sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Mais unzinho

10) No caminho de Swann, de Marcel Proust
11) Desafios brasileiros na era dos gigantes, de Samuel Pinheiro Guimarães

...

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Bob Esponja segundo a Teoria Crítica e os Estudos Culturais


Para início de avaliação, um resumo será feito do produto de massa escolhido, para um melhor entendimento das análises subsequentes. Deste modo, “Bob Esponja Calça Quadrada” é um desenho animado que gira em torno da vida de Bob Esponja, uma esponja-do-mar amarela, que mora na Fenda do Bikini, situada em uma região do oceano Pacífico, e que tem um caracol de nome Gary como animal de estimação. Trabalhando como cozinheiro no restaurante “Siri Cascudo”, cujo dono é o siri conhecido por Seu Sirigueijo, tem como companheiro de trabalho o polvo Lula Molusco, também seu vizinho. Sendo seu “melhor amigo” uma estrela-do-mar rosa, Patrick Estrela, Bob possui como amiga uma esquilo fêmea, vinda do Texas (EUA). Outras personagens são o plâncton chamado Plankton e a professora de direção, Senhorita Puff, além de outros secundários. Bob Esponja é, portanto, visto como ingênuo e amável.



Sendo assim, utilizando-se dos ensinamentos de Teoria da Comunicação, no que diz respeito à Teoria Crítica e às Teorias de Influência Culturológica, uma análise será feita do desenho animado, criado em 1999 pelo norte-americano Stephen Hillenburg, expondo os pontos de vista de cada vertente de ensino, suas contradições e suas conclu-sões chegadas.



Utilizando-se primeiramente a Teoria Crítica, entende-se que ela enxerga o pro-duto em questão como algo serializado e pré-estabelecido diante dos padrões norte-americanos de se fazer cultura. Para ela, Bob Esponja está inserido dentro do processo capitalista cultural e massificador, que renega a população ao direito de ter acesso a um produto de qualidade e diferenciado. Entendendo a situação como meio para se alcançar o retorno financeiro e satisfatório, a Teoria Crítica emprega a esse trabalho um caráter pejorativo, dentro do conceito de indústria cultural de massa, onde a cultura é vista não como um modificador, mas como um repetidor de regras, ideias e conceitos.



Dados concretos auxiliam para o melhor embasamento do que a Teoria Crítica apregoa, haja visto que “Bob Esponja Calça Quadrada” é o desenho animado de maior audiência do canal norte-americano Nickelodeon, sendo transmitido, no Brasil, pela Re-de Globo, líder de audiência nacional. Paralelamente, o desenho já foi transformado em filme, em 2004, alcançando uma das maiores bilheterias anuais, além de possuir site próprio na internet, ter virado boneco e jogo de videogame. O fato de o desenho já pos-suir dez anos de vida, 126 episódios, tendo cada um duração de onze a treze minutos e por dia serem veiculados dois, totalizando-se trinta minutos, com propaganda, auxilia na consolidação do pensamento de serialização, padronização e repetição, que caminha com a medianização do gosto pela cultura, seu entendimento como um produto sistêmi-co e encapsulado. Outro fator que pode juntar-se aos demais é o fato de que, apesar de “Bob Esponja” ter sido pensado artisticamente por uma pessoa, Hillenburg, várias outras mãos o fazem, carregando-se assim uma produção contínua e acelerada, visando atender ao mercado consumir.



Como percebeu-se, o desenho alcançou um status de mercadoria, semelhante a um tênis ou a um eletrodoméstico, ao invés de disseminar conceitos e passar uma visão diferente de mundo, mais esclarecedora para quem a vê, não se direcionando a incitar o telespectador a consumi-la para outros fins. Ainda assim, “Bob Esponja” se insere den-tro de uma macroestrutura capitalista e consumista, tendo sido engolido por ela e incita-do a fazer parte da mesma, não tendo, por si só, gerado todo esse desencadeamento mer-cantil e deteriorador do que os intelectuais chamam de arte. Entretanto, não há como abstrair o fato de que realmente houve uma serialização da obra de arte em questão, o desenho animado, assim como sua reprodução, distribuição, acesso e serialização cau-saram uma consequente banalização da mesma.



