segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O dia amarelo claro



Hoje, o dia amanheceu com um amarelo mais claro, como se o sol estivesse cansado. As pessoas iam acordando devagar, olhando para o travesseiro mais que para o relógio, pensando: por que hoje eu preciso me levantar da cama?  Os passarinhos, de forma inédita, não piaram e nem voaram até as janelas das avozinhas, para comer a migalha do pão e tomar os mililitros de leite. O orvalho custou a secar, pesando as folhas até que elas murchassem. A vida das pessoas, naquela manhã, parecia não querer existir. O bairro estava se mumificando aos poucos, e ninguém saía para a rua, como se faz em dias de semana pela manhã. Não se estava pegando o ônibus para ir ao trabalho, os solteiros não estavam comendo pão com café nas padarias, os idosos não estavam fazendo a ginástica na praça, o jornaleiro não estava aberto, a mercearia tinha suas portas cerradas. O dia, que era dia, parecia noite. As pessoas, que dentro de casa acordaram, no interior das residências dormiram, como se as horas não tivessem passado e a rotina pulada. Esta era a sensação de se viver naquela alma do ser humano rejeitado. A vida, para ele, não era nada além que um cuspe na cara. Ele, ali, sozinho, deitado na cama, com os olhos semi-serrados, queria que toda a vizinhança estivesse que nem ele: prostrado. O que poderia fazer sentido em um dia que nasce com um sol amarelo claro? O chão de taco que ele pisava rangeria de modo mais agudo, a água que ele tomaria banho seria mais gelada, a pasta de dentes que ele usaria teria se petrificado, o pão que ele come já estaria mofado, o leite que ele toma já teria coalhado, o jornal que ele lê estaria molhado de chuva, os olhos que ele vê já estariam cegos, a janela pela qual ele se comunica com o mundo já estaria fechada, o amor que ele recebia já estaria finado, o que então ele poderia querer daquele dia, se nada para ele seria oferecido? 

Ele, esta noite, sonhara com sua cachorra. O animal dormia e ele, por um instante, pensara que havia morrido. No entanto, depois de um leve toque de mão nas costas do animal, ele se mexeu e então latiu e por isso estava vivo. De supetão, ele se alegrou e percebeu que a ressurreição era um mecanismo possível para proporcionar a alegria. O cão estava vivo de novo e ele estava aliviado. Chamou todas as pessoas da família para dizer: “Está viva!” Mas, sem saber o motivo, acordou do sonho.

“O dia poderia passar e eu ficar aqui, para sempre, nesta cama, até que outro dia surja, e eu permaneça aqui, nesta cama”, disse ele. Ao seu redor, o que havia? Uma porta de madeira com a maçaneta quebrada. Retratos da adolescência sobre a cama. Um armário onde já não cabiam mais roupas - tudo que dentro dele estava mofava. Uma escrivaninha abarrotada. Uma cadeira de balanço empoeirada. Um banheiro de água gelada. Um lustre preto. Ao seu redor, o que havia? As coisas inanimadas, que não saíam do lugar, que passaram os anos ali, paradas, caso ninguém as mudasse de posição. Ele ficaria no mesmo lugar, caso ninguém o mudasse de posição? 

“Hoje, eu preciso me levantar”, disse ele. Tirou a cabeça de dentro do cobertor e olhou para o teto do quarto, que estava com uma infiltração. A água gotejando, paulatinamente, sobre o balde posicionado no seu lado direito. Ploft, ploft, ploft, fazia a água sobre o balde. Ele, ploft, ploft, ploft, fazia sua memória sobre sua cabeça. “Agora: um, dois, três”. Não levantou. “Ainda posso ficar mais alguns minutos”. O relógio tocou seis e quinze, depois seis e meia, depois sete, em seguida dez e, quando ele se deu conta, era meio dia. “Ninguém veio me chamar”. Todos de casa teriam saído para trabalhar? Mas o dia estava amarelo claro, não tem sentido ir fazer nada na rua em dias amarelo claro. Qual o objetivo daquele minuto? Levantar-se, ir até o banheiro, lavar o rosto, fazer xixi, sair do quarto, encarar o desprazer. 

No corredor estreito que ligava seu quarto à escada, encontrou seu pai, de pé. O pai, modorrento, olhou o rapaz, que saía de seu aposento, apenas com a roupa do corpo e sem nada no coração. Ao ver a vida ali, naquele beuzebú mirim, desperdiçada, pensou: “Deus Pai, por que fazes isso com um filho teu?” O filho, arrastando os pés, como se estivesse preso a algemas, caminhou, de cabeça baixa, em direção ao pai. Envergonhado de saber que o homem o fitava, o jovem natimorto soltou um grunhido, que lhe pareceu algo do tipo: “Sai da frente, por favor, que eu preciso descer as escadas”. O pai, então, olhando, ainda com pena, deu um passo para o lado. O passante agradeceu com a cabeça, sem sorrir, e com as mãos apoiadas na parede, prosseguiu. Ele olhava a parede branca e queria que ela fosse verde, porque branca não poderia ser. Olhou para baixo e quis que o chão de taco fosse de piso, porque de taco não poderia ser. Olhou para trás e desejou amar mais o pai, porque pouco amor não poderia ser.

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