- Introdução
O
objetivo deste artigo é apresentar e encadear os argumentos trabalhados por
estudiosos no que se refere ao hábito da leitura. O principal subsídio para
este trabalho será a afirmação, de certa forma generalizada, de que – o
brasileiro, o adolescente etc. – não lê e, quando lê, não o faz corretamente.
Com isso, fazer uma análise crítica do discurso apocalíptico que diz que hoje
as pessoas não leem com a intensidade e qualidade de antes; que a televisão
burra e pasteurizada se ratificou como o narcótico da sociedade; e que, para
solucionar os problemas nevrálgicos da educação, devemos construir um número x
de bibliotecas, oferecer para o estudante um número y de livros por ano e, com
isso, fazer com que ele “tome gosto” pela leitura. O que está em jogo para fidelizar
o leitor? O desejo dele (PETIT, 2008, 58), se parte deste princípio.
Uma
passagem importante deste trabalho será, também, o percurso do livro durante os
séculos. Antes, o conhecimento oral passado de geração a geração, depois a
leitura romântica frugal, até outros vieses como círculos de leitura,
disseminados na vida de mulheres (ANDRADE; SILVA, 2011) e as plataformas
digitais. Desde a “revolução da leitura” no século XVIII (DARNTON, 1990; 2010),
no ápice do Iluminismo, até os dias de hoje onde alguns consideram ser um novo
momento iluminista (ainda que, de acordo com Darnton, a questão da
democratização da leitura seja fundamental para que este iluminismo
contemporâneo latente consiga vingar). Vive-se, na passagem do século XX para o
XXI, uma grande e importante transformação no campo da informação.
Com
o desenvolvimento da informática, a internet se disseminou e outras plataformas
midiáticas estão adentrando nosso cotidiano. No caso específico do mercado
editorial, a bola da vez são os e-books e os mecanismos digitais de leitura. Ao
lado deles, nestas reviravoltas, está situado o Google, ferramenta de busca –
ao lado de sites como Wikipédia – que estão com a intenção de disseminar todo o
conhecimento, todos os livros, tudo que já foi criado antes, agora e durante,
na digitalização de bibliotecas. O que isso pode significar para o leitor já
acostumado com o livro físico, para o indivíduo que nascerá neste tempo, e a
pessoa que ainda não é leitora, mas que possui estes caminhos para a empreitada?
2.
Pensando
uma teoria da leitura
Um dos objetivos de Darnton (1990) é argumentar
sobre as dificuldades de se promover uma história da leitura. Complexa em sua
natureza, ela esbarra em abordagens distintas e em técnicas para sua pesquisa
com algumas possibilidades de falha. No entanto, segundo o autor, a leitura possui
de fato uma história (DARTON, 1990, 171) e que é pela via da pesquisa histórica
que poderemos compreender o modo como o leitor lê e, com isso, vê a vida.
Ressalta, também, que é dentro de nossa própria cultura ocidental que existe a
possibilidade de se avaliar as transformações na leitura. (Ibidem, 159)
Por
meio das análises de arquivos e documentos de época, têm-se uma visão do que
era lido e de quem lia. Pela vertente do estudo documental, há as técnicas
macro e microanalíticas. De grosso modo, a macro vislumbra o campo da
biblioteca pública e a micro a da particular. Porém, sabe-se que em nossa casa
não lemos todos os livros que comprarmos e lemos muitos livros que não
possuímos, assim como o autor expõe o exemplo de uma biblioteca europeia do
século XVIII onde não se encontrava registrado um exemplar de um livro
fundamental do Iluminismo, de autoria de Rousseau. Darnton afirma não ser fácil
desenvolver uma teoria da reação do leitor, da leitura em suas complexidades,
por meio dos arquivos. “Possível, mas não fácil, pois os documentos raramente
mostram os leitores em atividade, modelando o sentido a partir dos textos, e os
próprios documentos também são textos, o que requer interpretação.” (Ibidem, 148-149).