Para finalizar, seguindo os conceitos e preceitos da Teoria Crítica, “Bob Espon-ja” está, segundo o critério de Umberto Eco, em “Apocalípticos e integrados” (1964), no que se chama de baixa cultura, justamente por se tratar de um desenho animado veiculado primeiramente ao público infantil, em televisão e ter se transformado em filme, desenho e videogame, envolto no mundo capitalista. Em contrapartida, não é porque ele está dentro deste meio que pode-se afirmar que houve uma desconexão entre seu pensamento e sua subjetividade, geradores de alienação, estando implícitas as ideias de efeito narcotizante da mídia e autoalienação.



Tendo esta contradição em vista, os Estudos Culturais entrarão no trabalho como um meio para se compreender, com uma maior riqueza de detalhes, o legado do desenho “Bob Esponja”, tentando-se tirá-lo do estereótipo de médio e baixo no que se refere à cultura e arte e enxergando vários outros diálogos dentro do diálogo primeiro e raso que se pode vir a ter da animação. Ainda que inegavelmente inserido na cultura pop e de fa-to visto por muitos e pela maioria como um mero entretenimento e mercadoria, não se pode deixar de perceber nele um legado e um recado.



Portanto, sendo a cultura uma prática social e os estudiosos do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) tendo trazido a cultura para as experiências cotidianas, fazendo da arte uma expressão cultural, sendo tais estudiosos possuidores de tradição na crítica literária, tomar-se-á como base para análise os estudos do linguista russo Mikhail Bakhtin, onde os produtos culturais possuem discurso social e tom crítico e tendo, então, uma tentativa de fim de classificações ocas como alta, média e baixa cultura. Principalmente, a ideia de que o discurso é compreendido dentro do espectro cultural, sendo a “polifonia” indispensável para a análise do trabalho em questão, onde entende-se que dentro de um discurso existem vários outros.



Diante do que foi dito anteriormente, vê-se que, para uma criança, o desenho se resume a uma pessoa ingênua, seu amigo bobalhão, um vizinho chato, um patrão mão-de-vaca e uma esquilo fêmea que não consegue respirar dentro do mar. Em contraparti-da, há os outros discursos dentro deste primeiro, compreendido por quem já possui um repertório mais extenso de experiências culturais e de vivência como um todo. Com is-so, pretende-se encontrar em “Bob Esponja” algo além do que a simples baixa cultura capitalista e de massa preconizada pela Escola de Frankfurt, com sua Teoria Crítica.



Tendo isso em pauta, consegue-se analisar o produto de massa escolhido diante de processos, comportamentos e situações inerentemente imersos dentro da cultura nor-te-americana em que ele está inserido e, portanto, cultura ocidental, pois fenômenos im-perialistas e globalizados auxiliaram na difusão e assimilação do american way of life. Acima de tudo isso, há, sobretudo, a deflagração de algumas condições humanas ineren-tes e latentes, o que remete à psicanálise, sobrepujando e agregando valor ao modo de vida ditado pela cultura, dando uma abrangência de identificação maior aos casos verifi-cados.



Aproveitando-se o gancho dado pelas ideias de Adorno e Horkheimer, na Teoria Crítica, há o personagem Patrick, que representa toda a estupidez e burrices carregadas intensamente nos dias de hoje por uma sociedade cada vez mais acomodada, obesa e sem intenções de alteração de quadro. Mostrado como alguém sem vontade própria e imerso em sua asneira crônica, já foi veiculado, em um episódio, que Bob Esponja, seu vizinho, emprestou seu cérebro durante um fim-de-semana para Patrick utilizar. Moran-do debaixo de uma pedra, com móveis de areia e sem passar a impressão de que está tra-balhando, Patrick Estrela nada mais é do que o homem médio norte-americano, que está acima do peso, pela grande disponibilidade e oferta de alimentação pronta e rápida que há, em sua maior parte gordurosa e calórica. Além de tudo, ele também é o consumidor cultural essencial para a manutenção da condição televisiva e de cinema norte-america-na. Em suma, ou seja, Patrick é a representação da média e baixa cultura, que suposta-mente não se “esforçaria” e estaria “satisfeita” com a “porcaria” que vê e recebe cotidia-namente. Patrick seria, então, um personagem metalinguístico, perante a Teoria Crítica: baixa cultura representada dentro de um desenho que o é da mesma forma.



