Este texto tem por intenção articular e fazer dialogar os trabalhos da pintora mexicana Frida Kahlo, “O veado ferido”, de 1946, e do pintor recifense Ramonn Vieitez, “When somebody loved me; The wounded deer”, de 2012. Portanto, vamos ao texto.
Frida
Kahlo pintou, em 1946, um quadro chamado “O veado ferido”, ou também conhecido
por outros dois títulos: “O veadinho” e “Eu sou um pobre veadinho”. Quase os
treze títulos de “A hora da estrela” (1976), de Clarice Lispector, ou os treze
tiros que o bandido Mineirinho levou, nos anos 1970, segundo a escritora
citada, quando na verdade apenas um teria bastado para matá-lo. Expoente
máximo, hoje, da pintura mexicana, Frida Kahlo, neste quadro, expõe-se da
seguinte maneira: um veado, com cabeça de Frida e galhos de animal,
transpassado por nove flechas, que o fazem sangrar. Em uma floresta, este veado
está encurralado por várias árvores, que o impediriam de fugir. Ao fundo, um
mar, profundo, que não dá perspectivas de fuga, mas sim de isolamento. Um raio
vem do céu e um galho de árvore está caído perto do veado, conferindo à pintura
dramaticidade. O rosto de Frida, mulher-veado, olha-nos, impassível,
mortificado.
Nascida
no começo do século XX, em 1907, em uma cidade próxima à capital mexicana, Frida
foi considerada atípica, desde o início da vida. Vestia-se, adolescente, com
roupas de homem, e saía nas fotografias de família desta maneira, performática.
Mas não era lésbica stricto sensu, em princípio, como poderia supor os olhares
preconceituosos. Apesar de ter se relacionado ao longo da vida com mulheres,
manteve-se apaixonada por um homem, alguns homens, mais principalmente apenas
um homem: Diego Rivera. Vestindo-se, então, com roupas masculinas e já tendo,
por volta dos seis anos, sofrido as drásticas consequências físicas de uma
poliomielite, Frida entra na vida adulta desejando afirmar-se enquanto artista.
Começa aos dezesseis anos a estudar na Escola Nacional Preparatória do Distrito
Federal do México, predominada por figuras masculinas, masculinizadas e
masculinizantes e, poucos anos depois, sofre um acidente que irá definir ainda
mais suas limitações diante da vida física, já definhando o definhado corpo que
na infância havia sido maculado pela poliomielite.
Estava
em um ônibus, na Cidade do México, em 1925, ao lado de um dos primeiros
namorados, quando o veículo é atingido por um bonde. Com o choque violento, o
metal de um dos meios de transporte perfura o corpo de Frida e a arrasta ao
longo da praça em que se encontrava. Com licença poética, um dos comentadores
do acidente frisa que os gritos de Frida abafaram o barulho do acidente e que,
arrastada pelo maquinário, a artista teve suas roupas arrancadas e, nua, fica
estendida no chão, agonizando. As cinzas provenientes da colisão a teriam
coberto como um manto.
Entre
a vida e a morte, a mulher sobrevive e casa-se com o grande amor de sua vida, o
também pintor Diego Rivera. No entanto, não sem pouco desgosto: um ano de
matrimônio e seu esposo já a traía: com a irmã, de quem Frida cuidava dos
filhos. Convalescente quase que vinte e quatro horas por dia, ela mantém-se
casada e viaja com Diego para os Estados Unidos, onde ele acumula fama como
pintor de enormes murais com teor político, que remetiam à Revolução Mexicana
(1910) e o direito à luta proletária. É neste período que Frida começa a
vestir-se com trajes típicos mexicanos. Sem conseguir manter uma gravidez, a
pintora descobre-se incapaz de ser mãe, por conta de sua frágil condição de
saúde. É, então, a partir desta informação, que Frida passa a pintar-se.
Objetivamente: coloca-se em quadro. É o rosto de Frida que existe. Acusada de
ser apolítica, em relação feita evidentemente em comparação a seu marido, Frida
demorou muito para ser considerada uma artista engajada, em um tempo onde
envolver-se politicamente em uma causa e nisso imbricar sua obra era condição
obrigatória. Falar de si não tinha valor. Entender o falar de si apenas como um
falar de si já é não entender o processo artístico do pôr-se em quadro, afinal.
A arte autobiográfica não era considerada arte política. Não se enxergava como
político o fato de uma mulher oprimida, doente, traída, sofrida etc.,
pintar-se. Quase como não considerou-se relevante literariamente os primeiros
discursos testemunhais das vítimas de Aids dos anos 1980 – é baixa literatura,
diziam: apenas uma narrativa sem vigor e riqueza literárias. Quase uma
novelinha barata. O importante deveria ser a obra fria e consistente. Frida
estava denunciando algo em seus quadros. Denúncia esta que quando feita não foi
compreendida. Hoje, corre-se atrás do tempo perdido.
