terça-feira, 2 de agosto de 2016

Quando ler é prazer: história e práticas de leitura




  1. Introdução
            O objetivo deste artigo é apresentar e encadear os argumentos trabalhados por estudiosos no que se refere ao hábito da leitura. O principal subsídio para este trabalho será a afirmação, de certa forma generalizada, de que – o brasileiro, o adolescente etc. – não lê e, quando lê, não o faz corretamente. Com isso, fazer uma análise crítica do discurso apocalíptico que diz que hoje as pessoas não leem com a intensidade e qualidade de antes; que a televisão burra e pasteurizada se ratificou como o narcótico da sociedade; e que, para solucionar os problemas nevrálgicos da educação, devemos construir um número x de bibliotecas, oferecer para o estudante um número y de livros por ano e, com isso, fazer com que ele “tome gosto” pela leitura. O que está em jogo para fidelizar o leitor? O desejo dele (PETIT, 2008, 58), se parte deste princípio.
            Uma passagem importante deste trabalho será, também, o percurso do livro durante os séculos. Antes, o conhecimento oral passado de geração a geração, depois a leitura romântica frugal, até outros vieses como círculos de leitura, disseminados na vida de mulheres (ANDRADE; SILVA, 2011) e as plataformas digitais. Desde a “revolução da leitura” no século XVIII (DARNTON, 1990; 2010), no ápice do Iluminismo, até os dias de hoje onde alguns consideram ser um novo momento iluminista (ainda que, de acordo com Darnton, a questão da democratização da leitura seja fundamental para que este iluminismo contemporâneo latente consiga vingar). Vive-se, na passagem do século XX para o XXI, uma grande e importante transformação no campo da informação.
            Com o desenvolvimento da informática, a internet se disseminou e outras plataformas midiáticas estão adentrando nosso cotidiano. No caso específico do mercado editorial, a bola da vez são os e-books e os mecanismos digitais de leitura. Ao lado deles, nestas reviravoltas, está situado o Google, ferramenta de busca – ao lado de sites como Wikipédia – que estão com a intenção de disseminar todo o conhecimento, todos os livros, tudo que já foi criado antes, agora e durante, na digitalização de bibliotecas. O que isso pode significar para o leitor já acostumado com o livro físico, para o indivíduo que nascerá neste tempo, e a pessoa que ainda não é leitora, mas que possui estes caminhos para a empreitada?

