. Em atitude mais consonante com o mercado, no entanto, a auto-regulação de redes sociais e sites de compartilhamento é algo que vem crescendo com os anos. Como exemplo, tem-se o CD póstumo da cantora inglesa Amy Winehouse, morta em 23 de junho de 2011. Com lançamento previsto oficialmente para 05 de dezembro, faixas de seu álbum (“Girl from Ipanema”, “A song for you” etc.) vazaram na semana anterior no YouTube. Junto de uma reformulação do layout da página do site na noite de 01 de dezembro, o internauta que acessasse o link para a música “A song for you” encontraria apenas um trecho da mesma, sendo em seguida advertido de que se tivesse a intenção de ouvir mais, deveria pagar por isso por meio de outro link disponível para download. Esta iniciativa é inédita no YouTube e o que havia antes era a retirada de determinados conteúdos compartilhados por determinação da gravadora responsável pela música etc. Apesar de tudo, com o grande fluxo de acesso e troca de informações, facilmente se consegue encontrar outros links com a música “A song for you” no site.
Tendo em vista a quantidade significativa de conteúdo disponível no site, fica difícil considerar que poderá haver um controle efetivo de todo o conteúdo que rapidamente surge e desaparece. Da mesma forma, redes sociais como Orkut deletam perfis pornográficos de usuários, assim como o Facebook também pode deletar conteúdos compartilhados por seus frequentadores que considere inapropriados. O Orkut já recebeu advertências do Ministério Público (MP) por não excluir comunidades que façam alusão a nazismo, racismo e homofobia, mas a resposta pode não ser rápida e eficiente, pelo volume e rapidez com que há a chegada e partida de usuários/conteúdo neste meio.
É uma via de mão dupla esta situação de difusão irrestrita de um produto. Segundo Giuseppe Cocco, professor titular da Escola de Serviço Social (ESS) da UFRJ e coordenador do Laboratório Território e Comunicação (LABTeC/UFRJ), as empresas da nova economia precisam acelerar a difusão dos seus produtos, pois quanto maior é a aceleração do lançamento das mercadorias, maior é o seu valor no mercado (MALINI, 2003: 154, in “Capitalismo cognitivo”). Como argumenta Malini,
“Mas, para isto ocorrer, a condição é a desaceleração da socialização, ou seja, que a maioria das pessoas não consuma o produto na mesma velocidade do seu upgrade. Justamente (a brecha reside) na socialização – imbuída por uma lógica cooperativa pública – desrespeita-se a propriedade do produto intelectual por meio da difusão das cópias “ilegais”, reduzindo valor dos produtos, mas não sua riqueza, na medida em que muitos desses produtos são as bases para se criarem outros, que por sua vez seriam francamente permitidos, por meio de um método primário da socialização do trabalho, marcado pela abundância de trocas e doações (copy left) e não pela escassez do conhecimento (copyright).” (citado por Fábio Malini no capítulo “A informação como arma política: do confinamento ao descontrole”, do livro “Capitalismo cognitivo: trabalho, redes e inovação” [GALVÃO; SILVA; COCCO, 2003: 154])
Ao se compreender que a internet é a interligação entre os computadores ao redor do mundo, é de se questionar a validade de leis e regulações nacionais para uma questão, portanto, global. Neste contexto, os indivíduos e as empresas competiriam para fornecer bens e serviços ao mercado. Em relação ao conteúdo consumido através da internet, o bem imaterial ali fornecido recebe uma audiência maior e seu efeito sobre ela é mais difícil de ser mensurado, pelo intenso devir (DELEUZE) característico do meio. A propriedade intelectual é tida como outra mercadoria qualquer, atendo-se ao contexto da indústria cultural (ADORNO e HORKHEIMER). “Contudo, ao mesmo tempo, os vendedores de informação sempre quiseram evitar transferir plenamente seus produtos a seus clientes.” (BARBROOK, 2003: 134)
3. Regulação e punição: leis históricas e AI-5 digital
