Estou indo agora dormir
e bateu uma nostalgia muito grande, porque lembrei-me de Clarice Lispector. Mas
como eu posso lembrar-me de alguém que eu nunca conheci? Claro que conheci,
oras, fui íntimo até: li seus livros e, por isso, não a decifrei, porém – quase
– me decifrei. Maior escritora não dos brasileiros, mas de cada um de nós,
Clarice poderia me ajudar, hoje, em minha iniciante carreira de escritor.
É conhecida sua fama de
oráculo de novos autores: o poeta Manoel Bandeira chegou a mandar seus poemas
para ela, mas infelizmente não obteve resposta; o crítico e escritor José
Castello mandou-lhe um conto de sua autoria, cuja resposta veio apenas tempos
depois: “Liguei para dizer que recebi seu conto. Só tenho uma coisa para lhe
dizer: você é um homem muito medroso e com medo ninguém escreve. Boa tarde”; e
a favelada Carolina Maria de Jesus, que na verdade nunca endereçou ao Leme seus
textos para serem analisados, mas como quase iletrada, recebeu o grande
incentivo de sua vida por meio de Clarice: “Você escreve a verdade”. E eu,
pobre coitado de 25 anos e 1.60m de altura, receberei de quem o incentivo para
saber se escrevo bem ou mal?
Acho que nunca entendi
Clarice como queriam que eu a entendesse. Conheci-a por meio de seu último
livro, “A hora da estrela”, aquele em que ela tentou ser mais “escritora”, com
uma escrita mais “narrativa”, contando de verdade uma “estória”. Era prova de
escola e, por mais que eu tivesse me apaixonado perdidamente, sem eira nem
beira, num poço sem fundo, por palavras que me caíram como um soco no meio do
coração, por aquela “Hora...”, a professora não concordou com quase nada do que
eu disse sobre o livro. Fazer o que? Ou eu não a decifrei, ou ela me decifrou,
ou eu a decifrei de um modo que a professora não decifrou, ou ninguém
decifrou-se, restando a ninguém entender ninguém, apenas aceitar essa grande
dor que é viver.
Ela estaria hoje, se
viva fisicamente fosse, morando naquele canto entre Botafogo e Copacabana, em
um apartamento que pegou fogo porque ela dormiu com o cigarro aceso, mas que
hoje é habitado pela atriz Zezé Mota. E se eu encontrasse Zezé e levasse ao
apartamento meus contos? O apartamento conseguiria ler-me? Soube que devem
construir uma estátua de Clarice na praia do Leme, tipo aquela que fizeram de
Carlos Drummond de Andrade na praia de Copacabana. Disseram-me certa vez que
Drummond foi o brasileiro que mais perto chegou de ganhar o Nobel de
Literatura. Clarice teria chegado perto assim? Caso eu perguntasse para sua
estátua: “Eu sou bom?”, receberia alguma resposta? Eu, tal qual Pigmaleão,
apaixonaria-me pela estátua e estaria amarrado a ela para sempre, assim como o
estou pela palavra que chega a mim de Clarice. Mas aquelas letras não são
Clarice, são apenas letras. Mas aquilo tudo é Clarice/Guido.
Vou dormir e vou sonhar
que ela me telefona e me diz: “A partir de que momento o escritor passa a ser
uma pessoa triste?”, mas então eu lhe responderia: “Clarice, fizeram essa
pergunta para você, na verdade”, no que ela me responderia: “Mas eu quero saber
o que você teria a dizer sobre isso”. Eu, então, quem sabe, sonhando, diria,
que nem ela, “basta qualquer baque mais forte”? Acho que responderia que
escrevo porque viver não é suficiente para dar conta, mas nem a linguagem
consegue dar conta da experiência, então o que eu posso dizer? “Escrevo por não
ter nada a fazer no mundo”, ela disse, e ela disse também: “Vocação é diferente
de talento: você pode ser chamado e não saber como ir”. Pronto, se eu escrever
mal, direi isso mesmo, dando os créditos para Clarice: tenho vocação, mas não
talento. E pior que eu me chamo Guido, aquele que guia. Clarice, me liga hoje,
por favor.
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