Outro
ponto do texto delimita o momento de transição para o que se considera a
“revolução da leitura” no século XVIII, quando o livro passou a ser mais
difundido. Em um momento anterior, a leitura era feita em voz alta e em grupos,
registrada como “ouvida” e não “lida” (Ibidem,
158), da mesma forma como poucos livros eram lidos muitas vezes, eles sendo
majoritariamente religiosos. O ato físico da leitura se torna mais agradável, o
que proporciona empregar um entretenimento maior ao ato de ler. Passa-se da
leitura de pé em espaços públicos de livros grandes e difíceis, tanto em seu
conteúdo quanto em sua forma, para a leitura prazerosa e descartável na
residência. Desta forma, o gênero romance cresce vertiginosamente e percebe-se
uma queda na literatura religiosa durante os anos 1700 (Ibidem, 151-152).
O
capítulo é, portanto, satisfatório em sua intenção de delimitar as formas para
que se possa alcançar a história da leitura. Chega-se a uma conclusão objetiva
da mudança dos modos e usos do ler durante os séculos, mas é de conhecimento do
autor a dificuldade de se alcançar o que a leitura significa para o homem: “Nem
sequer compreendemos como nós próprios lemos” (Ibidem, 159). Através de relatos pode-se vislumbrar como a leitura
era vista, em 1795, por exemplo, quando J. G. Heinzmann faz um triste prognóstico
para quem lê em demasia (Ibidem,
160).
Mais adiante no capítulo, o autor se delimita, sob
a abordagem da teoria literária – no que tem a intenção de traçar a história da
leitura sob cinco distintas abordagens –, no que diz respeito à forma como a
obra literária passou a ser apresentada aos leitores. A partir de trechos de um
livro de Ernst Hemingway e da obra “Orgulho e preconceito” (Ibidem, 166), Darnton demonstra as
diferentes formas de um escritor introduzir seu leitor na narrativa e define o
leitor em seu ato de leitura como o “fato central da literatura” (Ibidem, 167). Assim, uma ponte pode ser
feita entre estas análises e as teorias de Umberto Eco (1994), onde define as
funções de leitor e autor, afirmando ser Wolfgang Iser, com a estética da
recepção, um caminho plausível para a relação entre leitor e autor.
Portanto,
ainda que complexa, Darnton nos faz perceber que o mais importante para o
estudo da história da leitura é, antes de tudo, considerar o leitor como fator
central das análises. O homem utilizou a leitura como mecanismo para melhor
compreender sua própria existência e a partir do momento em que houve a
“revolução” literária no século XVIII e a maior difusão da leitura no mundo
ampliou-se a matéria prima para estudo sob esta perspectiva.
Antes, do aprendizado nas escolas inglesas da
leitura antes da escrita e do fato de nas escolas francesas se aprender
primeiro o latim e, posteriormente, aos que persistiam no estudo, o francês
(DARNTON, 1990, 162-163), entende-se que o ensino era apenas para criar um
leitor empírico, do dia-a-dia (ECO, 1994, 14). Hoje, a leitura é um produto
amplamente difundido e compartilhado com o público, sendo um desafio vislumbrar
os modos que ele faz dela. As abordagens de Darnton para a história da leitura
unida à estética da recepção de Iser vêm, então, como um caminho.
- Literatura: bom e ruim
Ler
bem não é, necessariamente, ler o que a crítica considera como os grandes
livros da literatura. Há de ir-se em busca do “nosso” clássico (CALVINO, 1993).
Será difícil que um jovem de 12 anos do século XXI passe a ser viciado em
livros a partir de obras brasileiras do século XIX como “A moreninha” (Joaquim
Manoel de Macedo, 1844) ou “Senhora” (José de Alencar, 1874). Não que esses
livros sejam “ruins” – na classificação de “ruim” que muitos inserem obras como
as de Paulo Coelho, por exemplo – mas são, de fato, de complexa digestão e de
um estilo literário pouco habitual para o tempo presente. Quando se afirma
isto, não se deseja por dizer que alguém que já seja “viciada em livros” vá
adorar “A moreninha” e “Senhora”. O que se passa é que, crê-se, essas pessoas
terão um olhar mais crítico dos livros e poderão extrair um juízo mais
contundente dos trabalhos. Esses livros possivelmente não irão despertar o desejo
dos leitores, e os ambientados já tiveram seus desejos despertados por
outros livros. Mas o que seria o livro ruim e, por meio dele, o leitor ruim?