De acordo com a professora da ECO/UFRJ Suzy dos Santos, em aula ministrada em 30 de agosto de 2011, um dos conceitos de regulação é a da política administrativa pública de uma atividade privada. Da mesma forma, regulação é:
“A vigilância, de acordo com a regra, da eleição de atividades de um sujeito e provém de uma entidade que não é parte direta nem está envolvida na dita atividade. É necessário especificar: 1) as atividades do regulador e regulado; 2) a natureza da atividade; 3) as razões fundamentais da regulação; 4) os meios específicos de vigilância empregados pelo regulador.” (MITNICK, 1980)
O maior exemplo deste mecanismo no Brasil, em relação ao que se é produzido na internet, é o projeto de lei (PL) 84/99, apresentado em 24 de fevereiro de 1999, pelo deputado Luiz Piauhylino (PSDB-PE). Segundo a Câmara dos Deputados, este projeto dispõe sobre os “crimes” cometidos na área de informática, suas penalidades e outras providências. Em uma fase inicial, caracterizaria como crime informático ou virtual os ataques praticados por “hackers” ou “crackers”, em especial as alterações de “home pages” e a utilização indevida de senhas. Atualmente, o projeto de lei aguarda parecer na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e está pronto para pauta na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) e Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO). Alterado em 2001 por parecer do então deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG) na CCTCI da Câmara, os crimes previstos no substituto do Senado ao PL 84/99 são:
1) Acesso não autorizado a sistema informatizado protegido por restrição de acesso;
2) Destruição, inutilização, deterioração de coisa alheia ou dado eletrônico alheio;
3) Inserção ou difusão de código malicioso ou vírus em sistema informatizado;
4) Obtenção, transferência ou fornecimento não autorizado de dado ou informação;
5) Divulgação, utilização, comercialização e disponibilização de dados e de informações pessoais contidas em sistema informatizado com finalidade distinta da que motivou seu registro;
6) Estelionato eletrônico (difundir código malicioso para facilitar ou permitir acesso indevido a sistema informatizado);
7) Atentado contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força, calor, informação, telecomunicação ou outro serviço de utilidade pública;
8) Interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou sistemas informatizados;
9) Falsificar, no todo ou em parte, dado eletrônico ou documento público ou particular;
10) As penas vão de reclusão de um a seis anos, conforme o crime, mais multa.
Por meio da criminalização de quem divulgar, utilizar ou disponibilizar conteúdo na internet, o projeto de lei passou a ser conhecido nas redes sociais e nos veículos de comunicação por “Lei Azeredo” ou “AI-5 digital”, em referência ao Ato Institucional número 5, de dezembro de 1968, que cerceava as liberdades individuais, durante o período do regime militar (1964-1985). O projeto de lei ainda não foi implementado no país porque ainda falta ser aprovado por certas instâncias legislativas e, principalmente, necessita da aprovação final da presidente da República Dilma Rousseff.
Criado há doze anos, o projeto de lei vem recebendo críticas por parte dos usuários da web, que o apelidaram, e a mídia fez matérias sobre o assunto que ressaltam as alcunhas pejorativas recebidas por ele, pautadas pelo discurso de especialistas que afirmam ser esta iniciativa limitada e com intenção irreal de punição. Parlamentares como Luiza Erundina, do Partido Socialista Brasileiro de São Paulo (PSB-SP), Emiliano José, do Partido dos Trabalhadores da Bahia (PT-BA) e Jorge Bittar (PT-RJ), fizeram pedidos da realização de seminários e audiências públicas sobre o projeto, para que ele possa ser mais bem compreendido e assimilado. A partir do conceito de Antonio Gramsci de hegemonia e contra-hegemonia, tem-se o Estado como aparelho ideológico e as grandes empresas da indústria cultural como aparelhos privados de hegemonia, ao passo que os consumidores/produtores do conteúdo da web como, também, empreendedores de um sistema contra-hegemônico.