Esta
mulher, considerada hoje a maior pintora do século XX, teve apenas uma coletiva
em seu país. Em 1953, apenas um ano antes de morrer. Já doente – sem filhos e
com uma perna amputada – teve que ser levada na cama para a galeria de arte,
onde seus quadros estavam expostos. Literalmente na cama ficou observando e
recebendo as pessoas que iam ver suas pinturas. Frida tentou suicídio várias
vezes ao longo da vida e foi encontrada morta em casa a 13 de julho de 1954.
Hoje conhecida por seus autorretratos, Frida foi retratada pela última vez por
Diego, quando estava com seu corpo sendo cremado.
É
neste contexto de dor, sofrimento, autoafirmação, que ela pintou-se enquanto um
veado ferido. Ela, ferida. Ela, um animal acanhado em um período onde não a
compreendiam artisticamente e enquanto mulher. Tal qual São Sebastião, flechada
e dolorida. Os quadros de Frida revelam opressão e um desejo de desoprimir-se. Apenas
renegada como subproduto, hoje celebrada como arte.
Então,
a partir deste quadro, “O veado ferido”, “O veadinho”, “Eu sou um pobre
veadinho” (veado com rosto de Frida-mulher, nove vezes flechado – flechado o
animal vulnerável, flechado à la São Sebastião –, quem a flecha não sabemos (é
o mal polimorfo e invisível), com sangue, encurralado na floresta, com trovão e
galho de árvore a dramatizar), que o artista brasileiro Ramonn Vieitez, nascido
em 1991 no Recife, pinta em 2012 o quadro “When somebody loved me; The wounded
deer” (em tradução livre, “Quando alguém me amou; O veado ferido”. Que diálogos
colocam-se em cena nesta intertextualidade?
Pintado
no que pode-se dizer ser a mesma floresta, também com um mar ao fundo, mas sem
raio, e igualmente com um galho no chão, ainda que não tão destacado como em
Frida, o quadro de Vieitez revela o que um dia foi uma árvore, bem no centro,
onde no quadro de Frida centralizava-se o veado ferido. Esta árvore é agora
apenas uma base cortada e em cima dessa base senta-se um homem nu, como é nu o
veado-animal, com seu sexo coberto por suas pernas, mas sua cabeça coroada por
uma galhada que é a de veado – mesma cabeça de Frida, mas agora a cabeça de um
artista viado corporificada no corpo de um homem-veado. Antes havia um
animal-veado, mas agora no quadro recifense percebe-se um animal veado
transformado em um rapaz homossexual, um homem viado. Homem este nu, com seu
sexo coberto, mas seu coração extremamente exposto e vulnerável, ensanguentado,
apertado por entre os dedos de alguém que deseja expô-lo e protegê-lo do mal
polimorfo e invisível. É um coração vulnerável, um homem vulnerável – o corpo é
do artista, a galhada está na cabeça do artista, o artista é o veado ferido – e
exposto em sacrifício ao amor, “Quando alguém me amou”, mas também à exposição
vulnerável e sofrida, “O veado ferido”. O rosto de Frida, o rosto de Ramonn.
Rosto não no sentido plástico de rosto, mas no sentido do sofrimento do rosto
do outro, no rosto estrangeiro, calcado por Emmanuel Levinás. Veado flechado de
Frida remetido às flechadas em São Sebastião, santo esse muito associado ao
movimento homossexual, por estar seu corpo desnudo, másculo, em sofrimento e
ensanguentado: São Sebastião morrendo é cada homossexual sendo morto.
Ramonn
Vieitez teve a perspicácia de transformar-se no veado de Frida Kahlo, para
revelar-se o real viado dessa sociedade, aquele que entrega-se à e que é
passível à violência do outro: violência do amor e violência da dor. As dores
da mulher vulnerável, as dores do homossexual vulnerável. Frida Kahlo um dia
renegada, mas hoje cânone; Ramonn Vieitez retrabalhando essa cânone
anti-canônico e reafirmando-se na homossexualidade. “When somebody loved me;
The wounded deer” é a capa do catálogo da mostra “New Queer Cinema: cinema,
sexualidade e política”, que esteve ao longo do ano de 2015 em diversas
capitais do Brasil, exibindo filmes queers, do movimento gay de cinema que
emergiu principalmente como reivindicação política e social frente à epidemia
de Aids que dizimou em genocídio milhares de homossexuais.
P.S.: Mataram, dia 2 de julho de 2016, um homossexual na UFRJ, estudante da UFRJ.
P.S.: Mataram, dia 2 de julho de 2016, um homossexual na UFRJ, estudante da UFRJ.
Bibliografia,
filmografia e “quadrografia”
KAHLO, Frida. O veado ferido, O veadinho, Eu sou um pobre veadinho. Cidade do
México: 1946;
LISPECTOR, Clarice. Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner para o programa
Panorama. São Paulo: TV Cultura, 1977;
STECHLER, Amy. The life and times of Frida Kahlo. Washington DC: Daylight Films e
WETA, 2005;
VIEITEZ, Ramonn. When somebody loved me; The wounded deer. Recife: 2012;
NAGIME, Mateus; MURARI, Lucas (orgs.). New Queer Cinema: cinema, sexualidade e
política (catálogo). Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro, Salvador, São
Paulo: Caixa Cultural, 2015.
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