A
seguir, serão dados exemplos retirados de análises feitas pelo teórico-escritor
Umberto Eco e pela escritora Edith Wharton, que dissecaram os termos de modo
deveras irônico. O mau leitor é chamado por Wharton (2010), no preciso texto “O
vício da leitura”, publicado em 1903, de “leitor mecânico”. É de surpreender o
fato de este texto ter sido escrito há mais de 110 anos, pois pelo seu conteúdo
tem-se a impressão de se estar lendo um estudo antropológico sobre a leitura
nos dias de hoje, onde vigoram os grandes best-sellers. O que caracterizaria,
portanto, este leitor mecânico?
O percurso do leitor mecânico é orientado pela vox
populi. Ele vai direto ao livro sobre o qual está se falando, e a percepção
que esse leitor tem da importância do livro é proporcional ao número de edições
esgotadas antes da publicação, visto que ele não tem meios de distinguir as
diversas classes de livros de que se fala, tampouco distinguir as vozes que
falam. (Ibidem, 34-35)
Já
o mau escritor – que, de acordo com Wharton, se alimenta do mau leitor, e
vice-versa (Ibidem, 38) – é, segundo
Eco, aquele que “ao tentar falar demais, (…) pode se tornar mais engraçado que suas
personagens” (ECO, 1994, 10). Ele dá o exemplo da escritora Carolina
Invernizio, muito famosa na Itália do século XIX com as mulheres proletárias
(interessante o possível paralelo com o estudo de Ecléa Bosi sobre os hábitos
de leitura das operárias do ABC, no estado de São Paulo, nos anos 1970). A
seguir, um trecho do livro “A estalagem assassina”, de Invernizio:
Era uma bela noite, embora fizesse muito frio. As
ruas (…) estavam claras como se fosse dia, iluminadas pela lua alta no céu. (…)
Sob o grande pórtico ouvia-se um barulho ensurdecedor, uma vez que dois trens
expressos se cruzavam. Um estava partindo, outro estava chegando (Ibidem, Idem).
Este
livro é considerado ruim por Eco, mas ele afirma ter cativado as proletárias
italianas. Independente de juízo de valor, este tipo de literatura as instigou
a ler. Com este livro pode ter sido criado o hábito da leitura. Pode ser então
um caminho para mais livros e outros com conteúdos, menos, na classificação de
Eco, ruins. Para Wharton, o “leitor mecânico” criou um nicho no mercado
editorial e proporciona a disseminação de escritores ruins, para suprir uma
demanda: “É dessa forma que o leitor mecânico trabalha sistematicamente contra
o melhor da literatura. Obviamente, é para os escritores que ele é mais
pernicioso.” (WHARTON, 2010, 38).
Ainda
na esfera do bom/ruim, é relevante citar um estudo realizado a partir do que
conceitualmente considera-se por “livros de coração”, feito com mulheres
nordestinas. Tais “livros de coração” são aqueles baratos comprados em bancas
de jornal, trocados constantemente entre as mulheres em círculos de livros e
tratam, majoritariamente, do sentimento amoroso, do meio feminino, de forma
açucarada e amena, “restando aos romances sentimentais, (...) a categorização
de literatura fútil, fantasiosa, alienadora e simplória” (ANDRADE; SILVA, 2011,
8). Mas como percebido, estes livros fidelizaram a leitura para as mulheres –
pobres e ricas – que inseriram estas obras em seus cotidianos e o associaram ao
binômio “lazer/prazer” (Ibidem, 10).
Por mais que sejam considerados piores por muitos, estas mulheres – que
poderiam não estar lendo nada – se debruçaram por inteiro à literatura, mais
que muitos que se consideram leitores dos “clássicos” (o clássico você nunca
estará lendo, sempre relendo, como já dito por Calvino).
4.
Literatura
e subjetivação
A
literatura como construção de si mesmo. Este é um aspecto importante, quem sabe
central, das análises sobre os hábitos de leitura. É a partir deste
entendimento que se poderá compreender melhor o papel do desejo que recai sobre
o livro. Um amplo estudo feito, durante anos, pela antropóloga francesa Michèle
Petit, nos anos 1990, analisou o mundo da leitura de jovens franceses da
periferia. Com uma visão muito atrelada à psicanálise, Petit vê a leitura como
uma experiência única que tira da marginalidade – tanto objetiva, como
subjetiva – o adolescente: “para os rapazes e moças que encontrei, a leitura
representava tanto um atalho para elaborar sua subjetividade quanto um meio de
chegar ao conhecimento. E não acredito que isto seja uma especificidade
francesa” (PETIT, 2008, 20).