Historicamente, no mundo conhece-se o caso emblemático do Napster, The Pirate Bay e Convenção de Budapeste (2001) como exemplos de regulação da internet. Lançado em 1999 com o intuito de facilitar o compartilhamento de músicas em formato “mp3”, o Napster sofreu processos judiciais da cantora Madonna e da banda Metallica (2000) e, em julho de 2001, a justiça estadunidense proibiu todos os downloads de arquivo do site. No entanto, em 2002 foi comprado por US$ 5 milhões e 200 mil. Em 2009, os fundadores do site sueco The Pirate Bay foram considerados culpados das acusações de violação de leis de direitos autorais e condenados pela justiça sueca a pagar US$ 3 milhões e 550 mil de indenização a empresas como Sony e Warner. Já a Convenção de Budapeste teve a adesão de 43 países, como Estados Unidos, Canadá e Japão para a regulação jurídica da rede. O Brasil não faz parte desta convenção e ela não é muito lembrada dez anos depois de seu acontecimento.
Ao se voltar à questão da PL 84/99, ela vem recebendo atenção extremamente pontual da mídia formal, ainda que esta destaque de certa forma o papel peculiar do projeto. A última vez em que o projeto esteve na mídia impressa com algum destaque foi em outubro de 2011, quando da possibilidade de ele ser votado. Giuseppe Cocco, em entrevista pelo Twitter em 25 de novembro de 2011, afirmou concordar com o apelido de “AI-5 digital”. Já na internet, o debate permanece intenso, porém muito segmentado. Em petição on-line – que, segundo o site, possui 165 mil 416 assinaturas –, André Lemos (professor associado da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia [UFBA]), Sérgio Amadeu da Silveira (professor do mestrado da Faculdade Cásper Líbero) e João Carlos Rebello Caribé (publicitário e consultor em mídias sociais) afirmam que,
“Um projeto de Lei do Senado brasileiro quer bloquear as práticas criativas e atacar a Internet, enrijecendo todas as convenções do direito autoral. (...) É o reino da suspeita, do medo e da quebra da neutralidade da rede. Caso o projeto Substitutivo do Senador Azeredo seja aprovado, milhares de internautas serão transformados, de um dia para outro, em criminosos. Dezenas de atividades criativas serão consideradas criminosas pelo artigo 285-B do projeto em questão. Esse projeto é uma séria ameaça à diversidade da rede, às possibilidades recombinantes, além de instaurar o medo e a vigilância.” (LEMOS; SILVEIRA; CARIBÉ: 2008)
4. Informação e cultura de pouco para poucos
Analisar o discurso do mercado da indústria cultural – principalmente, o mercado fonográfico – é entendê-lo por meio de uma visão apocalíptica (ECO, 1979). Ver como ameaça o internauta é ver como ameaça a todos, já que é muito difícil se supor que o empresário que condena o compartilhamento na rede nunca na vida tenha se beneficiado dela. O livro fornecido para download na internet, o filme disponível no site, a música compartilhada etc. são instrumentos culturais que poderiam nunca ter sido consumidos por uma audiência determinada se este conteúdo na internet não estivesse disponível gratuitamente, ou quase gratuitamente, já que internet domiciliar e computador pessoal devem ser pagos. O estudante e, também, o professor e pesquisador universitário, poderiam não sobreviver caso a internet não dispusesse livros de autores como Michel Foucault, Theodor Adorno, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Roland Barthes etc., apenas para se ater ao campo das ciências humanas. Nesta mesma lógica – e com a visão da Lei Azeredo, aplica-se neste caso – a copiadora em faculdades não seria eticamente possível.
O impacto causado por uma música cantada por Aretha Franklin aos 14 anos de idade em uma Igreja Batista dos Estados Unidos é muito mais uma questão cultural de libertação do que meramente financeira. Caso não houvesse algum aparelho que captasse o som, apenas os crentes da Igreja naquele momento poderiam ouvi-la. Existindo o CD (compact disc), apenas as pessoas que soubessem da existência dele, soubessem onde ele estava sendo vendido e, por fim, se tivessem condições financeiras para comprá-lo poderiam consumi-lo. Com o “YouTube” (957 referências à música, sendo os dois links mais acessados com 341.317 e 87.875 visualizações), com as ferramentas para download, pode-se falar na ideia de que uma massa, uma gente, uma audiência quase global pode conhecer “Precious Lord”. Clicando-se em um link, depois em outro, sendo direcionado a outro, o internauta tem a capacidade de descobrir coisas que ele não tinha a intenção de descobrir e, com isso, se interessar por algo que ela de início não se interessaria. Portanto, conhecer uma música rara da maior cantora do século XX, segundo a revista “Rolling Stone”, não é algo mais restrito ao crítico musical mais letrado. A informação, resguardado seus poréns, está mais acessível. Falar de informação mais acessível cabe à internet, pois ela é virtualmente infinita e com toda a audiência dentro dela. Já falar de democratização na televisão, o meio mais “democrático”, pois em quase todos os lares brasileiros, é em certa medida questionável.
