Caetano Veloso, em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, em 1996, falando sobre os regimes comunistas do século XX: “(...) isso pra mim é uma coisa intolerável (...) sobretudo a ideia que havia em torno de uma questão pra mim que é central, que é a questão da homossexualidade. Isso, nesses países, sempre parecia muito mal posto. Eu me sentia, pessoalmente, muito mal diante da realidade desses países, desde muito tempo”.
“O beijo doa amantes destrói a sociedade” (Maurice Blanchot – A comunidade inconfessável).
Este artigo tem por
objetivo analisar os trabalhos do escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990)
diante de uma perspectiva de cisão do sujeito pós-moderno em uma realidade
subdesenvolvida e ditatorial, onde coloca-se em jogo a manipulação do
homem político e sexual, que transborda vida em suas narrativas.
Também deseja-se vislumbrar a questão das mediações culturais entre
os países para a disseminação da obra do autor.
Sendo assim, é
necessário, em primeiro lugar, fazer um apanhado teórico que diferencia de
forma eficiente os significados de uma escrita autobiográfica e de uma
escrita auficcional. Autor homossexual
e dissidente do regime de Fidel Castro, tendo escrito mais de uma
dezena de obras, Arenas foi (re)conhecido,
de forma mais explícita, por seu último livro, suas
memórias, “Antes que anoiteça”, publicado em 1992, dois anos após seu
suicídio nos EUA, em consequência de ser portador do vírus da Aids. Esta é
uma autobiografia, o que significa que exige dois pactos entre
escritor-leitor. Primeiro, o “pacto autobiográfico”, que parte do simples
pressuposto de que o leitor deve acreditar que o que se está lendo é
verdadeiro: “o autobiógrafo pede ao leitor que confie nele, que o creia, porque
se compromete a lhe contar a verdade de sua vida” (ALBERCA apud LEJEUNE, 2009,
1). Arenas, neste texto, revela como o regime comunista dos irmãos
Castro prendeu e torturou de forma deliberada os homossexuais e faz um apanhado
geral de toda a vida de perseguição do escritor, até o exílio nos Estados
Unidos nos anos 1980, tendo sido finalizado apenas quatro meses
antes de seu suicídio, em dezembro de 1990.
O segundo e último
pacto de uma autobiografia é o “pacto referencial”, ou seja, o pacto de
verossimilhança do texto. Arenas está, em seus relatos, nos pedindo que
confie em suas estórias, pois verdadeiras, e também as relata de modo que
possamos crer que ela seja real, com fatos que saibamos verdadeiros e
sem nevoeiros em meio à narrativa. Obra que representa uma quebra da
possibilidade de uma escrita autobiográfica é o livro “Fragmentos. Memórias de
uma infância: 1939-1948”, do suíço Binjamin Wilkomirski,
publicado em 1995, em que ele diz revelar sua infância no campo de concentração
durante a Segunda Guerra Mundial, no que se considera por “literatura de
testemunho”, “literatura da Shoah” (ligada
aos judeus, mas lembrando que homossexuais também foram ao campo de
concentração nazista). No entanto, um jornalista descobriu que o autor não
era judeu e nem foi para um campo, em razão de uma falta de verossimilhança do
texto, que dizia que ele havia passado anos sem registro de nascimento na
Suíça, um país que preza pela organização de seu Estado. O jornalista
também descobriu que Binjamin era
um nome falso (SELIGMANN-SILVA, 2005, 107-118).