2.    Pensando uma teoria da leitura
Um dos objetivos de Darnton (1990) é argumentar sobre as dificuldades de se promover uma história da leitura. Complexa em sua natureza, ela esbarra em abordagens distintas e em técnicas para sua pesquisa com algumas possibilidades de falha. No entanto, segundo o autor, a leitura possui de fato uma história (DARTON, 1990, 171) e que é pela via da pesquisa histórica que poderemos compreender o modo como o leitor lê e, com isso, vê a vida. Ressalta, também, que é dentro de nossa própria cultura ocidental que existe a possibilidade de se avaliar as transformações na leitura. (Ibidem, 159)
            Por meio das análises de arquivos e documentos de época, têm-se uma visão do que era lido e de quem lia. Pela vertente do estudo documental, há as técnicas macro e microanalíticas. De grosso modo, a macro vislumbra o campo da biblioteca pública e a micro a da particular. Porém, sabe-se que em nossa casa não lemos todos os livros que comprarmos e lemos muitos livros que não possuímos, assim como o autor expõe o exemplo de uma biblioteca europeia do século XVIII onde não se encontrava registrado um exemplar de um livro fundamental do Iluminismo, de autoria de Rousseau. Darnton afirma não ser fácil desenvolver uma teoria da reação do leitor, da leitura em suas complexidades, por meio dos arquivos. “Possível, mas não fácil, pois os documentos raramente mostram os leitores em atividade, modelando o sentido a partir dos textos, e os próprios documentos também são textos, o que requer interpretação.” (Ibidem, 148-149).
            Outro ponto do texto delimita o momento de transição para o que se considera a “revolução da leitura” no século XVIII, quando o livro passou a ser mais difundido. Em um momento anterior, a leitura era feita em voz alta e em grupos, registrada como “ouvida” e não “lida” (Ibidem, 158), da mesma forma como poucos livros eram lidos muitas vezes, eles sendo majoritariamente religiosos. O ato físico da leitura se torna mais agradável, o que proporciona empregar um entretenimento maior ao ato de ler. Passa-se da leitura de pé em espaços públicos de livros grandes e difíceis, tanto em seu conteúdo quanto em sua forma, para a leitura prazerosa e descartável na residência. Desta forma, o gênero romance cresce vertiginosamente e percebe-se uma queda na literatura religiosa durante os anos 1700 (Ibidem, 151-152).
            O capítulo é, portanto, satisfatório em sua intenção de delimitar as formas para que se possa alcançar a história da leitura. Chega-se a uma conclusão objetiva da mudança dos modos e usos do ler durante os séculos, mas é de conhecimento do autor a dificuldade de se alcançar o que a leitura significa para o homem: “Nem sequer compreendemos como nós próprios lemos” (Ibidem, 159). Através de relatos pode-se vislumbrar como a leitura era vista, em 1795, por exemplo, quando J. G. Heinzmann faz um triste prognóstico para quem lê em demasia (Ibidem, 160).
Mais adiante no capítulo, o autor se delimita, sob a abordagem da teoria literária – no que tem a intenção de traçar a história da leitura sob cinco distintas abordagens –, no que diz respeito à forma como a obra literária passou a ser apresentada aos leitores. A partir de trechos de um livro de Ernst Hemingway e da obra “Orgulho e preconceito” (Ibidem, 166), Darnton demonstra as diferentes formas de um escritor introduzir seu leitor na narrativa e define o leitor em seu ato de leitura como o “fato central da literatura” (Ibidem, 167). Assim, uma ponte pode ser feita entre estas análises e as teorias de Umberto Eco (1994), onde define as funções de leitor e autor, afirmando ser Wolfgang Iser, com a estética da recepção, um caminho plausível para a relação entre leitor e autor.
            Portanto, ainda que complexa, Darnton nos faz perceber que o mais importante para o estudo da história da leitura é, antes de tudo, considerar o leitor como fator central das análises. O homem utilizou a leitura como mecanismo para melhor compreender sua própria existência e a partir do momento em que houve a “revolução” literária no século XVIII e a maior difusão da leitura no mundo ampliou-se a matéria prima para estudo sob esta perspectiva.
Antes, do aprendizado nas escolas inglesas da leitura antes da escrita e do fato de nas escolas francesas se aprender primeiro o latim e, posteriormente, aos que persistiam no estudo, o francês (DARNTON, 1990, 162-163), entende-se que o ensino era apenas para criar um leitor empírico, do dia-a-dia (ECO, 1994, 14). Hoje, a leitura é um produto amplamente difundido e compartilhado com o público, sendo um desafio vislumbrar os modos que ele faz dela. As abordagens de Darnton para a história da leitura unida à estética da recepção de Iser vêm, então, como um caminho.

  1. Literatura: bom e ruim
            Ler bem não é, necessariamente, ler o que a crítica considera como os grandes livros da literatura. Há de ir-se em busca do “nosso” clássico (CALVINO, 1993). Será difícil que um jovem de 12 anos do século XXI passe a ser viciado em livros a partir de obras brasileiras do século XIX como “A moreninha” (Joaquim Manoel de Macedo, 1844) ou “Senhora” (José de Alencar, 1874). Não que esses livros sejam “ruins” – na classificação de “ruim” que muitos inserem obras como as de Paulo Coelho, por exemplo – mas são, de fato, de complexa digestão e de um estilo literário pouco habitual para o tempo presente. Quando se afirma isto, não se deseja por dizer que alguém que já seja “viciada em livros” vá adorar “A moreninha” e “Senhora”. O que se passa é que, crê-se, essas pessoas terão um olhar mais crítico dos livros e poderão extrair um juízo mais contundente dos trabalhos. Esses livros possivelmente não irão despertar o desejo dos leitores, e os ambientados já tiveram seus desejos despertados por outros livros. Mas o que seria o livro ruim e, por meio dele, o leitor ruim?
            A seguir, serão dados exemplos retirados de análises feitas pelo teórico-escritor Umberto Eco e pela escritora Edith Wharton, que dissecaram os termos de modo deveras irônico. O mau leitor é chamado por Wharton (2010), no preciso texto “O vício da leitura”, publicado em 1903, de “leitor mecânico”. É de surpreender o fato de este texto ter sido escrito há mais de 110 anos, pois pelo seu conteúdo tem-se a impressão de se estar lendo um estudo antropológico sobre a leitura nos dias de hoje, onde vigoram os grandes best-sellers. O que caracterizaria, portanto, este leitor mecânico?
O percurso do leitor mecânico é orientado pela vox populi. Ele vai direto ao livro sobre o qual está se falando, e a percepção que esse leitor tem da importância do livro é proporcional ao número de edições esgotadas antes da publicação, visto que ele não tem meios de distinguir as diversas classes de livros de que se fala, tampouco distinguir as vozes que falam. (Ibidem, 34-35)