É
no adolescente que recai as maiores cobranças. Tanto dos mais velhos, que
exigem responsabilidade, respeito e preocupação com o futuro, como dos outros
adolescentes, cruéis com seus pares quando encontram alguma evidência de
fraqueza. É uma solidão constante, “assustadora” (Ibidem, 50), que geralmente obriga o adolescente a ser o que na
verdade não é: criar a máscara. Não se deve restringir, claro, este pensamento
apenas ao adolescente, pois o adolescente de hoje é o adulto de amanhã: uma
solidão nascida na adolescência pode ser mantida e intensificada ao longo dos
anos. Sendo assim, a literatura chega, então, para estar ao lado do
adolescente, neste turbilhão de emoções. O jovem é uma ilha, que está seca ao
redor, esperando ser preenchida por água, para se criar pontes entre outras
ilhas, os outros: “é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele que
ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto constituem o leitor, lhe dão
um lugar. Os escritores, sobretudo, colocam palavras ali onde dói” (Ibidem, 38). É aqui pertinente frisar
uma consideração retirada de Píndaro, citada por Nietzsche: “Torne-se quem você
é” (COMPAGNON, 2009, 53).
Petit
afirma ainda que, por mais que independa de gênero textual (Ibidem, 57), é o livro literário que
mais toca o jovem: “Sentimentos que existe, em alguns textos escritos por
escritores, um pouco mais de verdade que em outras formas de expressão
linguística” (Ibidem, 41) e “não há
razão para que os escritores não toquem cada um de nós. E é exatamente nesse
ponto que jovens leitores vindos de meios desfavorecidos podem, muitas vezes,
se encontrar com eles” (Ibidem, 39).
Sendo assim, a questão é: a pessoa encontrará aquilo que irá tocá-la mais
profundamente.
Ler
é, para o jovem (também para o adulto, como já citado), a oportunidade de
encontrar um tempo para si mesmo. Eles são imprevisíveis na forma como recebem
um texto e, por mais que seja o romance o “livro” por excelência, podem
encontrar palavras que os acolham nos textos mais diversos (Ibidem, 56-57). No entanto, retomando a
questão da centralidade aqui trabalhada da literatura e da existência de
“narrativa” em diversos meios, considera-se que:
Todas as formas de narração, que compreendem o
filme e a história, falam-nos da vida humana. O romance o faz, entretanto, com
mais atenção que a imagem móvel e mais eficácia que a anedota policial, pois
seu instrumento penetrante é a língua, e ele deixa toda a sua liberdade para a
experiência imaginária e para a deliberação moral, particularmente na solidão
prolongada da leitura (...). A literatura não é a única, mas é mais atenta que
a imagem e mais eficaz que o documento, e isso é suficiente para garantir seu
valor perene: ela é A vida, modo de usar
(COMPAGNON, 2009, 55).
5.
Literatura: desejo e necessidade
É
a partir do desejo pessoal, individual e instransponível, que a leitura
necessita florescer. Iniciativas como bibliotecas, aulas de literatura e de qualquer
outra disciplina etc., devem servir como ferramentas que ofereçam uma
diversidade de estímulos, para que o jovem/adulto encontre o seu caminho, a sua
resposta, o seu prazer. Ainda citando Petit, “Um escritor, um bibliotecário ou
um professor não conhece os jovens a partir do que imagina serem suas
'necessidades' ou suas expectativas, mas deixando-se trabalhar por seu próprio
desejo, por seu próprio inconsciente” (Ibidem,
58) Ou seja, uma ação que deve vir do interior e partir para o exterior:
“não se formam leitores meramente pela insistência
que a escola vem demonstando ter ao exigir leituras obrigatórias (…). Mas sim,
pela necessidade político-sócio-cultural inquestionável, presente em um mundo
circundado de signos, de se compreender, dominar e produzir essas
técnicas/produções/artes paralelas: a escrita e a leitura” (SILVA, p.114).
É
este desejo que proporciona o “prazer do texto”, sua fruição – gozo, na
verdade, caso se traduza corretamente o termo da tradição-tradução barthesiana
francesa. Um texto lido no prazer é um texto escrito no prazer, segundo
Barthes. É esta experiência singular a resposta, que apenas você tem consigo: “O
prazer do texto é semelhante a esse instante insubstituível, impossível,
puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação
ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza”
(BARTHES, 2015, 12).