Já uma
escrita autoficcional ocorre
quando o escrito trabalha com o jogo entre verdadeiro e falso. O
leitor fica no limbo, mas sabendo que o bom livro é aquele que, tal
qual Rainer Maria Rilke afirma,
“transborda vida”. Arenas, antes de relatar em “Antes que anoiteça” sua vida de
forma mais “verdadeira”, proporcionou um vasto repertório de como é viver como
um homossexual em Cuba e nos
Estados Unidos por meio de diversos de seus relatos (quase todos os seus
relatos), de como é a vida em um sistema comunista e capitalista, e de como é
não sentir-se pertencente a lugar nenhum. Em “Arturo, a estrela mais
brilhante”, Arenas relata como é a vida de um homossexual em um campo de
trabalho forçado em Cuba. O filme “Conduta imprópria” (1984), sobre a vida de
gays na ilha, dá um bom retrato da situação, ao fazer um paralelo entre os
campos cubanos (“O trabalho faz o homem”) e os campos nazistas (“O trabalho
liberta”), tendo como ponto de partida o fato de o regime castrista ter
perseguido de forma deliberada os homossexuais. “Arturo, a estrela mais brilhante” é um dos exemplos
mais eficazes para demonstrar o caráter da obra autoficcional de Arenas, pois expõe com uma subjetividade e
parcialidade tocante como é estar em uma perspectiva repressora e faz com que o
leitor se pergunte, a todo o momento, o que está a ler, se uma vida ou uma
obra, se uma mentira ou uma verdade, mas ao fim fica a certeza de que, como
Arenas revelou em sua última entrevista, que “sempre escrevemos o livro de
nossa vida”. A questão do sujeito a frente de uma narrativa, do eu a
frente do nós, está intrinsecamente relacionada à questão do
sujeito na realidade pós-moderna: “Esta estrutura híbrida (autoficção)
e o conseguinte pacto de leitura ambíguo convertem a autoficção em
uma metáfora da atual deriva do sujeito e da forte mutação que este
experimentou no século passado” (ALBERCA, 2009, 5).
É perigoso
colocar toda a narrativa do eu em uma cesta autobiográfica, como o faz
Elizabeth Duque-Estrada:
“Observa-se atualmente uma explosão enfurecida de narrativas autobiográficas –
escritas/encenadas, ficcionalizadas ou
não” (DUQUE-ESTRADA, 2009, 153).
Quando Arenas escreve a história de Servando Teresa de Mier, que supostamente
deveria contar a vida do religioso tal qual ela seria (biografia), o autor não
afirma que está escrevendo uma biografia-ficcionalizada, pois isso já faria com
que a história deixasse de ser por si só e apenas biográfica, pois se
biográfica seria desprovida de ficção. Poderíamos também considerar o livro
sobre a vida de Servando uma autoficção póstuma do próprio religioso dos anos
1700 ou uma autoficção do autor cubano dos anos 1900, ao passo que Arenas
destaca: “O mais útil foi descobrir que tu e eu somos a mesma pessoa” (ARENAS,
2000, 21) e “Não aparecerás (Servando)
neste livro meu (e teu) como homem imaculado” (ARENAS, 2000, 22)? Quando há o
que Duque-Estrada chama de “autobiografia ficcionalizadas”, creio ser melhor
frisar o que o próprio Arenas afirma: “Esta é a vida de Fr. Servando Teresa de
Mier, tal qual foi, tal qual pôde ser, tal qual eu teria gostado de que tivesse
sido. Mais que romance histórico ou biográfico, pretende ser, simplesmente,
romance” (ARENAS, 2000, 13).
É preciso
conseguir separar os registros autoficcionais e autobiográficos, conceituando-os, sabendo
apesar de tudo que a
literatura – principalmente a partir do final do século XIX e começo do século
XX, com Rainer Maria Rilke, Antonin Artaud,
Franz Kafka etc. – é um eterno devir narrativo do eu e
do não-eu, como afirma Pucheu sobre a obra de Kafka: “Da escrita à vida e
da vida à escrita, a via é certamente de mão dupla, ou, mais do que isso, de
encruzilhada, havendo tanto as muitas intensidades do vivido na escrita quanto
as da escrita no vivido” (PUCHEU, 2015, 23); e como afirma Arenas sobre sua
própria obra:
“Quem, por truculências do acaso, ler algum de meus
livros não encontrará nele uma contradição, e sim várias; não um tom, e sim
muitos; não uma linha, e sim vários círculos. Por isso não creio que meus
romances possam ser lidos como história de acontecimentos concatenados, senão
como uma onda que se expande, volta, se ensoberbece, retorna, mais tênue,
reavivada, incessante, em meio a situações tão extremas que de tão intoleráveis
se tornam por vezes libertadoras” (ARENAS, 2000, 18-19).
Arenas teve, até
sua morte, apenas uma obra publicada em Cuba, "Celestino antes del alba"
(que conta a vida hostil de
um personagem na Cuba rural), primeiro
livro, escrito em 1964, do que posteriormente seria considerada sua "Pentagonia",
reunião de cinco obras (“Celestino antes del alba”, “El palacio de las
blanquísimas mofetas”, “Outra vez el mar”, “El color del verano” e “El asalto”).