            Já o mau escritor – que, de acordo com Wharton, se alimenta do mau leitor, e vice-versa (Ibidem, 38) – é, segundo Eco, aquele que “ao tentar falar demais, (…) pode se tornar mais engraçado que suas personagens” (ECO, 1994, 10). Ele dá o exemplo da escritora Carolina Invernizio, muito famosa na Itália do século XIX com as mulheres proletárias (interessante o possível paralelo com o estudo de Ecléa Bosi sobre os hábitos de leitura das operárias do ABC, no estado de São Paulo, nos anos 1970). A seguir, um trecho do livro “A estalagem assassina”, de Invernizio:
Era uma bela noite, embora fizesse muito frio. As ruas (…) estavam claras como se fosse dia, iluminadas pela lua alta no céu. (…) Sob o grande pórtico ouvia-se um barulho ensurdecedor, uma vez que dois trens expressos se cruzavam. Um estava partindo, outro estava chegando (Ibidem, Idem).

            Este livro é considerado ruim por Eco, mas ele afirma ter cativado as proletárias italianas. Independente de juízo de valor, este tipo de literatura as instigou a ler. Com este livro pode ter sido criado o hábito da leitura. Pode ser então um caminho para mais livros e outros com conteúdos, menos, na classificação de Eco, ruins. Para Wharton, o “leitor mecânico” criou um nicho no mercado editorial e proporciona a disseminação de escritores ruins, para suprir uma demanda: “É dessa forma que o leitor mecânico trabalha sistematicamente contra o melhor da literatura. Obviamente, é para os escritores que ele é mais pernicioso.” (WHARTON, 2010, 38).
            Ainda na esfera do bom/ruim, é relevante citar um estudo realizado a partir do que conceitualmente considera-se por “livros de coração”, feito com mulheres nordestinas. Tais “livros de coração” são aqueles baratos comprados em bancas de jornal, trocados constantemente entre as mulheres em círculos de livros e tratam, majoritariamente, do sentimento amoroso, do meio feminino, de forma açucarada e amena, “restando aos romances sentimentais, (...) a categorização de literatura fútil, fantasiosa, alienadora e simplória” (ANDRADE; SILVA, 2011, 8). Mas como percebido, estes livros fidelizaram a leitura para as mulheres – pobres e ricas – que inseriram estas obras em seus cotidianos e o associaram ao binômio “lazer/prazer” (Ibidem, 10). Por mais que sejam considerados piores por muitos, estas mulheres – que poderiam não estar lendo nada – se debruçaram por inteiro à literatura, mais que muitos que se consideram leitores dos “clássicos” (o clássico você nunca estará lendo, sempre relendo, como já dito por Calvino).