Por outro lado, há Lula Molusco, um polvo que é insatisfeito com seu trabalho e que tem raiva de seus vizinhos, além de uma veia artística duvidosa e contestada, sendo um invejoso perante seus amigos do passado hoje bem sucedidos. Sendo essas as prin-cipais atitudes do personagem nas tramas, o principal conceito implícito que ele expõe seria o da arte e seus conceitos, com suas contradições. No desenho, Lula Molusco é mostrado como um homem refinado, mas chato. Ele teria, supostamente, acesso à alta cultura (música clássica, pintura e escultura), mas é uma pessoa amarga, passando-se a ideia de vinculação entre cultura refinada e falta de gosto pelas coisas realmente boas da vida, como, para Bob Esponja e Patrick, caçar águas-vivas. Sua frustração vem princi-palmente pelo fato de ele morar entre dois vizinhos sem a menor veia artística e refina-ção e, acima de tudo, estar sendo obrigado a trabalhar como caixa em uma lanchonete medíocre. Portanto, o desenho mostra que Lula Molusco não consegue ganhar a vida com tais artes subjetivas e duvidosas, mas sim em trabalho braçal e sem esforço intelec-tual, onde se emprega a grande parte da população adulta dos Estados Unidos. Para fina-lizar análise no que se refere ao personagem Lula Molusco, sua frustração é irrefutavel-mente exposta quando, se propondo a dar uma aula de arte em um curso, além de nin-guém aparecer para assisti-la – fora Bob Esponja, que devota uma amizade platônica por Lula Molusco –, pois as pessoas preferiram assistir a de culinária, Lula se depara com um brilhantismo sem esforços por parte de Bob Esponja, que sem querer, com ape-nas uma marretada, “recria” David, de Michelangelo, enquanto o professor tenta a todo custo forçar o colega a fazer as coisas erradas, para mostrar-se superior. De modo dico-tômico, há, então, a percepção de um Patrick Estrela apreciador de mediocridades, mas feliz, enquanto há um Lula Molusco requintado, mas frustrado e recalcado.



Por sua vez, Sandy é um esquilo fêmea vindo do Texas. Com roupa de astronau-ta para possibilitar sua respiração, não se sabe ao certo como Sandy foi parar dentro do mar, mas é notória sua saudade da terra natal, bem especificada pelos autores do dese-nho, que a fazem rememorar as nozes e tortas do Texas, além da vida pacata e campesi-na do Estado. Ela é, também, por sua vez, em um episódio, discriminada por parte dos demais personagens por não poder respirar dentro do mar, sendo um ser inferior por is-so. Neste sentido percebe-se uma deflagração do preconceito existente diante dos imi-grantes, que saem de sua terra natal e tentam em outra localidade uma vida melhor. Co-mo se sabe, os Estados Unidos é um dos principais países de recebimento de estrangei-ros, tendo uma população, principalmente a do Sul, pouco contente com a presença dos mesmos em seu território, sendo a massa mexicana, em suma, associada a assalto e van-dalismo. Por sua vez, outro fator que faz com que se conclua que Sandy seria a repre-sentação de uma ilhada refugiada, é a grande ênfase nas referências ao Texas. Para a sociedade norte-americana, o Texas seria como, para os brasileiros sulistas, o Nordeste. Com sua sociedade conservadora e caipira, sem olhar muito para o futuro. Assim, San-dy é associada a esses dois estereótipos, tanto o do preconceito externo (visão do norte-americano para os estrangeiros – relação entre personagens do mar e da terra) e o do preconceito interno (visão do norte-americano do norte para com os do Texas, sendo este Estado utilizado mais como uma referência maior a todos os demais Estados menos desenvolvidos do Sul).



O personagem do Seu Sirigueijo remete à questão trabalhista, onde ele, como patrão, é economizador ao extremo, submetendo seus funcionários a trabalhos exausti-vos e repetitivos, além de o desenho não fazer referência alguma quanto a salários pa-gos. Em contrapartida, apenas em um episódio, brevemente, Bob Esponja comenta que uma única moeda que o Seu Sirigueijo segurava representava mais do que seu salário do ano inteiro. Portanto, Seu Sirigueijo está inserido dentro da dinâmica capitalista de tra-balho, onde visa-se o lucro e os direitos humanos ficariam um tanto de lado. Sua lan-chonete, com seus dois funcionários, que realizam atividades mecânicas e repetitivas (Fordismo – “Tempos modernos”: Charles Chaplin), é, para uma estrutura dos EUA, um local extremamente barato para se fazer uma grande refeição, sendo este um grande a-trativo para a camada pobre frequenta-la, engordando e banalizando-se. Seu Sirigueijo, por sua vez, possui um amigo que tenta a todo custo roubar a fórmula secreta do ham-búrguer da casa, fazendo com que fique explícita a grande concorrência comercial no ramo.