Segundo lugar no concurso da União Nacional de Escritores e Artistas Cubanos (Uneac),
em 1965, o livro foi apenas publicado em 1967 e não ganhou o primeiro
lugar por ser considerado desprovido de "conteúdo político" e ser
apenas obra fantasiosa. Das obras publicadas deste concurso, a de Arenas contou
com apenas 2 mil exemplares, considerado pouco para a época em Cuba (MISKULIN,
2009, 195). Já em 1966, o autor enviou para a Uneac seu
segundo romance, "O mundo alucinante", que conta a história de um
religioso mexicano que, no século XVIII, percorreu o mundo e foi perseguido
politicamente por suas ideias:
"Apesar de referir-se a um período histórico bem distanciado, 'El mundo
alucinante' tinha um conteúdo crítico bastante evidente em relação ao
Estado" (MISKULIN, 2009, 196). O livro acabou apenas recebendo
uma menção honrosa (que, segundo Miskulin, facultava a publicação ou não da
obra) e não o prêmio, que em 1966 não foi dado a ninguém. No entanto, de acordo
com o relato de Arenas, “O mundo alucinante” saiu de Cuba em 1967 contrabandeado
pelo pintor cubano Jorge Camacho e levado para Paris. Camacho viera para a ilha
expor em um evento internacional de pintura, em 1967, e Arenas alega que
“quando foi embora”, o pintor levara a obra. Entende-se que Camacho só
permaneceu em Cuba para a exposição, o que faz-se crer que já em 1967 ele
partira. O livro recebeu tradução pelas Editions du Seuil e, segundo Arenas, os
editores quiseram publicá-lo “imediatamente”. De acordo com artigo de María
Guadalupe Silva, “O mundo...” foi publicado na França no ano seguinte, em 1968
e, em 1969, chegou ao México e à Buenos Aires (SILVA, 2011). Arenas conta
também que publicara, no Uruguai, o livro de contos “Con los ojos cerrados”
(ARENAS, 2009, 152-153). Este último livro foi publicado em 1972, no Uruguai,
mas apenas nos anos 1980 já nos Estados Unidos que o escritor teve conhecimento
de sua publicação (MINSKULIN, 2009, 201). Em 1968, de acordo com Enrico Santí,
"Con los ojos...” teria recebido novamente menção honrosa da Uneac, mas
não sendo publicada na ilha (MINSKULIN, 2009, 206-207). Segundo Arenas em sua
autobiografia, a não premiação de “O mundo alucinante” em Cuba é
culpa da pressão de Alejo Carpentier, membro do júri. Em introdução
ao início de “O mundo...”, Arenas afirma: “Estás, querido Servando, como o que
és: uma das figuras mais importantes (e infelizmente quase desconhecida) da
história literária e política da América. Um homem formidável. E isso é
suficiente para que alguns considerarem que este romance deve ser censurado”
(ARENAS, 2000, 22). "Arenas foi informado que sua obra 'El mundo
alucinante' tinha 'passagens eróticas' e por isto não poderia ser publicado em
Cuba" (MINSKULIN,
2009, 197). Segundo o crítico literário Emir Rodríguez Monegal,
em crítica sobre a obra, "as passagens homossexuais do livro fizeram com
que Arenas fosse mal visto pela burocracia cubana. Entretanto, (...) mais
subversivo na obra foi sua crítica às revoluções, ambientada nas lutas pela
independência do México"
(MONEGAL apud MISKULIN, 2009, 197).
“O mundo...”, no
entanto, ganhou na França, em 1969, o prêmio de melhor livro
estrangeiro junto com, nada menos e nada mais, “Cem anos de solidão”, de
Gabriel García Márquez, publicado na Argentina em 1967 e considerado a maior
obra-prima da literatura latinoamericana do
século XX e sinônimo de realismo mágico das letras hispanoamericanas.
Este é um fato divisor de águas para se compreender as questões do
subdesenvolvimento social das minorias e da capacidade de autonomia do ser
humano. A trajetória de García Márquez o levou a ganhar o Nobel de
Literatura, em 1982, fato que Arenas não chegou nem perto, mas não
porque sua obra fosse ruim, mas por definitivamente ele estar inserido em uma
perspectiva de renegar o país de sua origem e, principalmente, renegar as
finalidades pelas quais Deus o fez homem, que seria relacionar-se com
mulheres. García Márquez, de obra unicamente heteronormativa, nunca esteve
na marginalidade. Ao contrário, amigou-se ao poder, principalmente de Fidel
Castro e, ao contrário do que amigar-se com Fidel pode supor, frequentou com
certa facilidade pelos meios literários europeus e americanos. Deve-se
considerar a visibilidade ou invisibilidade de Arenas tendo sempre em
vista o homossexual. Após a publicação e prêmio no exterior de sua
obra, Arenas foi considerado escritor maldito em Cuba e ele não
estava nem relacionado na lista de escritores da Casa de las Américas,
espécie de instituto cubano que agregava a cultura daquele país. Nos anos 1970,
caso se procurasse por Arenas em seu país, não seria possível encontra-lo, já
que não se constava nenhum registro dele, nem profissional e nem social.