Em
um ensaio, publicado pelo jornal “O Globo”, sobre o modo pelo qual alguém deve
se iniciar alguém nos estudos filosóficos, Francisco Bosco afirma que não há
nada pior para se começar na matéria (e gostar dela), do que ler um livro de
introdução à filosofia. O começo deve vir a partir do livro que primeiro “te
pegar de jeito”. De acordo com Bosco, “a um começo cronológico ou mesmo lógico,
eu apresentaria a alternativa do caminho do desejo. Que se comece sempre pelo
primeiro livro que te pegar de jeito. E que a partir de então siga-se pela
lógica singular das questões que te mobilizam” (BOSCO, 2012).
Se antes de eu ler Deleuze eu tiver lido Bergson,
Nietzsche, Kant, Espinoza, até os gregos, eu terei um aproveitamento certamente
mais complexo de Deleuze. Mas e se não houver nesses autores, para mim, a centelha, o desconcerto
capaz de fundar a paixão filosófica? Pois esse desconcerto, como a lógica das
paixões humanas, é da ordem singular de um encontro: não se dá com os mesmo
autores para as mesmas pessoas (Ibidem,
Idem).
Os
“romances de coração” são, sem dúvida, uma forma evidente da associação entre o
momento da leitura e o prazer. Como comprovado no estudo, as mulheres que fazem
uso deste tipo de literatura, definitivamente, não acreditam que irão viver
romances iguais aos que leem nas obras (ANDRADE; SILVA, 2011, 12), em uma
atitude ingênua, fantasiosa e infantil muitas vezes associada a elas. Mas eles
são lidos em um ambiente de busca de identificação.
Não é à toa que o hábito de ler romances
sentimentais é encarado como uma atividade relacionada ao binômio lazer/prazer.
(...) no tempo desocupado que complementa e compensa o indivíduo da faina
diária, o lazer ao mesmo tempo em que ocupa o espaço destinado ao relaxamento e
à distração da labuta, é o exercício da liberdade. As mulheres desta pesquisa
traduzem o ato de ler romances sentimentais como um ‘momento só para si (Ibidem, 10).
6.
Literatura: algo além
O prazer do texto é permitido apenas a quem tem
acesso a esse texto, evidentemente. É notório também que, para o dia-a-dia, ler
não é algo essencial para alguém se manter vivo, sendo esta suposta
superficialidade da literatura um dos empecilhos mais diretos para a manutenção
do vigor de sua importância vital para a sociedade. Com isso, se pretende dizer
que ler, ver um filme, ir ao teatro, é algo “além”.
Eis porque, ao lado da pergunta tradicional desde
Lamartine, Charles de Bos e Sartre, “que é a literatura?”, questão teórica ou
histórica, coloca-se hoje mais seriamente a pergunta crítica e política: “O que
a literatura pode fazer?” Em outras palavras: “Literatura para quê?” (...) Qual
a pertinência (...) da literatura para a vida? Qual é a sua força, não somente
de prazer, mas também de conhecimento, não somente de evasão, mas também de
ação? (COMPAGNON, 2009, 23-24).
Ou seja, se você precisa trabalhar oito dias e três
horas para comprar um livro em três volumes (BOSI, 2009, 20), e se esforçar
despejando a maior parte do salário em alimentação e coisas básicas do
cotidiano, o que se chama “consumo de cultura” é, sem dúvida, um esforço, um
dispêndio. Para uma pessoa que sobrevive (no lugar de viver), o acesso ao livro
e a seu prazer é dificultado por estes empecilhos básicos, ou do modo de
operação do sistema-mundo do capital e do giro econômico prático:
A Universidade conhece um momento de hesitação com
relação às virtudes da educação generalista, acusada de conduzir ao desemprego
e que tem sofrido a concorrência das formações profissionalizantes, pois estas
têm a reputação de melhor preparar para o trabalho. Tanto é que a iniciação à
língua literária e à cultura humanista, menos rentável a curto prazo, parece
vulnerável na escola e na sociedade do amanhã (COMPAGNON, 2009, 23).
Literatura, então, por quê? “E se alguém objetar
que não vale a pena tanto esforço (pela literatura), citarei Cioran (...):
‘Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a
flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária
antes de morrer’” (CALVINO, 1993, 16).