Por fim, Bob Esponja, personagem-título, está envolvido em várias dinâmicas sociais e comportamentais, que o enriquecem como obra de arte e ao mesmo tempo o deixam acessível ao público infantil e desejoso de entretenimento. Primeiramente, a questão do amor platônico por parte dele para com seu trabalho e sua amizade com o personagem Lula Molusco. Ainda que os dois não sejam recompensadores, pois Lula Molusco o rejeita e ignora e o trabalho é exaustivo e quase assalariado, Bob Esponja demonstra um gosto muito grande pelos dois, sendo seu amor pelo trabalho, ainda que este seja reles, uma constatação do workaholic, problema muito associado à modernida-de e ao dever de mostrar serviço, pois o desemprego está logo ali. Por sua vez, inician-do uma divagação acerca das suspeitas de sua homossexualidade, pode-se afirmar que muitas das afirmações podem ter começado a vir pelas atitudes do personagem, hoje em dia muito associadas a valores sensíveis e femininos, como a dedicação, o amor ao pró-ximo, os dotes caseiros, uma grande amizade com pessoas do mesmo sexo. Fora os me-nos evidentes, há o seu comportamento para com o personagem Patrick, que não é de maneira completamente evidente, mas também não o é tão escondido assim. Portanto, no episódio em que Bob e Patrick vão ao parque no dia de São Valentim e Patrick fica triste pelo fato de que Bob não tinha nenhum presente para dar a seu “melhor amigo”, é de uma sutileza tocante e inegavelmente quis passar alguma mensagem, mesmo que ela tenha sido a de que apenas amizades boas são muito fortes e devem ser preservadas e re-conhecidas.



Concluindo, para finalizar o trabalho, chegou-se a conclusão de que um desenho que possui tantos vieses e outros caminhos possíveis não pode ser meramente classifica-do como medíocre. Por mais que ele esteja, sim, inserido dentro do processo da indús-tria cultural – como, aliás, quase tudo, haja visto que até um filme autoral e artístico al-meja ter uma grande bilheteria e servir a um público grande, conhecido por “massa” – “Bob Esponja Calça Quadrada” passa mensagens comportamentais e relevantes para se repensar a sociedade de hoje em dia, não podendo ser exclusivamente renegado a um público de apenas cinco anos de idade, às dez horas da manhã.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Imagem e amor na depreensão do real em A. Bioy Casares e Alfred Hitchcock

Adolfo Bioy Casares (acima) e Alfred Hitchcock (abaixo)
“A invenção de Morel” (La invención de Morel) foi publicado em 1940, escrito pelo argentino Adolfo Bioy Casares (1914-1999). Já “Um corpo que cai” (Vertigo) é lançado em 1958, dirigido pelo britânico Alfred Hitchcock (1899-1980), baseado em livro “D’entre les morts”. Então, pela disciplina de Comunicação e Artes, uma análise e conexão entre as duas obras será elaborada, seguindo o intuito de se focar a questão imagética e a do relacionamento amoroso e seus desdobramentos, ainda que se tente perpassar pelo maior número de aspectos fílmicos e literários possíveis, que conseguiram ser notados e inter-relacionados.


Deste modo, tanto como no livro, quanto como no filme, a imagem é seguida da concepção de reprodução, réplica, imitação incessante, perda da essência. Sendo assim, no que diz respeito ao filme, extremamente autoral, de Alfred Hitchcock, pode-se notar que, para a compreensão e desenrolar da narrativa, a imagem e suas consequências são tratadas como condição essencial para a noção de identidade dos seres, girando essa problemática em torno de uma personagem em especial, Madeleine Elster (Kim Novak). Ela seria apenas uma, ou seria várias ao mesmo tempo?