4.    Literatura e subjetivação
            A literatura como construção de si mesmo. Este é um aspecto importante, quem sabe central, das análises sobre os hábitos de leitura. É a partir deste entendimento que se poderá compreender melhor o papel do desejo que recai sobre o livro. Um amplo estudo feito, durante anos, pela antropóloga francesa Michèle Petit, nos anos 1990, analisou o mundo da leitura de jovens franceses da periferia. Com uma visão muito atrelada à psicanálise, Petit vê a leitura como uma experiência única que tira da marginalidade – tanto objetiva, como subjetiva – o adolescente: “para os rapazes e moças que encontrei, a leitura representava tanto um atalho para elaborar sua subjetividade quanto um meio de chegar ao conhecimento. E não acredito que isto seja uma especificidade francesa” (PETIT, 2008, 20).
            É no adolescente que recai as maiores cobranças. Tanto dos mais velhos, que exigem responsabilidade, respeito e preocupação com o futuro, como dos outros adolescentes, cruéis com seus pares quando encontram alguma evidência de fraqueza. É uma solidão constante, “assustadora” (Ibidem, 50), que geralmente obriga o adolescente a ser o que na verdade não é: criar a máscara. Não se deve restringir, claro, este pensamento apenas ao adolescente, pois o adolescente de hoje é o adulto de amanhã: uma solidão nascida na adolescência pode ser mantida e intensificada ao longo dos anos. Sendo assim, a literatura chega, então, para estar ao lado do adolescente, neste turbilhão de emoções. O jovem é uma ilha, que está seca ao redor, esperando ser preenchida por água, para se criar pontes entre outras ilhas, os outros: “é o texto que sabe muito sobre o leitor, de regiões dele que ele mesmo não saberia nomear. As palavras do texto constituem o leitor, lhe dão um lugar. Os escritores, sobretudo, colocam palavras ali onde dói” (Ibidem, 38). É aqui pertinente frisar uma consideração retirada de Píndaro, citada por Nietzsche: “Torne-se quem você é” (COMPAGNON, 2009, 53).
            Petit afirma ainda que, por mais que independa de gênero textual (Ibidem, 57), é o livro literário que mais toca o jovem: “Sentimentos que existe, em alguns textos escritos por escritores, um pouco mais de verdade que em outras formas de expressão linguística” (Ibidem, 41) e “não há razão para que os escritores não toquem cada um de nós. E é exatamente nesse ponto que jovens leitores vindos de meios desfavorecidos podem, muitas vezes, se encontrar com eles” (Ibidem, 39). Sendo assim, a questão é: a pessoa encontrará aquilo que irá tocá-la mais profundamente.
            Ler é, para o jovem (também para o adulto, como já citado), a oportunidade de encontrar um tempo para si mesmo. Eles são imprevisíveis na forma como recebem um texto e, por mais que seja o romance o “livro” por excelência, podem encontrar palavras que os acolham nos textos mais diversos (Ibidem, 56-57). No entanto, retomando a questão da centralidade aqui trabalhada da literatura e da existência de “narrativa” em diversos meios, considera-se que:
Todas as formas de narração, que compreendem o filme e a história, falam-nos da vida humana. O romance o faz, entretanto, com mais atenção que a imagem móvel e mais eficácia que a anedota policial, pois seu instrumento penetrante é a língua, e ele deixa toda a sua liberdade para a experiência imaginária e para a deliberação moral, particularmente na solidão prolongada da leitura (...). A literatura não é a única, mas é mais atenta que a imagem e mais eficaz que o documento, e isso é suficiente para garantir seu valor perene: ela é A vida, modo de usar (COMPAGNON, 2009, 55).

5.    Literatura: desejo e necessidade
            É a partir do desejo pessoal, individual e instransponível, que a leitura necessita florescer. Iniciativas como bibliotecas, aulas de literatura e de qualquer outra disciplina etc., devem servir como ferramentas que ofereçam uma diversidade de estímulos, para que o jovem/adulto encontre o seu caminho, a sua resposta, o seu prazer. Ainda citando Petit, “Um escritor, um bibliotecário ou um professor não conhece os jovens a partir do que imagina serem suas 'necessidades' ou suas expectativas, mas deixando-se trabalhar por seu próprio desejo, por seu próprio inconsciente” (Ibidem, 58) Ou seja, uma ação que deve vir do interior e partir para o exterior:
“não se formam leitores meramente pela insistência que a escola vem demonstando ter ao exigir leituras obrigatórias (…). Mas sim, pela necessidade político-sócio-cultural inquestionável, presente em um mundo circundado de signos, de se compreender, dominar e produzir essas técnicas/produções/artes paralelas: a escrita e a leitura” (SILVA, p.114).

            É este desejo que proporciona o “prazer do texto”, sua fruição – gozo, na verdade, caso se traduza corretamente o termo da tradição-tradução barthesiana francesa. Um texto lido no prazer é um texto escrito no prazer, segundo Barthes. É esta experiência singular a resposta, que apenas você tem consigo: “O prazer do texto é semelhante a esse instante insubstituível, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza” (BARTHES, 2015, 12).
            Em um ensaio, publicado pelo jornal “O Globo”, sobre o modo pelo qual alguém deve se iniciar alguém nos estudos filosóficos, Francisco Bosco afirma que não há nada pior para se começar na matéria (e gostar dela), do que ler um livro de introdução à filosofia. O começo deve vir a partir do livro que primeiro “te pegar de jeito”. De acordo com Bosco, “a um começo cronológico ou mesmo lógico, eu apresentaria a alternativa do caminho do desejo. Que se comece sempre pelo primeiro livro que te pegar de jeito. E que a partir de então siga-se pela lógica singular das questões que te mobilizam” (BOSCO, 2012).
Se antes de eu ler Deleuze eu tiver lido Bergson, Nietzsche, Kant, Espinoza, até os gregos, eu terei um aproveitamento certamente mais complexo de Deleuze. Mas e se não houver nesses autores, para mim, a centelha, o desconcerto capaz de fundar a paixão filosófica? Pois esse desconcerto, como a lógica das paixões humanas, é da ordem singular de um encontro: não se dá com os mesmo autores para as mesmas pessoas (Ibidem, Idem).