Encarcerado ao lado de presos comuns no presídio de El Morro, Arenas foi
torturado e teve muitas de suas obras ao longo dos anos 1960-1970 destruídas.
Por exemplo, o livro “Otra vez el mar”
foi reescrito quatro vezes. Arenas também necessitou escrever segundo o
intermédio de terceiros. Quando viu que sua obra não seria publicada em seu
país – posteriormente, chegou a proibir que algum livro seu fosse lançado em
Cuba até a morte de Fidel Castro – passou a guardar seus originais em
frestas de telhas e a enviar, por meio do casal de amigos Margarita e Jorge
Camacho, sua obra para o exterior, onde foi publicada, principalmente na França
e Espanha. A voz de Arenas foi dita, durante principalmente os anos 1970 (antes
de fugir para os EUA), não por meio dele, mas por intermédio de terceiros, já
que a ditadura o calou.
A marginalização
de Arenas era tão extrema que para ele seria impossível não fazer de seu
trabalho de escrita um trabalho autoficcional, onde o sujeito homossexual (tal
como Jean Genet) e
político fossem evidentes. Falando sobre si e em seu próprio nome – ainda que
por intermédio, durante certo tempo, de terceiros – Arenas conseguiu
exilar-se e, apenas a partir dos anos 1980 (quando Fidel implementa uma saída
em massa da ilha dos que não eram alinhas à revolução, ao que se pode resumir
com o grito: “que se vayan”) que sua obra começou a tomar um destino mais
livre, onde ele seria capaz de trabalhar em suas edições e coordenar traduções
e antologias. Como afirma Alberca, é na Espanha pós-1975 (pós-morte do
ditador Francisco Franco) que os relatos sobre o eu tomam uma vista maior; como
afirma Duque-Estrada citando Silviano Santiago, é no Brasil dos anistiados
e ex-exilados que
os relatos autobiográficos e memorialistas tomam mais vista
no Brasil; e é com Reinaldo Arenas agora nos EUA que sua obra será administrada
por ele.
É nesta perspectiva dos
anos 1970 que um viés de estudos literários veio à tona e tomou conta da
produção e análise: os estudos culturais das literaturas de minoria. Rechaçados
pelo cânone literário, por onde a obra tem o valor estético e deve ser
vista independente de sua questão social, os Estudos Culturais vieram para
se unir à luta pelos direitos que embarcaram nas lutas pós-1968: “Na Europa
Ocidental/América do Norte, o cerne das preocupações deslocou-se para grupos
minoritários, de caráter étnico ou sexual, cujas vozes começaram a erguer-se
cada vez com mais vigor” (COUTINHO, 1996, 69). Esta perspectiva descentralizada
da literatura questiona veementemente o cânone e desloca a visão “straight white Christian man and property”
posta por Spivak como
“Sujeito Universal” (DUQUE-ESTRADA, 2005, 160).