Inicialmente, o espectador a reconhece como uma pessoa que está passando por problemas psicológicos e que, involuntariamente, age de forma suicida, como se estivesse imitando os passos de sua bisavó espanhola Carlotta Valdes. Madeleine possuindo 26 anos de idade, assim como sua bisavó ao suicidar-se, está, em uma determinada cena do filme, sentada diante de um quadro, alocado em um museu. O detetive John Scottie Ferguson (James Stewart) repara, e a câmera deixa a evidência bem explícita, que o modo como Madeleine Elster ajeita seus cabelos é idêntico ao modo como Carlotta Valdes o fazia. No entanto, em outro momento, quando ela, aparentemente, volta a si e não se recorda nem de ter ido ao museu, nem de nenhum outro ato suspeito, se mostra com penteado diferente, como se fosse uma marca de distinção entre as personalidades. Por outro lado, existe a verdadeira Madeleine Elster, que é assassinada pelo marido, Gavin Elster (Tom Helmore), sendo ela, deduz-se, muito parecida fisicamente com quem quis se passar por ela, Judy Barton, que para efeito de diferenciação, quando é si mesma na película, encontra-se de cabelos tingidos de outra coloração. Por fim, Judy Barton é encontrada por John Ferguson e, para nós, ele vê nela uma ensandecida maneira de reencontrar a mulher amada que já se fazia morta. Com o passar do tempo e da relação iniciada pelos dois, repara-se que John deseja que Judy se vista do mesmo como Madeleine – no caso, desejava, então, que ela se vestisse do mesmo modo como ela mesma se vestira anteriormente – assim como que eles reprodu-zam, novamente, os passos dados na ocasião da morte da verdadeira Madeleine Elster. Também há, no filme, outra personagem, Marjorie Midge Wood (Barbara Bel Geddes), que, em um momento, faz uma pintura de si, mas com o corpo de Carlotta Valdes, que é ela mesma e que é também Madeleine Elster, que é Judy Barton.


Ou seja, uma única pessoa era, na verdade, três. Judy Barton se passa por Made-leine Elster, assim como, de certa forma, se passa também por Carlotta Valdes (tanto nos atos suicidas, forjados, como o filme se faz por entender, quanto pelo simples ato do penteado, assim como no instante em que assina por Carlotta na recepção da pensão). Ainda há outra, Midge, que por sua vez quis se transformar em Carlotta na pintura, tentando, assim, ser Madeleine Elster, na verdade Judy Barton, que o detetive John tanto amava. Em suma, uma imagem reproduzida em várias pessoas, momentos e circunstân-cias e a repetição dos fatos para a descoberta da essência do mesmo.
.
Aí, um paralelo pode ser feito com o livro “A invenção de Morel”, a partir do momento em que se compreende que todos os atos depreendidos pelo personagem prin-cipal – que por sua vez não possui nome e, então, é sem identidade – foram, na verdade, projeções, pois haviam sido, por Morel, gravados. Entende-se, então, a razão pela qual o personagem principal, que conta em diário seu dia-a-dia, não participa, não interage com os demais personagens que vivem na ilha; ele não havia sido gravado, não havia se tornado uma imagem, reprodutível e reaproveitada, e então estava ausente de todo o resto do processo de interação e comunicação. As constantes idas, enfim, de Faustine à praia, admirando o crepúsculo, são nada além de imagens e reproduções. E, quando o narrador da estória descobre qual é a invenção de Morel, ele se grava também. Por sua vez, ao gravar-se, o narrador entende isso como um processo de ida ao eterno, pois ao se gravar, sua alma se descolaria de seu corpo, o fazendo, consequentemente, morrer, apesar de sua alma ficar registrada para sempre dentro da máquina. Foi essa, então, a forma com que ele achou para ir ao encontro de Faustine, sua amada: entrando no mesmo processo incessante, idêntico e reprodutivo em que ela se fazia presente. Em contrapartida, o escritor brasileiro Otto Maria Carpeaux, em artigo ao jornal “O Estado de São Paulo”, em 1966, ao resumir a obra de Bioy Casares, afirma que “(...) As radiações que impulsionam sua máquina mataram-no. A presença dessas radiações é a doença mortal na ilha.”. Já para o narrador do livro, o que parece ocorrer é um tanto mais lírico. Morrer-se-ia ao ser gravado, fotografado, ou seja lá o modo de captação que convir, pois a alma vai-se embora com o objeto. Ao mesmo tempo, permanece-se para sempre registrado, em uma certa imortalidade. Não custa mencionar, ainda que se refira à língua inglesa, a fala do estudioso da Comunicação Stuart Hall, que em entrevista, na Universidade de Massachusetts, em 1989, acerca de seu ensaio “Codificação/Deco-dificação” (1980), afirma que “essa noção (de reprodução) é quase impossível, na língua inglesa, de ser separada da ideia de mera repetição”. Concluindo, todas as pessoas que o nar-rador via já estavam mortas, não eram mais “reais”, ainda que estivessem sendo vistas e sentidas por ele, as transformando, de tal modo, em “reais”.