            Os “romances de coração” são, sem dúvida, uma forma evidente da associação entre o momento da leitura e o prazer. Como comprovado no estudo, as mulheres que fazem uso deste tipo de literatura, definitivamente, não acreditam que irão viver romances iguais aos que leem nas obras (ANDRADE; SILVA, 2011, 12), em uma atitude ingênua, fantasiosa e infantil muitas vezes associada a elas. Mas eles são lidos em um ambiente de busca de identificação.
Não é à toa que o hábito de ler romances sentimentais é encarado como uma atividade relacionada ao binômio lazer/prazer. (...) no tempo desocupado que complementa e compensa o indivíduo da faina diária, o lazer ao mesmo tempo em que ocupa o espaço destinado ao relaxamento e à distração da labuta, é o exercício da liberdade. As mulheres desta pesquisa traduzem o ato de ler romances sentimentais como um ‘momento só para si (Ibidem, 10).

6.    Literatura: algo além
O prazer do texto é permitido apenas a quem tem acesso a esse texto, evidentemente. É notório também que, para o dia-a-dia, ler não é algo essencial para alguém se manter vivo, sendo esta suposta superficialidade da literatura um dos empecilhos mais diretos para a manutenção do vigor de sua importância vital para a sociedade. Com isso, se pretende dizer que ler, ver um filme, ir ao teatro, é algo “além”.
Eis porque, ao lado da pergunta tradicional desde Lamartine, Charles de Bos e Sartre, “que é a literatura?”, questão teórica ou histórica, coloca-se hoje mais seriamente a pergunta crítica e política: “O que a literatura pode fazer?” Em outras palavras: “Literatura para quê?” (...) Qual a pertinência (...) da literatura para a vida? Qual é a sua força, não somente de prazer, mas também de conhecimento, não somente de evasão, mas também de ação? (COMPAGNON, 2009, 23-24).

Ou seja, se você precisa trabalhar oito dias e três horas para comprar um livro em três volumes (BOSI, 2009, 20), e se esforçar despejando a maior parte do salário em alimentação e coisas básicas do cotidiano, o que se chama “consumo de cultura” é, sem dúvida, um esforço, um dispêndio. Para uma pessoa que sobrevive (no lugar de viver), o acesso ao livro e a seu prazer é dificultado por estes empecilhos básicos, ou do modo de operação do sistema-mundo do capital e do giro econômico prático:
A Universidade conhece um momento de hesitação com relação às virtudes da educação generalista, acusada de conduzir ao desemprego e que tem sofrido a concorrência das formações profissionalizantes, pois estas têm a reputação de melhor preparar para o trabalho. Tanto é que a iniciação à língua literária e à cultura humanista, menos rentável a curto prazo, parece vulnerável na escola e na sociedade do amanhã (COMPAGNON, 2009, 23).

Literatura, então, por quê? “E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço (pela literatura), citarei Cioran (...): ‘Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer’” (CALVINO, 1993, 16).
Mas, do mesmo modo que o desejo ganha lugar central neste artigo, as camadas menos favorecidas da sociedade tem o desejo como fator decisivo para a transformação de uma dura realidade de privações. O desejo pessoal de ter acesso à cultura é forte e marcante: “As operárias que tivemos oportunidade de ouvir sentem um fortíssimo desejo de instrução, quando não para si, para os filhos” (BOSI, 2009, 20). No estudo de Bosi, foram analisadas as operárias do ABC dos anos 1970, em um espaço específico, porém abrangente, já que o macro-cenário da desigualdade social e econômica é ainda aterrador no que tange o gênero feminino no mercado de trabalho. 
Como todo o ser humano vai à busca de sua identidade, sua verdade, “as representações da cultura estão sempre ligadas às de liberdade” (Ibidem, 21), mas a dinâmica espacial da pobreza é um aspecto interessante tratado por Bosi que dificulta a busca de uma individualização e deve ser encadeado com o “momento só para si” da leitura. A “janela aberta para outra janela vizinha e sempre abertas” (Ibidem, 26) é a deflagração de uma impossibilidade da solidão voluntária, do afastamento para um instante de introspecção. 
Não é apenas isso que impede a experiência do texto, mas também isso. A democracia vacilante da cultura, por meio dos conglomerados e do caro preço por seu acesso, a exploração do trabalhador com um esforço produtivo exaustivo e um salário relis, junto à falta do “hábito” de isolamento para leitura, se somam a um sistema educacional falho e um governo que, quando trata do livro e da cultura, o faz para uma “classe” específica e não para a população que mais dela precisa e a que mais faria proveito. Tomando de empréstimo uma expressão do escritor colombiano Gabriel García Márquez, “rico tem cultura e pobre tem folclore”.

