Hoje, o dia amanheceu
com um amarelo mais claro, como se o sol estivesse cansado. As pessoas iam
acordando devagar, olhando para o travesseiro mais que para o relógio,
pensando: por que hoje eu preciso me levantar da cama? Os passarinhos, de forma inédita, não piaram
e nem voaram até as janelas das avozinhas, para comer a migalha do pão e tomar
os mililitros de leite. O orvalho custou a secar, pesando as folhas até que
elas murchassem. A vida das pessoas, naquela manhã, parecia não querer existir.
O bairro estava se mumificando aos poucos, e ninguém saía para a rua, como se
faz em dias de semana pela manhã. Não se estava pegando o ônibus para ir ao
trabalho, os solteiros não estavam comendo pão com café nas padarias, os idosos
não estavam fazendo a ginástica na praça, o jornaleiro não estava aberto, a
mercearia tinha suas portas cerradas. O dia, que era dia, parecia noite. As
pessoas, que dentro de casa acordaram, no interior das residências dormiram,
como se as horas não tivessem passado e a rotina pulada. Esta era a sensação de
se viver naquela alma do ser humano rejeitado. A vida, para ele, não era nada
além que um cuspe na cara. Ele, ali, sozinho, deitado na cama, com os olhos
semi-serrados, queria que toda a vizinhança estivesse que nem ele: prostrado. O
que poderia fazer sentido em um dia que nasce com um sol amarelo claro? O chão
de taco que ele pisava rangeria de modo mais agudo, a água que ele tomaria
banho seria mais gelada, a pasta de dentes que ele usaria teria se petrificado,
o pão que ele come já estaria mofado, o leite que ele toma já teria coalhado, o
jornal que ele lê estaria molhado de chuva, os olhos que ele vê já estariam
cegos, a janela pela qual ele se comunica com o mundo já estaria fechada, o
amor que ele recebia já estaria finado, o que então ele poderia querer daquele
dia, se nada para ele seria oferecido?
Ele, esta noite,
sonhara com sua cachorra. O animal dormia e ele, por um instante, pensara que
havia morrido. No entanto, depois de um leve toque de mão nas costas do animal,
ele se mexeu e então latiu e por isso estava vivo. De supetão, ele se alegrou e
percebeu que a ressurreição era um mecanismo possível para proporcionar a
alegria. O cão estava vivo de novo e ele estava aliviado. Chamou todas as
pessoas da família para dizer: “Está viva!” Mas, sem saber o motivo, acordou do
sonho.
“O dia poderia passar e
eu ficar aqui, para sempre, nesta cama, até que outro dia surja, e eu permaneça
aqui, nesta cama”, disse ele. Ao seu redor, o que havia? Uma porta de madeira
com a maçaneta quebrada. Retratos da adolescência sobre a cama. Um armário onde
já não cabiam mais roupas - tudo que dentro dele estava mofava. Uma
escrivaninha abarrotada. Uma cadeira de balanço empoeirada. Um banheiro de água
gelada. Um lustre preto. Ao seu redor, o que havia? As coisas inanimadas, que
não saíam do lugar, que passaram os anos ali, paradas, caso ninguém as mudasse
de posição. Ele ficaria no mesmo lugar, caso ninguém o mudasse de posição?
“Hoje, eu preciso me
levantar”, disse ele. Tirou a cabeça de dentro do cobertor e olhou para o teto
do quarto, que estava com uma infiltração. A água gotejando, paulatinamente,
sobre o balde posicionado no seu lado direito. Ploft, ploft, ploft, fazia a
água sobre o balde. Ele, ploft, ploft, ploft, fazia sua memória sobre sua
cabeça. “Agora: um, dois, três”. Não levantou. “Ainda posso ficar mais alguns
minutos”. O relógio tocou seis e quinze, depois seis e meia, depois sete, em
seguida dez e, quando ele se deu conta, era meio dia. “Ninguém veio me chamar”.
Todos de casa teriam saído para trabalhar? Mas o dia estava amarelo claro, não
tem sentido ir fazer nada na rua em dias amarelo claro. Qual o objetivo daquele
minuto? Levantar-se, ir até o banheiro, lavar o rosto, fazer xixi, sair do
quarto, encarar o desprazer.
No corredor estreito
que ligava seu quarto à escada, encontrou seu pai, de pé. O pai, modorrento,
olhou o rapaz, que saía de seu aposento, apenas com a roupa do corpo e sem nada
no coração. Ao ver a vida ali, naquele beuzebú mirim, desperdiçada, pensou: “Deus
Pai, por que fazes isso com um filho teu?” O filho, arrastando os pés, como se
estivesse preso a algemas, caminhou, de cabeça baixa, em direção ao pai. Envergonhado
de saber que o homem o fitava, o jovem natimorto soltou um grunhido, que lhe
pareceu algo do tipo: “Sai da frente, por favor, que eu preciso descer as
escadas”. O pai, então, olhando, ainda com pena, deu um passo para o lado. O
passante agradeceu com a cabeça, sem sorrir, e com as mãos apoiadas na parede,
prosseguiu. Ele olhava a parede branca e queria que ela fosse verde, porque
branca não poderia ser. Olhou para baixo e quis que o chão de taco fosse de
piso, porque de taco não poderia ser. Olhou para trás e desejou amar mais o
pai, porque pouco amor não poderia ser.
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