Mas, do mesmo modo que o desejo ganha lugar central
neste artigo, as camadas menos favorecidas da sociedade tem o desejo como fator
decisivo para a transformação de uma dura realidade de privações. O desejo
pessoal de ter acesso à cultura é forte e marcante: “As operárias que tivemos
oportunidade de ouvir sentem um fortíssimo desejo de instrução, quando não para
si, para os filhos” (BOSI, 2009, 20). No estudo de Bosi, foram analisadas as
operárias do ABC dos anos 1970, em um espaço específico, porém abrangente, já
que o macro-cenário da desigualdade social e econômica é ainda aterrador no que
tange o gênero feminino no mercado de trabalho.
Como todo o ser humano vai à busca de sua
identidade, sua verdade, “as representações da cultura estão sempre ligadas às
de liberdade” (Ibidem, 21), mas a
dinâmica espacial da pobreza é um aspecto interessante tratado por Bosi que
dificulta a busca de uma individualização e deve ser encadeado com o “momento
só para si” da leitura. A “janela aberta para outra janela vizinha e sempre abertas”
(Ibidem, 26) é a deflagração de uma
impossibilidade da solidão voluntária, do afastamento para um instante de
introspecção.
Não é apenas isso que impede a experiência do
texto, mas também isso. A democracia vacilante da cultura, por meio dos
conglomerados e do caro preço por seu acesso, a exploração do trabalhador com
um esforço produtivo exaustivo e um salário relis, junto à falta do “hábito” de
isolamento para leitura, se somam a um sistema educacional falho e um governo
que, quando trata do livro e da cultura, o faz para uma “classe” específica e
não para a população que mais dela precisa e a que mais faria proveito. Tomando
de empréstimo uma expressão do escritor colombiano Gabriel García Márquez, “rico
tem cultura e pobre tem folclore”.
7.
Considerações finais
Muitos comparam o que se vive hoje,
tecnologicamente, a um novo Iluminismo. A iniciativa do Google de digitalizar
todos os livros de grandes bibliotecas – o conhecimento mundial completo – é
uma boa propaganda desta empreitada (DARNTON, 2010). Porém, há o perigo de se
criar um mercado com a comercialização destas digitalizações às biblioteca, o
que já exclui quem não tem dinheiro para ter acesso a este produto. Com isso, o
termo “iluminismo” já se mostra falho, pois não é de fato um momento de
revolução do conhecimento, já que excludente.
Muitos dizem serem as novas plataformas de leitura
– kindle, e-book etc. –, a nova experiência para a disseminação da leitura.
Porém, é perigosa esta afirmação, já que estas plataformas são ainda caras para
se iniciar uma disseminação, para a média de leitura anual (pesquisa Retratos
da Leitura, 2012). Bill Gates, fundador da Microsoft, uma das cinco marcas de
tecnologia mais valiosas do mundo, afirmou ser ainda necessário que a
tecnologia melhore de forma “muito radical” antes que “tudo que hoje necessita
de papel se transfira para um formato digital” (DARNTON, 2010, 87).
8.
Bibliografia
ANDRADE, Roberta Manuela Barros de; SILVA, Erotilde
Honório. Quem lê tanto romance? As práticas de leitura dos Livros do Coração.
Recife: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2011;
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução:
J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987;
BOSCO, Francisco. Por onde começar?
In: Segundo Caderno. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, 26 de setembro, 2012;
BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras
de operárias. Petrópolis: Editora Vozes, 2009;
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos? Tradução: Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1993;
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução: Laura
Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009;
DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e
futuro. Tradução: Daniel Pellizzari. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
2010;
______. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e
revolução. Tradução: Denise Bootmann. São Paulo: Companhia das Letras,
1990;
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção.
Tradução: Hildegard Feist. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1994;
PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura – uma
nova perspectiva. Tradução: Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora
34, 2008;
SILVA, Virgínia de Oliveira. De leitores e leitura: água
mole, pedra dura, tanto bate até que fura? Dissertação de mestrado.
Rio de Janeiro: FE-UFRJ, 1999;
WHARTON, Edith. O vício da leitura. In: serrote. Tradução: Alípio Correa de Franco
Neto. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2010, nº 5 ½ , p. 31-38.