É, então, neste cenário
cubano, de prisão e exílio em seu próprio país, que
Arenas escreve sua obra. Muitos escritos são dos anos 1960 e 1970,
mas só vieram a ser publicados na década de 1980, já no exílio: “A velha Rosa”
(de 1966, mas só publicada no começo dos anos 1980) relata a história de uma
dona católica de fazenda que não concorda com o sistema comunista e vê seu
filho mais velho aderir ao sistema, sua filha casar-se com um negro contra sua
vontade e seu filho mais novo, Arturo, relacionar-se com um homem. Ao descobrir
a homossexualidade do mais novo, Rosa tenta matar o filho, mas ele foge e ela
se mata tacando-se fogo ao corpo; já “Arturo, a estrela mais brilhante” (1971)
conta de forma crua a realidade de um campo de trabalho forçado nas fazendas de
cana-de-açúcar, onde eram enviados os “jovens contrarrevolucionários” que na
maior parte das vezes eram nada mais que homossexuais, como Arenas, enviado a
estes locais. No texto, também publicado nos EUA nos anos 80, o autor conta
como era a relação promíscua entre os presos e os soldados e revela a
perseguição incessante e aterradora. Não se pode acreditar, porém, que
Arenas foi condescendente com o regime econômico e social dos EUA. É
em “O porteiro”, escrito entre 1984 e 1986, que Arenas relata as desgraças das
relações sociais em um mundo supostamente livre e já no texto revela os
mistérios da Aids (supostamente antes de ele se descobrir
portador do vírus, em 1987). O livro revela um homossexual entendido de
forma patológica, pois era assim que Arenas era visto por
si mesmo e por Cuba e, pelos EUA, era visto de forma menos
óbvia de discriminação, mas colocada nos entremeios dos discursos,
continuou sendo visto da mesma maneira equivocada. É nesta narrativa
autoficcional, “O porteiro”, que Arenas questiona-se e questiona
o mundo (como em toda sua obra) e revela a capacidade de peregrinar entre o
real da vida e o real do livro, quando se coloca dentro da própria narrativa,
onde questiona-se da viabilidade de alguém como ele de contar aquela mesma
história:
“e quanto a Reinaldo Arenas, sua homossexualidade
confessa, delirante e reprovável contaminaria todas as nuances do texto, todas
as situações, descrições e personagens, obscurecendo a objetividade deste
episódio que em nenhum momento pretende ser nem é um caso de patologia sexual”
(ARENAS, 1995, 144).
É assim, nesta configuração diaspórica e
utópica, de não pertencimento a ninguém e a nada, que se situa Arenas. A
afirmação de que seu relato autobiográfico não é eficaz, que ele
“coloca-se diante de sua vida como se ela exibisse na forma de uma
materialidade empírica já dada, diante da qual só lhe resta fazer uma
transcrição para o tempo presente do somatório de acontecimentos (...) que
constitui o grande mosaico de sua vida passada” (DUQUE-ESTRADA, 2005, 160-161)
revela nada mais que uma apreciação pontual da vida de Arenas e não
revela, de forma alguma, um conhecimento eficaz da totalidade de seu trabalho e
luta para consigo mesmo. Considerar a tradução do trauma de viver e de ser
homossexual como um relato ineficaz não contribui para o processo de
emancipação do humano e revela que, de fato, a tese de Lyotard que
Duque-Estrada utiliza do “diferindo” mostra-se aqui contra ela
própria: ela, como branca heterossexual e da classe dominante, afirmar que o
relato autobiográfico de Arenas “perde sua força contestatória”, demonstra que
o conflito está sendo dado na língua A, do dominante, e não tem a oportunidade
de ter a resposta dada por meio da língua B, do dominado.
Com isso, deve-se
afirmar com justiça que a obra de Arenas é porcamente publicada no Brasil (de
uma vastidão que inclui mais de dez obras literárias, cinco peças de teatro,
poemas, ensaios e um manifesto contra Fidel Castro, apenas temos traduzidos, e
com edições antigas e esgotadas, do selo “Contraluz”, os livros “Antes que
anoiteça” [BestBolso, selo
da Record: primeira edição, em 1994],
“A velha Rosa”, “Arturo, a estrela mais brilhante” [ambos publicados em
uma edição pela Record: primeira edição, em 1996], “O
porteiro” [Record: primeira edição, em 1995] e “O mundo alucinante”
[Record: primeira edição, em 1997]), o que revela seu ainda deslocamento em
determinados locais, frente à sua expansão no mundo. O filme “Antes do
anoitecer” (2000) adaptou a autobiografia de Arenas e colocou Javier Barden como
o autor, fazendo com que o espanhol concorresse ao Oscar de melhor
ator, mas esta iniciativa pontual e benéfica para a expansão da obra do cubano
(o filme no Brasil é transmitido esparsamente no Telecine, da Globosat)
não foi ainda capaz de expandir de forma verdadeira a obra do autor no Brasil,
mesmo dentro da Universidade, que carece de estudos em português sobre sua
obra e foco quase que exclusivo ao relato autobiográfico “Antes que
anoiteça”.
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de Janeiro: Editora PUC-Rio e NAU Editora, 1ª ed,
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María Guadalupe. “El mundo alucinante”: construcción de la disidencia. In: Anclajes,
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VELOSO, Caetano. Entrevista
ao programa Roda Vida. São Paulo: TV Cultura, 1996. <https://www.youtube.com/watch?v=DTY9_w1fh9w>.
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