7.    Considerações finais
Muitos comparam o que se vive hoje, tecnologicamente, a um novo Iluminismo. A iniciativa do Google de digitalizar todos os livros de grandes bibliotecas – o conhecimento mundial completo – é uma boa propaganda desta empreitada (DARNTON, 2010). Porém, há o perigo de se criar um mercado com a comercialização destas digitalizações às biblioteca, o que já exclui quem não tem dinheiro para ter acesso a este produto. Com isso, o termo “iluminismo” já se mostra falho, pois não é de fato um momento de revolução do conhecimento, já que excludente. 
Muitos dizem serem as novas plataformas de leitura – kindle, e-book etc. –, a nova experiência para a disseminação da leitura. Porém, é perigosa esta afirmação, já que estas plataformas são ainda caras para se iniciar uma disseminação, para a média de leitura anual (pesquisa Retratos da Leitura, 2012). Bill Gates, fundador da Microsoft, uma das cinco marcas de tecnologia mais valiosas do mundo, afirmou ser ainda necessário que a tecnologia melhore de forma “muito radical” antes que “tudo que hoje necessita de papel se transfira para um formato digital” (DARNTON, 2010, 87).

8.    Bibliografia
ANDRADE, Roberta Manuela Barros de; SILVA, Erotilde Honório. Quem lê tanto romance? As práticas de leitura dos Livros do Coração. Recife: XXXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2011;
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Tradução: J. Guinsburg. São Paulo: Editora Perspectiva, 1987;
BOSCO, Francisco. Por onde começar? In: Segundo Caderno. Rio de Janeiro: Jornal O Globo, 26 de setembro, 2012;
BOSI, Ecléa. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. Petrópolis: Editora Vozes, 2009;
CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos? Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993;
COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução: Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009;
DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. Tradução: Daniel Pellizzari. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2010;
______. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. Tradução: Denise Bootmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1990;
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Tradução: Hildegard Feist. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1994;
PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura – uma nova perspectiva. Tradução: Celina Olga de Souza. São Paulo: Editora 34, 2008;
SILVA, Virgínia de Oliveira. De leitores e leitura: água mole, pedra dura, tanto bate até que fura? Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: FE-UFRJ, 1999;
WHARTON, Edith. O vício da leitura. In: serrote. Tradução: Alípio Correa de Franco Neto. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2010, nº 5 ½ , p. 31-38.