Cria-se, com a visão da obra de arte em uma era de reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1955), o conceito fetichista da autenticidade (WARNIER, 1999: 153 e 154). Os críticos, muito críticos, mantém certa idolatria pelo inacessível que ele consegue acessar, mas quando um público mais amplo tem a possibilidade de consumir o bem cultural que antes não teria, esta informação passa a ser descentralizada e existir para o mundo.
A partir deste discurso, o que se está em questão são alguns aspectos: a) Informação é libertação, b) Libertação é não dominação, c) Descentralizar o produtor e o distribuidor é descentralizar os comandos e, portanto, por em questão a tônica do capitalismo imaterial. Eduardo Azeredo, ao incluir certos termos no projeto de lei 84/99, compreendeu o mecanismo da internet da mesma forma que compreende o mecanismo da pirataria, com o porém de que a pirataria certas vezes está por trás de atividades criminosas, de entorpecentes etc. Este projeto foi a alternativa do Estado de atender ao mercado, tendo em vista que a própria internet não solucionaria seus problemas. Ainda não foi posto em prática por se tratar de internet e de opinião pública posta constantemente em debate. “Considerando que não há um ponto de apoio tecnológico para proteger o direito autoral, as empresas de mídia só poderão preservar sua riqueza de uma maneira: o poder do Estado.” (BARBROOK, 2003: 142)
O discurso do direito autoral que afirma que o autor deve receber pelo que produziu é legítimo. Mas é verdadeiro com alguns vieses. O grande ganhador deste negócio são as gravadoras, as produtoras, as editoras. O músico, o ator, o escritor é apenas mais um dentro do sistema e apenas alguns poucos são ricos e sobrevivem apenas de direitos autorais e isso não é de hoje. “Mais cedo ou mais tarde, o Estado vai abandonar suas tentativas de impor censura econômica à rede. Mesmo as empresas de mídia acabarão finalmente tendo que aceitar o fim do fordismo na informação.” (BARBROOK, 2003: 148).
Referências bibliográficas:
- BARBROOK, Richard. A regulamentação da liberdade: liberdade de expressão, liberdade de comércio e liberdade de dádiva na rede in Capitalismo cognitivo: trabalho, redes e inovação (organização COCCO, Giuseppe; GALVÃO, Alexander Patez; SILVA, Gerardo) Editora DP&A, 2003;
- MALINI, FÁBIO. A informação como arma política: do confinamento ao descontrole in ______________________________________________;
- ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. Editora Perspectiva, 1979;
- WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização da cultura. Editora da Universidade do Sagrado Coração (EDUSC), 1999;
- SANTOS, Suzy dos. Disciplina “Comunicação, Sociedade e Política II”. Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2011;
- MITNICK, Barry. The Political Economy of Regulation. 1980;
- BENTES, Ivana. Disciplina “A riqueza da pobreza/Conexões Universitárias”. ECO/UFRJ, 2011; 8. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, 1955;
- AMARAL, Marcio Tavares d’. http://youtu.be/wWdVLKV3L_o, 2010 (acessado em 01/12/2011);
- CARIBÉ, João Carlos Rebello; LEMOS, André; SILVEIRA, Sérgio Amadeu. http://migre.me/6iSza (acessado em 01/12/2011), 2008;
- ROSA, Paulo. http://migre.me/6iSDW, 2010 (acessado em 01/12/2011);
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