Seria, então, o que foi dito acima, o mote central das duas obras: a realidade. Esta, por sua vez, entendida através da problemática da imagem e sua reprodução diante dos olhos humanos. A visão da imagem de pessoas mortas as tornaria automaticamente reais ou virtuais? Uma mesma pessoa, incorporada em mais de uma, tanto física quanto psicologicamente, as tornariam reais ou as anulariam simultaneamente? Fechando a a-nálise no que diz respeito a tais questões, em “Um corpo que cai”, a repetição das ações se faz para que se chegue em um final da situação, a fazendo conclusa e compreendida, definindo seu âmago; em “A invenção de Morel”, a repetição das ações é percebida como uma entrada na eternidade e na imersão sentimental e sensacional, sendo a pessoa inclusa no processo mecânico e incessante ao ser passada para imagem. No filme, a re-petição para se chegar à conclusão (morte); no livro, a repetição para se chegar à com-clusão (vida).


Por parte final do trabalho, a questão amorosa é depreendida nos dois conteúdos como algo metafísico, complexo e nem sempre tão correspondido assim. Em “A in-venção de Morel”, o narrador é fissurado pela imagem de Faustine e não se sabe se ele a ama realmente, como casais se amam naturalmente a partir do convívio diário. Nem com sua passagem para o lado de Faustine, no momento em que ele “se registra”, há a total certeza de que ele encontrará o amor na mulher amada, pois ele apenas vai a seu encontro, e não necessariamente ela vai ao dele. O simples fato de Faustine não existir já complica bastante as coisas. No entanto, como o narrador também não existe, por não possuir identidade e ter sido abandonado na ilha, pode facilitar em alguma coisa as coi-sas. Junto a tudo isso, há ainda Morel, que seria um rival do narrador, pela disputa por Faustine.


Em “Um corpo que cai”, a questão do amor é primeiramente tratada quando o detetive John Ferguson afirma que amou sua amiga Midge, por algumas semanas, du-rante a faculdade, e que foi ela quem o rejeitou. Depois, um marido supostamente amá-vel pede socorro por sua mulher. Ele, como se sabe, a mata, demonstrando-se que ele não a amava tanto assim. Por sua vez, Judy Barton dá a entender que ela e o marido de Madeleine tiveram um caso, não tão bem resolvido. Antes, entretanto, há o envolvimen-to de John com Judy-Madeleine, encontrando, por sua vez, problemas no que diz respei-to ao sentimento de Midge por John, que apesar de tê-lo rejeitado antes, parece o amar agora. No final, John ama uma Judy que tem que ser Madeleine. Conclui-se que ele só ama as que não são tão reais e sinceras, sendo a única que o deve ter amado de verdade, Midge, rejeitada por sua depressão aguda. Tão complexo quanto “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade: “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém.”


Em consequência, o amor, no livro do argentino e no filme do britânico, é tido como idealizado e contemplativo. Já a reprodução, resguardados seus devidos fins em cada trabalho, para o livro é algo que envolveria, simploriamente falando, técnica (Walter Benjamin, em “A obra de arte na era de sua reprodutividade” – Escola de Frankfurt, Teoria Crítica), ainda que, claramente, psicológico; e para o filme, sentimento e mente.

domingo, 4 de outubro de 2009

Livros lidos pela metade não são livros lidos completamente

Voltando à listinha, vou dar uma ajeitada nela. Livros lidos pela metade não são livros lidos completamente. Sendo assim, uma repaginada será dada na listinha.

***

1) Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski
2) A metamorfose, de Franz Kafka
3) Dom Casmurro, de Machado de Assis
4) A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi
5) Os relógios, de Agatha Christie
6) O processo, de Franz Kafka
7) Nosso homem em Havana, de Graham Greene
8) Cidade de vidro, in A trilogia de Nova York, de Paul Auster
9) A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares
10) No caminho de Swann, de Marcel Proust