domingo, 3 de julho de 2016

Os v(e)(i)ados feridos



     
       Este texto tem por intenção articular e fazer dialogar os trabalhos da pintora mexicana Frida Kahlo, “O veado ferido”, de 1946, e do pintor recifense Ramonn Vieitez, “When somebody loved me; The wounded deer”, de 2012. Portanto, vamos ao texto.
            Frida Kahlo pintou, em 1946, um quadro chamado “O veado ferido”, ou também conhecido por outros dois títulos: “O veadinho” e “Eu sou um pobre veadinho”. Quase os treze títulos de “A hora da estrela” (1976), de Clarice Lispector, ou os treze tiros que o bandido Mineirinho levou, nos anos 1970, segundo a escritora citada, quando na verdade apenas um teria bastado para matá-lo. Expoente máximo, hoje, da pintura mexicana, Frida Kahlo, neste quadro, expõe-se da seguinte maneira: um veado, com cabeça de Frida e galhos de animal, transpassado por nove flechas, que o fazem sangrar. Em uma floresta, este veado está encurralado por várias árvores, que o impediriam de fugir. Ao fundo, um mar, profundo, que não dá perspectivas de fuga, mas sim de isolamento. Um raio vem do céu e um galho de árvore está caído perto do veado, conferindo à pintura dramaticidade. O rosto de Frida, mulher-veado, olha-nos, impassível, mortificado.
            Nascida no começo do século XX, em 1907, em uma cidade próxima à capital mexicana, Frida foi considerada atípica, desde o início da vida. Vestia-se, adolescente, com roupas de homem, e saía nas fotografias de família desta maneira, performática. Mas não era lésbica stricto sensu, em princípio, como poderia supor os olhares preconceituosos. Apesar de ter se relacionado ao longo da vida com mulheres, manteve-se apaixonada por um homem, alguns homens, mais principalmente apenas um homem: Diego Rivera. Vestindo-se, então, com roupas masculinas e já tendo, por volta dos seis anos, sofrido as drásticas consequências físicas de uma poliomielite, Frida entra na vida adulta desejando afirmar-se enquanto artista. Começa aos dezesseis anos a estudar na Escola Nacional Preparatória do Distrito Federal do México, predominada por figuras masculinas, masculinizadas e masculinizantes e, poucos anos depois, sofre um acidente que irá definir ainda mais suas limitações diante da vida física, já definhando o definhado corpo que na infância havia sido maculado pela poliomielite.
            Estava em um ônibus, na Cidade do México, em 1925, ao lado de um dos primeiros namorados, quando o veículo é atingido por um bonde. Com o choque violento, o metal de um dos meios de transporte perfura o corpo de Frida e a arrasta ao longo da praça em que se encontrava. Com licença poética, um dos comentadores do acidente frisa que os gritos de Frida abafaram o barulho do acidente e que, arrastada pelo maquinário, a artista teve suas roupas arrancadas e, nua, fica estendida no chão, agonizando. As cinzas provenientes da colisão a teriam coberto como um manto.
            Entre a vida e a morte, a mulher sobrevive e casa-se com o grande amor de sua vida, o também pintor Diego Rivera. No entanto, não sem pouco desgosto: um ano de matrimônio e seu esposo já a traía: com a irmã, de quem Frida cuidava dos filhos. Convalescente quase que vinte e quatro horas por dia, ela mantém-se casada e viaja com Diego para os Estados Unidos, onde ele acumula fama como pintor de enormes murais com teor político, que remetiam à Revolução Mexicana (1910) e o direito à luta proletária. É neste período que Frida começa a vestir-se com trajes típicos mexicanos. Sem conseguir manter uma gravidez, a pintora descobre-se incapaz de ser mãe, por conta de sua frágil condição de saúde. É, então, a partir desta informação, que Frida passa a pintar-se. Objetivamente: coloca-se em quadro. É o rosto de Frida que existe. Acusada de ser apolítica, em relação feita evidentemente em comparação a seu marido, Frida demorou muito para ser considerada uma artista engajada, em um tempo onde envolver-se politicamente em uma causa e nisso imbricar sua obra era condição obrigatória. Falar de si não tinha valor. Entender o falar de si apenas como um falar de si já é não entender o processo artístico do pôr-se em quadro, afinal. A arte autobiográfica não era considerada arte política. Não se enxergava como político o fato de uma mulher oprimida, doente, traída, sofrida etc., pintar-se. Quase como não considerou-se relevante literariamente os primeiros discursos testemunhais das vítimas de Aids dos anos 1980 – é baixa literatura, diziam: apenas uma narrativa sem vigor e riqueza literárias. Quase uma novelinha barata. O importante deveria ser a obra fria e consistente. Frida estava denunciando algo em seus quadros. Denúncia esta que quando feita não foi compreendida. Hoje, corre-se atrás do tempo perdido.
            Esta mulher, considerada hoje a maior pintora do século XX, teve apenas uma coletiva em seu país. Em 1953, apenas um ano antes de morrer. Já doente – sem filhos e com uma perna amputada – teve que ser levada na cama para a galeria de arte, onde seus quadros estavam expostos. Literalmente na cama ficou observando e recebendo as pessoas que iam ver suas pinturas. Frida tentou suicídio várias vezes ao longo da vida e foi encontrada morta em casa a 13 de julho de 1954. Hoje conhecida por seus autorretratos, Frida foi retratada pela última vez por Diego, quando estava com seu corpo sendo cremado.
            É neste contexto de dor, sofrimento, autoafirmação, que ela pintou-se enquanto um veado ferido. Ela, ferida. Ela, um animal acanhado em um período onde não a compreendiam artisticamente e enquanto mulher. Tal qual São Sebastião, flechada e dolorida. Os quadros de Frida revelam opressão e um desejo de desoprimir-se. Apenas renegada como subproduto, hoje celebrada como arte.
            Então, a partir deste quadro, “O veado ferido”, “O veadinho”, “Eu sou um pobre veadinho” (veado com rosto de Frida-mulher, nove vezes flechado – flechado o animal vulnerável, flechado à la São Sebastião –, quem a flecha não sabemos (é o mal polimorfo e invisível), com sangue, encurralado na floresta, com trovão e galho de árvore a dramatizar), que o artista brasileiro Ramonn Vieitez, nascido em 1991 no Recife, pinta em 2012 o quadro “When somebody loved me; The wounded deer” (em tradução livre, “Quando alguém me amou; O veado ferido”. Que diálogos colocam-se em cena nesta intertextualidade?
            Pintado no que pode-se dizer ser a mesma floresta, também com um mar ao fundo, mas sem raio, e igualmente com um galho no chão, ainda que não tão destacado como em Frida, o quadro de Vieitez revela o que um dia foi uma árvore, bem no centro, onde no quadro de Frida centralizava-se o veado ferido. Esta árvore é agora apenas uma base cortada e em cima dessa base senta-se um homem nu, como é nu o veado-animal, com seu sexo coberto por suas pernas, mas sua cabeça coroada por uma galhada que é a de veado – mesma cabeça de Frida, mas agora a cabeça de um artista viado corporificada no corpo de um homem-veado. Antes havia um animal-veado, mas agora no quadro recifense percebe-se um animal veado transformado em um rapaz homossexual, um homem viado. Homem este nu, com seu sexo coberto, mas seu coração extremamente exposto e vulnerável, ensanguentado, apertado por entre os dedos de alguém que deseja expô-lo e protegê-lo do mal polimorfo e invisível. É um coração vulnerável, um homem vulnerável – o corpo é do artista, a galhada está na cabeça do artista, o artista é o veado ferido – e exposto em sacrifício ao amor, “Quando alguém me amou”, mas também à exposição vulnerável e sofrida, “O veado ferido”. O rosto de Frida, o rosto de Ramonn. Rosto não no sentido plástico de rosto, mas no sentido do sofrimento do rosto do outro, no rosto estrangeiro, calcado por Emmanuel Levinás. Veado flechado de Frida remetido às flechadas em São Sebastião, santo esse muito associado ao movimento homossexual, por estar seu corpo desnudo, másculo, em sofrimento e ensanguentado: São Sebastião morrendo é cada homossexual sendo morto.
            Ramonn Vieitez teve a perspicácia de transformar-se no veado de Frida Kahlo, para revelar-se o real viado dessa sociedade, aquele que entrega-se à e que é passível à violência do outro: violência do amor e violência da dor. As dores da mulher vulnerável, as dores do homossexual vulnerável. Frida Kahlo um dia renegada, mas hoje cânone; Ramonn Vieitez retrabalhando essa cânone anti-canônico e reafirmando-se na homossexualidade. “When somebody loved me; The wounded deer” é a capa do catálogo da mostra “New Queer Cinema: cinema, sexualidade e política”, que esteve ao longo do ano de 2015 em diversas capitais do Brasil, exibindo filmes queers, do movimento gay de cinema que emergiu principalmente como reivindicação política e social frente à epidemia de Aids que dizimou em genocídio milhares de homossexuais.

P.S.: Mataram, dia 2 de julho de 2016, um homossexual na UFRJ, estudante da UFRJ.

Bibliografia, filmografia e “quadrografia”

KAHLO, Frida. O veado ferido, O veadinho, Eu sou um pobre veadinho. Cidade do México: 1946;
LISPECTOR, Clarice. Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner para o programa Panorama. São Paulo: TV Cultura, 1977;
STECHLER, Amy. The life and times of Frida Kahlo. Washington DC: Daylight Films e WETA, 2005;
VIEITEZ, Ramonn. When somebody loved me; The wounded deer. Recife: 2012;
NAGIME, Mateus; MURARI, Lucas (orgs.). New Queer Cinema: cinema, sexualidade e política (catálogo). Curitiba, Fortaleza, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo: Caixa Cultural, 2015.